quinta-feira, setembro 11, 2014

Existimos?



 EXISTIMOS?



Deixamos cair as mochilas junto à base da parede, um muro compacto, espectacular e alto.
Olho para cima e imagino as várias hipóteses. Linhas imaginárias cruzam o granito negro e iluminam-se, como fios delicados de néon. Os olhos perdem-se na morfologia, na inquietação das formas rochosas que a Natureza desenhou.
“Por ali?”
“Mmm, talvez.”
“E que tal aquela, que te parece?”
Embora o sítio tenha sido visitado anteriormente e, sabendo que existirá pelo menos um par de vias abertas, mesmo assim, quase tudo está por escalar.
Encontramo-nos junto a uma parede remota, numa qualquer cordilheira perdida… ou então, talvez não seja bem assim… 




Na verdade, encontramo-nos na “nossa” Serra da Estrela.
O Cântaro Raso apresenta uma face norte sugestiva e, separam-na da estrada pouco mais que dez minutos de caminhada.




 

O primeiro lance da “Vertical ao Raso” ultrapassa uma espécie de lastra de fissura fina.
Os micro-friends e entaladores mais pequenos são aqui imprescindíveis. Esta secção inicial constitui o “crux” da via. A segunda parte deste lance cruza uma evidente diagonal em fissura, por baixo de um tecto musgoso.



A Serra da Estrela possui um manancial enorme de vias de grande qualidade. Sobejam as escaladas de vários lances de auto-protecção e a escolha cobre todo o espectro de níveis de dificuldade e exposição. Ou seja, existem opções para todos os gostos e feitios.
Fazendo justiça às pessoas que escalaram no Cântaro Raso anteriormente, deixo uma breve referência aos factos conhecidos.
Provavelmente, o primeiro escalador a aventurar-se nesta parede foi o Paulo Alves, autor de vias espalhadas pelos quatro cantos do país, abertas sobretudo nas décadas de 80 e 90, do séc. XX. O Paulo não deixou qualquer registo escrito dessa misteriosa incursão, nem é conhecida a linha percorrida pela sua via.
Por volta do ano 2002, a cordada formada pelos Américo Santos, Pedro Pimentel e Luis Pinheiro, decidiu-se a visitar o Cântaro Raso e dessa incursão nasceu uma via chamada “Bichos ao nascer dos faróis”.


O segundo largo escala uma “pseudo-fissura” com tiques de “Off-widht”. São passos estranhos que apenas servem para aceder ao verdadeiro “sumo” da via.

 

O terceiro e último lance ultrapassa uns bons 30 metros verticais formados por diedros paralelos e termina com uma fissura que possui tanto de difícil como de grotesco. De todos modos, é um lance espectacular que bem merecia uma boa escovagem para ficar ainda mais “desfrutón”.




Salvo algumas excepções honrosas, a escalada na Serra da Estrela parece estar destinada ao ostracismo e a ser eternamente considerada como “campo de treinos” para voos mais altos. Curiosamente, alguns desses “voos mais altos” não passam da Serra de Gredos, ou Galayos, na vizinha Espanha, cujas características (sob todos os aspectos) são muito semelhantes à Estrela. A escalada na nossa serra, poucas vezes foi tida como um fim em si, demasiadas vezes foi considerada como uma actividade secundária, como um meio para algo mais grandioso. Talvez por estes motivos, seja muito raro encontrar alguém a repetir qualquer das vias que a serra oferece.
Muitas vezes penso que não sabemos dar o devido valor às nossas melhores qualidades, mesmo quando estas se encontram escarrapachadas diante dos nossos olhos. 





O resultado do abandono está à vista (para quem quiser ver): muitas vias já se encontram bastante sujas e, o malfadado musgo, ganha terreno novamente, a passos largos.
Tomar consciência deste desleixo aparente, provoca-me alguma melancolia, quase tristeza. É como se o esforço de uns poucos escaladores, provenientes de diferentes gerações, que se entregaram com dedicação e carinho, a abrir, limpar e equipar vias neste cantinho, estivesse destinado a um inevitável esquecimento. É como se, com o passar dos anos, todos os entusiasmos, os medos, as alegrias e as emoções, que conduziram ao nascimento daquelas vias, se desvanecessem lentamente no espaço e no tempo. No futuro próximo, as memórias das aventuras passadas estarão definitivamente desaparecidas e, a partir desse momento, será como se nunca tivessem existido. 




 
 
O primeiro lance da “A Apertadinha” começa com uma escalada relativamente acessível e “normal”, para logo entrar no mundo misterioso das trevas… e das chaminés apertadas e impossíveis de proteger!

Depois de alguns momentos divertidos (leia-se: angustiantes), coloridos com um nível refinado de impropérios, escalámos uma vez mais o segundo lance da “Vertical ao Raso” e, após a a saída final, atravessámos para a esquerda até alcançar as cordeletas da reunião de rapel.



O terceiro lance, de fissuras evidentes e perfeitas, constitui o “ex-libris” da via e, ilustra bem algumas das razões pelas quais escalamos.

O último lance, mais curto, transpõe um pequeno diedro evidente, uma fenda vertical de escalada delicada e uma fissura mais fina e mais exigente, que pode ser evitada, contornando pela esquerda, por terreno bem mais fácil.




Há muito pouco tempo ouvi alguém dizer: “Sem uma perspectiva histórica, a actividade respectiva não existe.”
Por vezes pergunto-me: será que a Escalada e o Alpinismo realmente existem em Portugal? Não estaremos eternamente a reinventar as origens da nossa actividade? Onde está a história da escalada portuguesa? Quem foram os seus protagonistas? Quem importou? Quem marcou? Quem inspirou?
“Eu não me queixo muito! Já viste que podemos andar por aqui tranquilamente e escolher qualquer via ou parede, sabendo que não iremos encontrar ninguém? Hoje em dia, no mundo, é muito raro encontrar um sítio assim!” – a ironia da Daniela reflectiu, sem querer, uma lógica implacável e com um fundo de verdade.
Analisando friamente a situação, considerando seriamente a outra cara da moeda, realmente, ao nível estritamente pessoal não tenho razões para reclamar. Encontrar um tesouro destes, praticamente por explorar, à porta de casa, é um luxo raro que – estou convencido – faria a inveja de muitos bons escaladores.
A um nível mais lato, de registo, de restauração e preservação da memória, temo que temos muito a perder. Considerar o passado, permite-nos encarar o presente a pensar no futuro.

A Escalada realmente existe neste país?


 

Foram equipadas duas reuniões de fortuna para possibilitar a descida em rapel. A primeira reunião possui dois Pernes M8 e a segunda, duas cordeletas à volta de uns blocos sólidos.

Salvo o equipamento existente nas reuniões de rapel, nas vias apresentadas não existe qualquer outro tipo de equipamento fixo.

Caso se opte pela descida em rapel, é muito conveniente estar prevenido com algumas cordeletas para substituir as existentes.




Afastando estes pensamentos melancólicos, escolhemos a linha que iriamos tentar escalar. Esperavam-nos algumas horas de incertezas, de medos, de riscos, de alegrias e entusiasmos. No calor da acção é muito fácil esquecer os sentimentos negativos, os pensamentos existenciais e, simplesmente… ser, desfrutar.
Os dois dias passaram e, o resultado foi a escalada de duas novas vias na face norte do Cântaro Raso. Anunciamos como “novas vias” mas, sem certezas absolutas pois, podem bem já ter sido escaladas. Alguém pode ter já percorrido estes mesmos itinerários antes de nós. E, antes desse alguém, outro alguém, pode também ter percorrido esses mesmos itinerários. Não o sabemos. Porque, sem qualquer referência, sem conhecer sequer uma linha da história, sem conhecer algumas das incertezas, dos medos, dos riscos, das alegrias e entusiasmos vividos pelos nossos antecessores, é como se estes, simplesmente… nunca tivessem existido.


Paulo Roxo


Os croquis (para que existam!)





 

 
 

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