terça-feira, setembro 20, 2016

Pirinéus - Acto I

PIRINÉUS - RESPIRAR!

Acto I - Circo de Perramó



Vista do Circo de Perramó e Vale de Estós, desde o cimo da via "Momentos".


Ordesa! Sinónimo de vertigem, de aéreo, de lastras imensas empilhadas formando o verdadeiro arquétipo de lego para gigantes.
A visão do mundo vertical do Parque Nacional de Ordesa revela receios ocultos mas também sentimentos profundos. Não é fácil evitar as exclamações sonoras em cada recanto do caminho, em cada brecha na folhagem da floresta quando, como uma aparição fantasmagórica, surgem as muralhas avermelhadas pela luz quente do final da tarde.
Já em 2012 a Daniela e eu tivemos a oportunidade de explorar uma nova via nestas paredes e, não sei bem, mas a distância temporal talvez tenha entorpecido a memória do medo visceral provocado pela verticalidade perturbadora da escalada em Ordesa. Por isso… voltámos!


A grandiosa parede do Galliñero no Parque Nacional de Ordesa.


Nos últimos tempos, por razões diversas e uma perda familiar imensa, os nossos níveis de ansiedade aumentaram muito. Resolvemos escapar para as montanhas. Ansiávamos pelas grandes paisagens, pela natureza selvagem, pela pureza crua dos montes, pela frescura dos bosques. Ansiávamos pela indiferença dos elementos. Uma indiferença sem questões, sem juízos, no fundo, acolhedora.

Pirinéus: a mais bonita cordilheira do mundo.
Duas semanas: pouco tempo mas, uma lufada de ar. AR!

Ordesa consistia no objectivo principal mas, queríamos em primeiro lugar subir a um lugar isolado, deserto e bonito. Lembrámo-nos de um vale espectacular que havíamos visitado há uns anos. Mas seria necessário andar. Andar e carregar!


As muito desejadas sombras do bosque num dia de caminhada dura sob um calor intenso!


Com as mochilas apetrechadas com tudo, incluindo equipamento de escalada suficiente para abrir uma nova via, iniciámos a caminhada para o Vale de Estós. Hora e meia depois, saímos do caminho principal e embicámos para o trilho da esquerda, empinado e sinuoso em direcção ao Circo de Perramó. 
O calor acompanhou toda a jornada, apenas aliviada pela visão sublime das paisagens de aspecto “Canadiano”, das montanhas, dos bosques e das lagoas de água translúcida.


Uma visão do paraíso.


A Daniela já mais animada: "Estamos quase!"


Uma penosa subida de três horas e meia depositou-nos num dos lagos superiores do Vale. Um mergulho rápido nas águas gélidas para lavar os litros de suor perdido precedeu a montagem rápida da pequena tenda. À nossa direita, a Torre de Perramó evidenciava-se. Em 2012 Escalámos por ali uma nova via. Já naquela altura pensámos que os 75 metros de escalada não justificavam a aproximação dura e demorada. Desta vez já se adivinhava uma repetição desse cálculo matemático. Mas quem disse que a montanha é feita de cálculos matemáticos? Nunca é, e naquele lugar, para prova-lo bastava levantar o olhar e apreciar o horizonte num giro lento de 360 graus.
Delimitando a cumeada do vale que acabáramos de subir, avistava-se o pico Perdiguero. Das suas vertentes escorregavam prados de um verde intenso até desaparecerem escondidos por um bosque magnifico. As pequenas lagoas encontravam-se salpicadas por ali e acolá. Em sentido oposto, ali estava o cordão de granito formado pelas Tucas de Ixeya, Agulha del Chinebró e Tuca de Corbets.



O nosso pequeno refúgio isolado do resto do mundo.


Estas paredes surgiam como uma carta aberta, disponível para colmatar os nossos desejos de escalada. É um lugar bastante remoto e bastava escolher uma parede ou um esporão ao azar e a probabilidade de se abrir um novo itinerário era grande.
Ligámos o fogão para aquecer a água para a refeição. Não fossem os mosquitos, a perfeição teria ali uma verdadeira expressão física. No entanto, o tão desejado isolamento, esse, tínhamo-lo encontrado. 
Às duas e trinta da madrugada a fisiologia obrigou a uma saída da tenda. De olhos entorpecidos admirámos o céu limpo e a via láctea em versão total. A ténue luz combinada das estrelas era suficiente para iluminar a muralha de granito e a lagoa que agora revelava uma tez negra. Paz e silêncio absoluto. PAZ! Ficámos ali um bocado a olhar o infinito, a admirar o momento. MOMENTOS!


A preparar o material para iniciar uma nova via na face norte da Tuca de Xinebró... num lugar descrito pela Daniela como: "Onde o Diabo perdeu as botas!"


Na Tuca de Xinebró (de raríssima visita), a uma hora do “campo base”, inaugurámos uma nova via. Cerca de 150 metros de granito, com a cereja no topo do bolo situada no segundo lance, um diedro estético e belo.

A Daniela a emergir do primeiro lance fácil.


A iniciar o estético segundo lance da escalada.


Atipicamente, a nossa via não terminou no cume da torre mas sim no cimo de uma crista. Para cima, ficou a faltar uma secção de parede tombada de trepada fácil. “Parece demasiado tombado mas, não para descer!” – considerámos. Decidimos não continuar para não ter que abandonar muito material nas inevitáveis instalações de rapel. O chip da poupança prevaleceu à lógica alpinística.
Visto a frio, caminhámos umas quatro horas para escalar uma via de sabor incompleto e com um único lance de boa qualidade. Errado! Caminhámos quatro horas para viver e respirar e ainda se aproveitou para subir um pedaço de muralha com vistas largas.


As vistas compensaram todo o esforço.


“Como será isto no pino do Inverno?” – questionava-se a Daniela, com os olhos metidos nas sombrias paredes vizinhas, voltadas a norte. Naquele momento, nasceu uma nova ideia. Talvez um novo sonho…
Quase esquecemos que após uma subida daquele calibre, inevitavelmente, viria uma descida igualmente extenuante. Os joelhos e os tornozelos - especialmente os meus tornozelos, já bastante desgastados por percalços e acidentes vários, ao longo de uma vida de aventuras - viriam a queixar-se lá em baixo, na civilização. O dia terminou com uma tareia magnífica. Algo que por aquelas bandas é conhecido como “Una menuda paliza!” 
Que mais se podia desejar?


Entretanto, Ordesa sussurrava… 


Paulo Roxo


A seguir: PIRINÉUS - RESPIRAR! Acto II


Topo da via "Momentos":





3 Comments:

sesa said...

Muito bom! parabéns por mais uma abe(n)rtura!

Miguel Grillo said...

Raios, não percebo!!!
Não consigo entender como após tantos anos de convivência, tantos anos de aventuras comuns, tantos anos a ler os seus rasgos literários, tantas partilhas... ainda fico impressionado, para não dizer mesmo emocionado com a qualidade deste teu relato... ou melhor, desta pequena-grande peça literária... desta voz interior a exaltar liberdade!

Por momentos... estou esmagado por uma saudade irrecuperável...

Parabéns por esta pequena aventura, e fico a aguardar pelos próximos dois capítulos.

Um grande abraço

Miguel Grillo

Anónimo said...

Que comentário tão simpático Miguel. Mas eu ainda acho que a palavra "irrecuperável" não existe! Um abraço deste teu amigo de aventuras.

Paulo Roxo