sexta-feira, junho 02, 2006

Shaktis Ausentes


Ainda esta temporada estival não tinha ido sentir o áspero granito da Serra da Estrela. Sentia-me inquieto agora que o calor começa a fazer-se sentir e os finais de tarde são de um prazer memorável. Para mim, quando o Verão se aproxima, e praticamente todo o país sufoca sob um ardente sol, não existe lugar mais perfeito para dar azo ás ânsias de escalar do que a nossa querida Serra. Reino de tremendas fissuras, diedros e temidas placas, alberga algumas das melhores vias de escalada que se poderão encontrar. Cântaro Magro, Parede do Inferno, Placa Verde, Vale de Loriga…enclaves por excelência para um jogo de uma pura essência. Granito de grande qualidade recortado por fissuras onde a arte da auto-protecção impera e extensas placas com transpirantes protecções fixas. Terreno de torneados movimentos onde o perfeito equilíbrio de corpo/mente nos leva ao tão ansiado próximo relé.



Na passada semana, uma poderosa força se apoderava corrosivamente do meu pensamento, puxando-me endiabradamente e com uma extrema violência o meu espírito para aquelas altas e rochosas terras.
- Tens de IR à SERRAAAAA!!!!!!, uma muda voz sussurrava constante e insistentemente na minha interioridade.

Mas a razão, e o discernimento da mente puxavam-me para terras mais a sul, para as falésias que compartimentam o azul oceano da baia de Sesimbra (perdoa-me Gaspar!).

Naquela calorosa noite de Sexta-feira (26 de Maio), dando voltas e revoltas na cama, numa constante e angustiosa luta, aquela “força” vs a voz da “razão” debatiam-se gladiadoramente por um fim sem desfecho previsível. Já tarde na hora ás portas da escura madrugada, cansado de uma semana de conflituosa luta interna, tomo a decisão…

Sábado, 6 horas da manhã. Desperto ao som do sempre irritante telemóvel e silenciosamente arrumo todo o material de escalada. 45 minutos mais tarde, já rumava em direcção à Serra da Estrela. Agora tudo estava claro e o objectivo estava perfeitamente nítido nos perdidos recantos do pensamento.

Há dias, ocasiões, momentos em que não vale a pena fugir. Agora, apenas renascia a constância e a necessária concentração para a opção tomada e uma fugaz apreensão derivada da incerteza final. Ou não fosse tudo isto a razão…da aventura!

No final da primavera de 1995, o incombustível Paulo Roxo acompanhado do João “Artista”, abriam magistralmente, na refundida e um pouco mais remota face Norte-Nordeste do Cântaro Magro a via Shaktis Ausentes (150m, 6c/A2).

Em Julho de 1996, na altura ainda graduada pelos seus aberturistas como 6a/A3, tive a oportunidade na companhia do Nuno “Larau” de realizarmos a provável 1ª repetição integral desta grandiosa via de escalada. Grandiosa pelo seu entorno e sobre tudo pela beleza do seu traçado. Naquele ano, foram quase dois dias de intensa escalada com direito a dormida em suspensas “hamacas” caseiras. Foi toda uma real aprendizagem e principalmente uma grande aventura. Uma escalada que jamais poderei esquecer…

Oito anos mais tarde, num fresco dia de Verão, voltamos a esta via. A minha curiosidade aumentava aguçadamente à medida que subíamos o trilho em direcção ao Covão Cimeiro. Em todos estes anos tanto se havia alterado…idade e conhecimentos, ideias e pensamentos, relações e ralações, vivências e momentos. E a via, será que está na mesma? Será que agora aos nossos olhos estará diferente? Apenas uma forma havia de encontrar a resposta: Escalar!!
Descontraidamente, limpando algum musgo aqui e ali, conversando e rindo como constante, o Roxo, o “Magno” e eu realizávamos aquela agradável escalada em cerca de 4 horas, forçando em livre o máximo para nós possível e recotando a via para 6c/A2 (6a/A2 obrigatório). Dos 4 lances, apenas o primeiro e 3 passos do segundo ficaram por forçar. Uma vez mais a Shaktis Ausentes me proporcionava uma escalada invejável.

No Sábado (dia 27de Maio), por volta das 10 horas encontrava-me de novo na base da face Norte do majestoso Cântaro Magro. Sobre mim, ergue-se a familiar Shaktis. Neste dia estava sozinho. Já há muito que esta ideia de escalar em solitário esta via rondava os meus mais perversos pensamentos, mas por um motivo ou outro, ou simplesmente por nunca ter coincidido com o momento certo, esta era uma ideia eternamente adiada.

Tranquilamente preparo todo o material. Coloco os entaladores, friends e expresses no arnês, preparo as cordas, coloco o gri ao peito. Inicio o fortemente sub-prumado 1º largo ao ritmo da fresca brisa. Escalada artificial fácil. Suspenso do 3º friend, continuo a sentir-me tranquilo. Aquele era o DIA!! O dia em que tudo encaixava.
Escalo mais lentamente do que usual. Hoje não existe lugar a precipitações. Tudo tem de ter o seu ritmo e o seu encadeamento natural. O 1º lance, 2º lance, 3º lance...tudo corria na sua normalidade de rotina que este estilo de escalada apresenta. Escalar à frente, fixar corda, descer, subir novamente pela corda, organizar o material e voltar novamente a escalar à frente o seguinte largo…e assim sucessivamente. Este 3º lance é um dos mais bonitos largos de corda que alguma vez escalei. Uma fissura perfeita com mais de 20 metros de longitude de uma dificuldade de cerca de 6b+/6c. Começa com entalamentos de mãos e vai estreitando…estreitando…até desaparecer, engolida pela lisura deste cinzento granito. Termino os últimos 3 ou 4 metros em artificial. Nesta posição (em solitário) a fissura parece-me demasiado cega. Da outra vez, havia escalado esta fissura integralmente em livre, mas desta vez (e em tantas outras) a força é proporcional ao medo, e o medo directamente proporcional ao compromisso.



Levanta-se um fortíssimo vento. Hesitei em continuar para o 4º e ultimo lance. O maior problema do vento forte, seria na descida em rappel de toda a via. Decidi continuar e sem grandes percalços (embora alguns sustos com as rajadas de vento que mais pareciam tiros de ar comprimido) alcanço o final da via. Um breve momento de descontracção e de enorme satisfação, e rapidamente inicio a descida. Três longos rappeles depositam-me novamente em chão firme. Invadido por uma desabordante felicidade, embora bastante cansado, sinto uma sensação de alívio e enorme leveza. Há muitos anos que esta ideia me perseguia e naquele momento havia-se tornado numa realidade.




Enquanto colocava a pesada mochila às costas para o sofrido regresso ao carro, uma nova e fugaz ideia emergia no meu pensamento. Liberar esta via, tentar escalar em livre a totalidade de cada um dos largos da Shaktis Ausentes. Provavelmente nunca terei o nível suficiente e dificilmente algum dia o conseguirei. Mas, certamente um dia voltarei!!

Miguel Grillo (02/06/2006)

Shaktis Ausentes (150m, 6c/A2) – 1ª ascensão em solitário em 27 de Maio de 2006


5 Comments:

Isabel said...

Excelente relato! Até eu fiquei com vontade de ver essa via :)

sesa said...

Grande Doutor Grillo, continua apertar forte.
Bela aventura.

chb said...

Ganda Miguel... fazer a via nesse estilo tem... muito estilo!!!
Aperta forte!
Abraço

Chorão said...

Se for preciso ajuda para por prática essa ideia forçar em livre manda lá! ... Que dou seg'! He! He!

Anónimo said...

Novamente, parabéns pelo relato!
Gosto dessas andanças solitárias com material de bricolage e outros...Provávelmente viste na Persistentes, ao lado direito da shaktis, um mosquetão abandonado no primeiro largo. Tentei a via em solitário há uns três verões - mas a cabeça de aguardente de Zimbro da noite anterior... - não permitiu senão completar o primeiro largo. No entanto, a vontade de fazer essa e outras vias dessa face do Cântaro ficou. Acho que para breve tou aí batido. A Travessias para um mundo novo, também tem que ser boa...
Abraço