terça-feira, janeiro 21, 2025

Muralha

MURALHA


1990. João Simões durante a abertura do segundo lance da via "Oceânica"

Na Serra da Arrábida, desde o miradouro natural do sector de escalada desportiva do Fojo dos Morcegos, é possível observar a grande faixa de falésias de aspecto decomposto que se estende para leste. Na faixa de calcário que encabeça essas falésias, uma parede em especial realça a sua presença. Trata-se da MURALHA, um paredão amarelado que atrai o olhar de qualquer escalador amante da aventura. Nos anos 80, o Fojo constituía, por excelência, a escola de treinos para um determinado grupo do qual fui membro, o Grupo de Montanha do Barreiro. Sempre que descíamos o trilho empinado que conduzia ao sector, o perfil da “Muralha” (como a batizámos então) ia ganhando forma, até que tomava a sua real dimensão quando a avistávamos desde a chamada “varanda do Fojo”.

Naqueles tempos, aquele muro vertical impressionava-me sobremaneira e mexia de tal forma com a imaginação que não tranquilizei até ter a possibilidade de lhe tocar com as minhas próprias mãos. Este sentimento era acompanhado pelos meus dois companheiros de cordas da altura. Também o Fernando Brito e o João Simões sonhavam escalar aquele pedaço de rocha provocador.


1990. Paulo Roxo a inaugurar o quarto lance da "Oceânica"


1990. João Simões na saída técnica da "Oceânica"



Em 1989 surgiu a oportunidade. Eu e o Fernando Brito juntámos vontades e equipamento (quase todo do clube) e resolvemos tentar a nossa sorte. Destrepámos o Fojo, atravessámos as praias pedregosas, eternamente torturadas pelo mar e, iniciámos a nossa escalada por um afiado esporão que constituía a única entrada de rocha razoável, em toda a extensão de calcário decomposto. Dois lances nervosos (especialmente o segundo, constituído por rocha realmente má e terreno exposto, praticamente improtegível), colocaram-nos na grande plataforma de matagal que antecede a parede principal da “Muralha”. Após um retempero de energias e de um acalmar de nervos, retomámos a nossa escalada, desta vez por terreno muito mais sólido. O fim daquele dia viu-nos no topo da falésia, muito cansados, desidratados mas, mais que tudo, felizes. Acabáramos de “conquistar” a tão sonhada “Muralha”. O Fernando lembrou-se de um famoso poema épico de Álvaro Campos (uma das várias entidades de Fernando Pessoa) e a via foi batizada com o nome inspirado de “Ode Marítima”.


1990. Fernando Brito, numa pausa "para um cigarrito" na via "1313"


1990. João Simões a assegurar e o Fernando Brito a escalar, durante a abertura da via "Noite"



A partir daquela primeira ascensão, inevitavelmente, começámos a estudar os outros aspectos da parede. No entanto, o acesso desde o mar foi considerado demasiado perigoso e rapidamente ficou descartado. A partir daí realizámos o acesso sempre desde o topo. Para as seguintes ascensões, o João Simões juntou-se à cordada da via original e, a 5 de maio de 1990, inaugurámos a via “Noite”, cujo próprio nome denúncia o pequeno épico final de uma saída nocturna e às apalpadelas. Nos dias 19 e 20 de maio desse mesmo ano, caíram as vias “Rota do vento” e a “Oceânica”. O doblete ofereceu-nos o privilégio de poder realizar dois maravilhosos bivaques no topo da “Muralha”, à luz de milhões de estrelas brilhantes da Via Láctea.


1990. Paulo Roxo de martelo em rite, a pitonar o segundo lance da "1313"


1990. Paulo Roxo durante a abertura da "1313"



Retornámos a 16 de junho de 1990 para escalar a via “1313”. O nome foi inspirado no Irmão Metralha que, nas histórias de banda desenhada do Tio Patinhas (Walt Disney), era o vilão mais trapalhão e azarado. Durante aquela escalada recordo-me de termos perdido vários pitons de rocha e um martelo que, na sua queda, razou a cabeça do Fernando (naquele tempo o capacete não estava na moda). No fim, pareceu-nos uma sucessão de azares adequada para merecer aquele nome.

No ano seguinte (1991), desta vez sem o nosso companheiro João, o Fernando Brito e eu escalámos a “Joshua Tree” e, finalmente, ainda encordado com o Fernando, inaugurámos a última via da década dos anos 90. A “Sentinela” nasceu a 7 de abril de 1996. Esta última aventura marcou o final de uma época romântica de sonhos rebeldes de juventude sob o mote “dureza total”, um cunho privado que pretendia realçar a nossa forma de encarar a montanha e a escalada.


1990. João Simões assegura e Fernando Brito "limpa" um dos lances de escalada 


1990. Paulo Roxo durante a abertura do segundo lance da via "Noite"


Durante muitos anos a parede da “Muralha” ficou esquecida, longe da vista e dos corações dos escaladores, a maioria embarcados na recente expansão da escalada desportiva. Longe também da minha visão, surgindo, aqui e ali, apenas nas memórias das belas páginas de vivências. Com o tempo, a cordada desfez-se. Até que, no ano 2007, agora na companhia da Daniela Teixeira, resolvemos revisitar o sector. Durante essas visitas, repetimos algumas daquelas velhas vias, surpreendidos pelo bom estado aparente do equipamento fixo, constituído por vários pitons e spits, apesar dos anos que nos separavam das primeiras ascensões. Ainda em 2007 equipei a via “Pânico, horror e dor”, que se revelou durinha e um bom objectivo de aventura “desportiva” para o futuro, uma vez que se encontra bastante equipada. Só realizámos uma tentativa de a encadear e tivemos de nos agarrar a algumas protecções para a ultrapassar e sair por cima. Até hoje, a “Pânico, horror e dor” permanece sem uma ascensão absoluta em escalada livre.

No dia 10 de fevereiro de 2008, a Daniela e eu abrimos a bela “Yellowviper”, que parte desde o meio da parede (partilhando os primeiros lances com a via “Noite”) e ultrapassa uma semi-fissura que corta na vertical uma placa compacta e lisa.

Pouco depois, a “Muralha” voltou a afundar-se no obscurantismo, durante vários anos.


1990. João Simões a escalar o fantástico diedro do terceiro lance da "1313"


1990. Fernando Brito e Paulo Roxo a descansar na famosa plataforma de acampamento, a meio caminho entre a estrada e o Fojo dos Morcegos


Chega o ano de 2013 e surge alguma curiosidade por parte de alguns escaladores que decidem verificar se a “lenda” que atesta a “Muralha” como um lugar de rocha aceitável é verdadeira. Entre eles apareceram João Gaspar, Fernando Pereira e Nuno Pinheiro. A confirmação da parede por parte destes escaladores inspira inclusivamente a inauguração de duas novas vias, pelas mãos do Fernando Pereira e do Nuno Pinheiro. Assim, nasceu a “Javali, aperta aqui”, um único lance que ultrapassa o atraente muro amarelo entre a via “Noite” e a “Sentinela”. Ainda nesse ano a mesma cordada abriu a “O Elefante de Aníbal”, um itinerário de três lances que se cruza com algumas das vias históricas da parede. Durante o processo dessas novas escaladas Fernando e Nuno aproveitaram para reequipar as reuniões da “Ode Marítima”, que constitui a linha actual de rapel para aceder a todas as vias.


Em 2008, durante a abertura da "Yellowviper"


Em 2008, durante a abertura da "Yellowviper"


Daniela Teixeira em 2008, durante a abertura da "Yellowviper"


No momento da publicação deste artigo (janeiro de 2025), a magnífica falésia da “Muralha” permanece um lugar tranquilo e, de certa maneira, esquecida da generalidade da “população”. Sim, trata-se de uma parede “vintage”, reservada apenas a amantes da escalada clássica (no melhor sentido da palavra) e uma bela varanda para o infinito oceano Atlântico. Existindo, talvez, como um testemunho, hoje em dia cada vez mais raro, da aventura em estado selvagem.


Paulo Roxo



TOPOS


Apresentam-se todas as vias existentes e, para a maioria das vias, os respectivos croquis por ordem numérica mas não tratados, ou seja, na sua forma original. 
















quinta-feira, janeiro 09, 2025

Ramazotti

RAMAZOTTI, UMA AVENTURA ESQUECIDA

 


João Simões em plena escalada dos primeiros lances da via "Alampa"


Esta é a história resumida de uma via obscura numa das mais bonitas falésias de calcário da Serra da Arrábida.

Em 1988, eu e o João Simões começámos a “namorar” a impressionante parede de extra-prumos góticos que se ergue por cima da famosa gruta dos Morcegos, no Fojo da Arrábida. Na altura achámos ser ainda muita areia para a nossa camioneta e resolvemos seguir um regime apertado de escaladas preparatórias. Repetimos algumas vias do Espinhaço, no Cabo da Roca e abrimos uma nova via no Penedo da Noiva, a “Dança da Chuva”. Esta última, devido ao seu elevado grau de compromisso e aventura, encheu-nos de confiança para tentar o projeto da grande parede da Arrábida.


Paulo Roxo a utilizar os velhos pitons do primeiro lance da "Alampa", anos antes de ter sido retroequipada com plaquetes por outro escalador


João Simões a escalar o segundo lance da "Alampa"


O início do mês de maio de 1989 viu-nos suspensos nos primeiros pitons ferrugentos da via “Alampa”, um itinerário extraordinário cuja existência não conhecíamos e sobre o qual, apenas anos depois, viemos a saber que tinha sido terminado em 1979 por Paulo Alves, Mário Cardoso e Carlos Teixeira. A “Alampa” ultrapassa os primeiros tetos da grande abóboda até um pequeno jardim que alcunhámos de “Éden” e depois desvia-se para a esquerda, saíndo por um evidente diedro vertical, muito para a esquerda dos últimos tetos que caracterizam o final da falésia e que constituíam o objetivo irresistível da nossa investida.


Um dos monstruosos rapeis das grandes abobodas, durante as retiradas da "Ramazotti". Saíamos sempre pela travessia do "Corrimão do Fojo"


Uma pausa para hidratar


Durante esse ano de 1989, investimos alguns fins de semana a repetir (sempre de baixo, nunca com reconhecimento desde o cimo) a primeira parte da via “Alampa” e a escalar a nossa própria via, que se ergue a partir do meio da parede. Durante essas aventuras sofremos vários percalços, como uma enorme queda do João no terceiro lance da “Alampa”, devido a quebra de uma velha cordeleta, atada a uma sólida (!) cunha de madeira. Também “conseguimos” cometer a proeza de partir um spit (mal colocado) numa das reuniões da nossa nova via, um incidente que nos ofereceu um bom susto. Previsivelmente, foi o grande teto final que proporcionou as maiores dificuldades. Num dos ataques, entre a escalada desde o nível do mar e a abertura quase total do grande teto, consumimos 22 horas seguidas de trabalho, para terminar esgotados, com os rins desfeitos e desistir de terminar a via naquele dia. Finalmente, a 17 de fevereiro de 1990, após 12 horas de escalada, o João Simões e eu, pudemos dar o grande abraço de vitória no cimo da mais fantástica falésia da Arrábida, inaugurando assim a via “Ramazotti” e vencendo o grande teto que fervilhava a nossa imaginação.


Riso nervoso do João Simões, após a sua grande queda no vazio. Subida obrigatória com jumares


João Simões desaparece por detrás das formações caóticas das grandes abobodas


Um descanso a meio da abertura. Estilo "Rebuffat"


Paulo Roxo a ultrapassar o Grande Teto horizontal, o penúltimo lance da "Ramazotti" e o mais trabalhoso


A reunião que antecede o Grande Teto, que chamámos "Hotel Belavista". Passámos aqui algumas noites, suspensos em hamacas de rede


João Simões a trabalhar no Grande Teto


Vitória!


Algumas semanas mais tarde, voltámos a repetir o itinerário, desta feita com o equipamento todo ajustadinho e sem a parafernália necessária para as aberturas, reduzindo o horário da ascensão total para as oito horas.


 

Após a escalada, o merecido descanso


Algumas curiosidades da aventura:

- Descobrimos uma pequena garrafinha, suspensa num arbusto da plataforma “Éden” (quarta reunião da via “Alampa”), com uma mensagem no seu interior que ditava o seguinte:

“Por aqui passaram os alpinistas do C.N.M. (Clube Nacional de Montanhismo de Lisboa) com os tomates na mão e o coração… (ilegível)… Noite de luar, nuvens cheias, a feliz cordada abaixo mencionada, Rui Neves, João Cardoso”.

A mensagem datava de 8 de dezembro de 1981, provavelmente a última repetição daquela escalada antes da nossa (1989).

- Durante a abertura, realizámos um bivaque muito incómodo na plataforma “Éden” e dormimos algumas noites suspensos em hamacas de rede, na reunião que precede o grande teto. Batizámos essa reunião de “Hotel Belavista”.

- Que eu saiba, até à data de hoje, a combinação “Alampa + Ramazotti” foi repetida quatro vezes. Em 1995 fiz a escalada com João Garcia. Em 1996 foi repetida por José Carlos e João Schiapa. Em 1996 ou 1997 foi escalada por Ricardo Nogueira e Miguel Loureiro. No dia 1 de dezembro de 2003, o Miguel Grillo e eu formámos cordada para a última escalada conhecida.


Paulo Roxo

 

Paulo Alves, durante a abertura da "Alampa", Anos 70



Miguel Grillo na reunião que antecede o Grande Teto, durante a repetição de 2003


Miguel Grillo a escalar o terceiro lance da "Alampa". 2003

 



Paulo Roxo a escalar o Grande Teto, durante a repetição de 2003


Os topos








segunda-feira, julho 18, 2022

Uma Arte Perigosa - O livro

 UMA ARTE PERIGOSA

 




Durante o período de recuperação de um acidente de escalada em rocha que resultou numa perna partida, Paulo resolveu dedicar o tempo involuntariamente disponível a escrever sobre as suas aventuras de montanha, algo que já desejava fazer há muito tempo.

O resultado foi um livro que fala de viagens extremas a lugares exóticos, seguindo de mão dada com uma viagem interior que se alimenta dos entusiasmos e de inspiração nas gestas de grandes pioneiros exploradores.



A paixão incontrolável pelo absurdo aparente de escalar montanhas perigosas em lugares perdidos teve início em terras lusas, na cidade industrial do Barreiro, onde, desde muito cedo, o autor perdia-se a admirar as nuvens que corriam no céu, imaginando montanhas geladas e imaculadas.

“Uma Arte Perigosa” é uma obra biográfica, contada na primeira pessoa, que vagueia por sonhos tornados realidade. Nas suas páginas encontram-se os relatos emocionantes de escaladas épicas e ascensões de alpinismo que acabam por fundir-se na resposta a uma questão insolúvel: Porquê?



A procura da sua quimera muito pessoal levou o autor a transformar em palavras algumas das aventuras vividas ao longo de trinta e cinco anos, em várias cordilheiras do mundo, desde os Pirinéus aos Alpes, passando pelos Andes e Himalaias. Os relatos percorrem ainda as escaladas iniciais nas ensolaradas falésias atlânticas do Cabo da Roca e Serra da Arrábida, durante os primeiros anos de exploração e conquista de “pequenas Luas”, paredes desconhecidas, nunca antes tocadas. Esse período de descoberta, cheio de felicidade e peripécias arriscadas, forjou o caminho para as grandes montanhas do mundo e para os cumes ilusórios — cujas neves eternas nunca conheceram os pés humanos —, que percorreu na companhia da alpinista Daniela Teixeira, “cúmplice” de cordas e de vida.

Cumes sem nome ou de nome impronunciável deixaram-se subir, outros nem tanto. Alguns episódios dramáticos assombraram mesmo o autor, como indicia esta passagem do livro: “Em desespero observei o helicóptero a afastar-se em alta velocidade, vale abaixo, até voltar a ser apenas um murmúrio, um pontinho vermelho no horizonte para, finalmente, desaparecer por detrás das montanhas. Naquele momento o mundo caiu-me aos pés. Chorei dominado pela revolta, depois, o desespero, depois, a aceitação. Depois… o silêncio gelado voltou a inundar tudo.”

Contudo, todas as aventuras moldaram o seu espírito, que nunca cessou de buscar uma razão para a sua obsessão.


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paulo.alpinismo@gmail.com




quinta-feira, outubro 07, 2021

Cho-Oyu, 2006

CHO-OYU, 15 anos depois


Texto publicado a 20 de Outubro de 2006

 

Dia de cume, 7 de Outubro de 2006



Dia 7 de Outubro de 2006, 13h00. A Daniela é a primeira portuguesa no cume de um 8000.

Pela meia-noite e meia, quando meti a cabeça fora da tenda, já 6 luzinhas tomavam a direcção do campo 3 enquanto a lua iluminava o caminho.

Os 2 rapazes filipinos estavam já também de saída.
A ideia do sherpa Lakpa, era dar a esta expedição oxigénio desde o campo 3.
Eu e as duas raparigas, acabamos por sair tardiamente, cerca das 2:30.
Preocupava-me já o atraso e o vento gélido que soprava não era um bom pressagio. Acelerei o passo e uma hora depois percebi que os dois rapazes filipinos estavam demasiado lentos para fazer cume. Cerca de 15 min. depois, 3 italianos baixavam demovidos pelo frio e pelo vento. Diziam que não se queriam meter em ventos de 70km/h que se faziam sentir acima do campo 3. 70km/h era exagerado, pois as previsões que tinha eram de cerca de 40 para o cume, pelo que decidi continuar. Perguntei-lhes por Julia, uma alpinista do grupo, disseram-me que teria decidido continuar com outros 2 italianos.
Cheguei ao campo 3 cerca de três horas depois e decidi parar meia-hora para recupar, comer e beber algo. Aí, dois Espanhóis exclamaram: "Hola Portuguesa, vienes del campo 2?"
Respondi afirmativamente. Disse-lhes que queria descansar um pouco, mas ao ver que se estavam a preparar para subir resolvi aproveitar a "boleia". Não queria continuar sozinha.
O dia começou a clarear e acabei por sair do campo 3 com Rafael, que se viria a tornar em "São Rafael" pelo que se passou a seguir. Subíamos ao mesmo ritmo. Após uma vertente, chegamos a uma banda de rocha (a Yellow Band) que é necessário transpor.


Daniela no campo base, após escalar o Cho-Oyu, a montanha que está por cima da sua cabeça.

Está tudo equipado com cordas fixas. No entanto, àquela altitude, cerca de 15 ou 20 metros de uma fácil escalada em rocha tornam-se num verdadeiro desafio, especialmente porque, para além do arfar, é necessário mexer em material, o Jumar (ascensor), com umas enormes e desajeitadas luvas de penas sem dedos e, no meu caso, com um bastão em punho. Vagarosa e desajeitadamente, lá transponho este obstáculo. No final, há que remover o Jumar, passando-o para a corda seguinte. Neste processo, sou obrigada a tirar uma luva, ficando só com uma fina luva interior. De repente, deixo cair a luva. Gelasse-me o coração, pois sei que sem a luva não posso continuar. Se o fizesse, iria congelar os dedos. Olho para baixo e vejo Rafael a apanhar a minha luva. Espero um pouco até que este me alcança, com a luva entre os dentes. Agradeço emocionada, sem ele nunca poderia continuar.

Depois deste incidente, apesar do frio intenso, a minha motivação parece ter-se renovado. À medida que subo, as pendentes parecem multiplicar-se. Avanço e distancio-me de Rafael e dou por mim novamente sozinha, a pensar se será ou não possível alcançar o cume desta montanha, com o vento forte que se faz sentir. Quantos irão à minha frente?
Tenho a certeza que pelo menos 3 italianos, que saíram bastante antes, já que não passaram por mim a descer. Isso dá-me forças para continuar. Um pouco mais à frente, vejo mais duas pessoas, que, como eu se movimentam vagarosamente.


Campo um do Cho-Oyu, 6400m.

De repente, vejo o fim das cordas fixas e o sol começa a iluminar-me. Penso que me irá aquecer, mas engano-me, pois o fim das cordas fixas significa a diminuição de pendente e logo uma maior exposição ao vento.

Paro para beber um pouco de sumo e tentar engolir alguma coisa. O sumo está já bastante frio e quase intragável, apesar de muito protegido. De comer, apenas consigo espremer um gel meio energético, tudo o resto congelou. Por esta altura, perdi já a sensibilidade nas pontas dos dedos de uma mão, mas não me preocupo muito porque percebo que as mexo bastante bem.
Quero acreditar que no fim da vertente vai surgir o que dizem ser o longo planalto do cume, mas quanto mais subo, mais a montanha insiste em esconder-me o dito planalto. Não faço ideia das horas, não posso retirar a luva para ver o relógio, o intenso vento tenta demover-me, mas penso "já que cheguei até aqui, continuo um pouco mais! Pelo menos até que os italianos que estão à frente se cruzem comigo ao descer”.
Nisto alcanço outro alpinista espanhol e pouco depois entramos os 2 no tal planalto do cume. As nuvens à minha frente movem-se depressa e a visibilidade não é perfeita. Os 40km/h que o Vitor Baía previa, eram ali cerca de 50 ou 60, duros de enfrentar. Penso que já deve faltar pouco, quando vejo um vulto a caminhar em minha direcção. Quando nos cruzamos, reconheço um dos espanhóis e pergunto "quanto tempo para o cume?" ao que me responde "2 a 3 horas". Surpreendo-me com a resposta e fico ali parada a pensar que, com aquele vento não vou conseguir. Faço um esforço para ver as horas e reparo que são cerca das 12:30 (hora nepalesa). Penso que se demorar 2 a 3 horas poderei ter sérios problemas. Pegadas apagadas pelo vento naquele imenso planalto com fraca visibilidade, podem significar perder-me por ali. Fico ali parada, durante o que penso serem 1 ou 2 minutos, a pensar o quão larga é a distância e tão curta a altitude. Desisto, volto as costas e penso que não vale a pena arriscar. Minutos depois, cruzo-me com um espanhol que vinha a subir e que me diz "Não, não! Daqui é no máximo uma hora. Vamos! Tenho um amigo mais à frente!". Isso dá-me novo animo e decido arriscar. O tipo parecia confiante. Novamente me ponho a caminho e, passado pouco tempo surge, vindo do cimo, o tal amigo feliz, dizendo "são mais 10 min!". Esses 10 minutos pareceram-me 5 e, de repente, estava ali, um cume que não parecia cume, de tal forma se encontra dissipado no meio de um planalto com nuvens que se movimentam rápido e com a neve que um intenso vento levanta.
Eram as 13:00. Sentados no chão, estavam Simone e Julia (italianos).
Felicitamo-nos. Olho em volta e avisto umas velhas bandeirinhas de oração. Atrás de mim, jaz no caminho uma garrafa de oxigénio laranja e um cantil azul. Há algum lixo no cume.
O Everest que era suposto ver, estava tapado pelas nuvens.
Faço de imediato uso do meu telefone satélite. Primeiro tenho a sorte de falar com o meu pai: "Pai, estou no cume! Consegui!" grito eufórica. Depois envio uma mensagem ao Pedro Cuiça para colocar no site da expedição. De seguida, peço aos italianos que me filmem um pouco, enquanto balbucio algumas coisas que me vêm à cabeça. Filmo um pouco o envolvente e quando peço que me tirem umas fotos, a minha máquina recusa-se a funcionar, acusando falta de bateria. Não posso acreditar. Nisto chega o espanhol que estava mesmo atrás de mim e peço-lhe para tirar umas fotos com a sua câmara, "Claro!" responde. Pouco depois vejo Rafael. Os dois espanhóis conhecem-se. Peço também que me tire umas fotos, ao que este acede. Pouco depois inspeciono o meu cantil. Tal como temia, descubro meio litro de líquido congelado. Até a comida que trazia junto ao corpo congelou! Resta-me voltar para baixo rapidamente e fugir ao intenso mau tempo. Penso apenas que o Vítor Baía tinha razão, não era dia de fazer cume... apesar de já estar feito!
O meu primeiro 8000... em tão duras condições.


Tenda messe no campo base, sob uma das tempestades que assolaram a montanha.

Não duvido que baixarei bem e depressa ao campo 2, pois sinto uma enorme energia interior e uma intensa satisfação. Chego a esquecer que apenas ingeri meio litro de sumo e um pacotinho de gel, surpreendo-me como me sinto tão bem.

Vejo os restantes a descer devagar e extenuados, eu estranhamente, pareço agora ligada à corrente eléctrica!"
Rapidamente me ponho no campo 2 e, na última vertente, cruzo-me com 2 filipinos. Como os vejo exaustos, percebo que algo correu mal.
No campo 2, Noell (uma das filipinas) recebe-me de braços abertos e felicita-me. Estranhamente, o efusivo Lakpa mal põe a cabeça fora da tenda. Com Pasang passa-se mesmo. Dizem-me pouco depois que Regie, o líder da expedição, ficou com cegueira das neves e os 2 sherpas tiveram de o descer amarrado a cordas, pelo que ambos estavam extenuados.
O ambiente estava pesado.
Como o cansaço foi contagiante nessa noite, apenas eu e Noell cozinhamos umas massas para o jantar, mas já não houve paciência para fundir gelo para fazer água. Assim, fiquei-me com pouco mais de meio litro nesse dia. A consequência foi uma enorme dor de cabeça nocturna! Karina demorou uma eternidade para descer a última vertente, sentando-se de 5 em 5 passos. O que se desce em cerca de 15 ou 20 minutos, deve ter-lhe custado umas 2h.
Pela noite, ainda tive o enorme prazer de falar com os meus pais e com Ivan Vallejo que, do outro lado do telefone, estava tão contente com a notícia, que parecia ter sido ele a fazer cume.

 

Daniela Teixeira