sábado, novembro 17, 2018

Inescaladas 2018 - Acto II

INESCALADAS 2018
ACTO DOIS


O Tiago Faneca na primeira parte da "North Face Indirect".


O campo II foi instalado aos 5550 metros. Conseguimos encontrar um lugar razoável na moreia do glaciar, aproveitando o pedregal de xisto desprovido de neve. Pelo menos durante a noite, evitaríamos o frio vindo do chão de gelo que tantas vezes se entranha nas costas, atravessando colchonetas e sacos de dormir.


Campo II (5550m). A "Shan-Ri" é a montanha que se avista por cima da cabeça do Pedro Costa, em pé. 


Horas antes, tínhamos desmontado o campo I - voltando a carregar 25kg de equipamento na mochila de cada um - e atravessámos a primeira parte do glaciar desconhecido, que escorrega desde os picos misteriosos que cercam o vale. O nosso ritmo lento de ascensão foi por vezes interrompido por passagens obrigatórias de rios que jorravam impetuosos, para se perderem de vista, engolidos por algum túnel, escavado pela própria água no gelo do glaciar.


Rios gelados para saltar.


Desde o campo II já se avistavam todas as montanhas do vale. Analisando o panorama, a decisão sobre que montanha tentar foi rapidamente tomada. Ficaram fora da equação dois picos bastante secos e com passagens rochosas com um aspecto, no mínimo… trabalhoso! Sobrava a penúltima montanha, com uma aresta convidativa e uma face de neve e gelo que não aparentava grandes dificuldades.
No dia 31 de Agosto, iniciámos a aproximação às 4.30 da manhã ainda meio estremunhados pela noite mal dormida.
O glaciar revelou-se bastante ameno, sem qualquer crevasse que pudesse constituir algum perigo. No entanto, o facto do glaciar ser tão linear levou a um engano de percepção da distância. “Creio que nos vamos colocar na base da montanha em uma hora, hora e meia.” Comentara convencido, na tarde anterior. No final, tardámos três horas a alcançar a base da montanha.


O glaciar muito pacifico não ofereceu qualquer dificuldade.


Ao mesmo tempo que mastigávamos uma barra energética de gosto duvidoso, observámos a parede de gelo que se erguia por cima das nossas cabeças. A via que iriamos seguir foi escolhida rapidamente e cruzava a face norte da montanha.
A primeira rampa de gelo foi escalada em “ensamble” utilizando uma táctica de alpinismo pouco ortodoxa. Eu liderava a primeira cordada e ia colocando parafusos de gelo como protecções intermédias, o João Lopes retirava a corda dos mosquetões mas, não retirava os parafusos que seriam aproveitados pelo Tiago Faneca que liderava a segunda cordada. O Pedro Costa estava encarregado de desmontar tudo. 


Os primeiros 100m de via foram realizados em "ensamble", com alguns parafusos de gelo intermédios como segurança.


O Pedro Costa, quase a alcançar a reunião.


Após cem metros montei uma reunião num esporão rochoso com umas plataformas exíguas que pareciam constituir um ponto de repouso razoável, para duas pessoas! Organizar quatro tipos naquele poleiro transformou-se numa tarefa de difícil resolução e, claro está, as cordas não tardaram a ficar enroladas a toda a gente, aumentando assim a confusão. “Epá, levanta aí essa perna!” Ordenava um. “Passa a corda por cima da cabeça… chiça, ficou presa na mochila… outra vez!” Dizia outro. “Ei! Não pises a corda com esses crampons!” Alarmava o terceiro. Assim por diante e no meio do pequeno caos instalado, perdemos imenso tempo na primeira reunião da via. 


O João Lopes num momento de repouso na exígua reunião rochosa.


Finalmente, saímos do novelo de cordas e reatámos a ascensão. Para tentar ganhar tempo, resolvi arfar um bocado e acelerar a escalada dentro dos limites físicos do grupo. Com efeito, a ascensão retomou um ritmo normal e algumas horas depois erguíamo-nos na aresta leste, após escalar a secção mais técnica da via. A parede norte já estava no papo e faltava ultrapassar a aresta de neve.


A escalada prosseguia. Aqui numa reunião mais alta, antes de alcançar a aresta leste da montanha.


“Ali, muita atenção! Caso alguém escorregue, deve dar o alarme com um grito forte para que o companheiro de cordada tenha tempo de reacção. A reacção é saltar para o outro lado da aresta! Lembrem-se, têm mesmo que saltar!” Dei um enfase especial à última mensagem, pois em caso de tropeção a única forma de salvação seria o salto controlado do parceiro para o lado oposto da aresta. Ao nível técnico, contudo, parecia uma travessia muito fácil.
Uma vez mais, dividimo-nos em duas cordadas e a travessia realizou-se sem sobressaltos. Todos desfrutámos da beleza e da estética daquela aresta imaculada.
Após uma última rampa de gelo, atingimos o cume rochoso da montanha. O GPS marcava a altitude de 6197 metros. O céu estava limpo e não corria uma brisa. Avistavam-se montanhas a perder de vista e ficámos ali um bocado a desfrutar o momento. Após aqueles instantes de deleite voltaram os pensamentos mais práticos. “Foto-cume! Vamos à tradicional foto de família!”


Todos no cume aos 6197m. Da esquerda para a direita: João Lopes, Pedro Costa, Tiago Faneca e eu.


Observámos cuidadosamente o cume e não encontrámos qualquer vestígio de anteriores ascensões. Não descobrimos nenhuma peça de equipamento abandonado, ou qualquer mariola de pedras erguida. Aparentemente não existiam provas de outras visitas.
Solene comuniquei: “Parabéns! Não é todos os dias que se escala uma montanha virgem!”
Para mim, este não era o primeiro cume virgem mas, para o resto do grupo, esta montanha correspondia a uma estreia. Representava não apenas uma estreia nos Himalaias como, tinham conseguido alcançar o cume de uma montanha nunca antes escalada.
A “conquista” foi celebrada com alguma contenção pois todos sabíamos que ainda faltava sair dali. Por vezes, as descidas são maliciosas!


A estética aresta leste durante a descida, para a direita na foto caía a face norte da "Shan-Ri".


Destrepámos toda a aresta leste até alcançar um colo entre algumas formações rochosas muito decompostas. Encontrar um bom ponto onde equipar a primeira reunião de rapel foi um pequeno teste para os nervos. O relógio não parava de contar e não convinha mesmo nada ser apanhado pela noite a meio do processo de descida. Finalmente, no meio de um pequeno esporão de rochas empilhadas, descobri uma pequena fissura onde abandonámos um micro-friend e um entalador. “Ok! Mais que suficiente para sair daqui!” Algum tempo depois, aproveitando o lusco-fusco de fim de tarde, após três rapeis, alcançámos o glaciar e o final das dificuldades. Eram as dez da noite quando chegámos às duas pequenas tendas do campo II.
Agora sim, podíamos arrastar-nos para dentro dos sacos de dormir com aquela sensação real de… “Missão cumprida!”

Paulo Roxo



Resumo e croquis da ascensão

Após muita investigação não foi encontrada qualquer referência à montanha que escalámos. De comum acordo decidimos baptizar o pico de “Shan-Ri”. Na língua do Ladakh “Shan” significa Leopardo das Neves e “Ri” significa Pico. À nossa linha de ascensão chamámos “North Face Indirect (300m)” que, como o próprio nome indica, escala a face norte, após a qual segue a aresta leste até ao cume com 6197m, anteriormente virgem.





domingo, novembro 04, 2018

Inescaladas 2018 - Acto I

INESCALADAS 2018
ACTO UM



João, Pedro e Tiago, imediatamente antes de iniciarmos a ascensão da face norte do Shan-Ri.


Após quatro dias de trekking atravessando o belo vale de Markha, Ana Moutinho, Irene Frutuoso (as Trekkers), juntamente com João Lopes, Pedro Costa e Tiago Faneca (os Alpinistas), guiados por mim, estabelecemos o Campo Base aos 4400 metros num belo local chamado Langtang Chan. Tudo preparado para tentar... alguma coisa!


As pontes por vezes cedem!


Paisagens variadas ao longo do trekking.


Ao longo do trekking vamos encontrando vários santuários Budistas.



As cargas são transportadas por pequenos cavalos (pôneis). Após quatro dias atingimos o local onde foi instalado o Campo Base aos 4400m.


O dia seguinte (25 de agosto) foi dedicado ao descanso… para alguns. Eu, acompanhado pelas meninas e pelo Pedro Costa, subimos até aos 4900 metros, até um colo onde, pensávamos, seria possível avistar as montanhas desejadas.
No dia seguinte, a Ana e a Irene despediram-se do resto do grupo para realizar os últimos dois dias de trekking, enquanto os escaladores iniciavam o processo de aclimatação.


A Ana a Irene e o Pedro, no colo do reconhecimento aos 4900m. Lá atrás avista-se a primeira montanha com 5960m, sem nome e possivelmente virgem.


Toda a equipa no Campo Base. Da esquerda para a direita, Irene, eu, Ana, Tiago, Pedro e João.


Com as mochilas bem pesadas (cerca de 25kg!), subimos até aos 5170 metros, onde instalámos o Campo I, numa confortável plataforma de erva. Até ao momento, as botas de altitude tinham sido inúteis porque a neve era inexistente. Conseguimos fazer tudo com sapatilhas de caminhada.
Como o nosso objetivo não era claro, começamos a planear de acordo com o que tínhamos diante de nossos olhos, o que, devido à nossa posição geográfica e ângulo de visão, ainda não era muito. Desde o Campo I apenas conseguíamos observar um pico interessante. O problema é que o mapa marcava o pico como tendo “apenas” pouco mais de 5900 metros, e todos (com excepção para o Tiago) estavam um pouco fixados na marca dos 6000. A beleza da montanha não fora um factor suficientemente apelativo para gerar um consenso imediato. Já no aconchego das tendas, o João admitiu: “Eu sei que o valor das montanhas não se mede apenas pela sua altitude mas, confesso que gostaria de escalar algo com mais de 6000 metros!” Compreendi perfeitamente aquele pensamento e secretamente partilhava do mesmo desejo mas, como profissional, tentei alhear-me da decisão e declarei: “Iremos tentar o que a equipa decidir. Para mim, 5000 ou 6000 metros é o mesmo, desde que a equipa esteja feliz!” Após um breve momento de reflexão o Tiago atirou: “Vocês estão um bocadinho obcecados com o número 6000!” Todos rimos…
De qualquer forma, de acordo com o mapa, podíamos optar ainda por três cumes com mais de 6000 metros, todos aparentemente virgens. A decisão final teria de ser tomada após o processo de aclimatação, desde um ponto mais elevado, alguns dias depois.


A primeira incursão acima do Campo Base. Nas mochilas uns simpáticos 25kg!


Campo I aos 5170m.


Na manhã seguinte, voltámos a descer para o Campo Base para descansar dois dias antes da derradeira tentativa.
Diante de um bom jantar confeccionado por Jor, o nosso cozinheiro no Campo Base, discutíamos os detalhes da ascensão. A grande vantagem era que grande parte do equipamento tinha sido depositado no Campo I, o que permitiria subir até ali muito mais ligeiros. “O problema vai ser a seguir, até ao próximo campo!” Teríamos que montar um segundo campo de altitude antes de tentar escalar o que quer que fosse. Alguém assentiu: “Pois, isto não é como os Alpes. Aqui não existem refúgios aquecidos e confortáveis. Aqui temos que carregar a tenda, sacos-cama, colchonetas, fogão, comida… enfim, tudo para sobreviver.” Com a colher cheia de comida, já a apontar para a boca, rematei espirituoso: “Um bom escalador da nossa praça, o Pedro Pacheco, disse um dia: Antes de se ser um bom alpinista, é necessário ser-se um bom burro de carga! Não sei se a frase é da sua autoria, mas corresponde bem à verdade!” Entretanto, a sobremesa foi colocada em cima da mesa, improvisada com caixas de arrumação. Todos esquecemos por alguns momentos as altitudes ventosas e nevadas dos Himalaias.


Passados dois dias, retomámos a ascensão. Em silêncio, a pouco e pouco, íamos ganhando altitude em direcção ao Campo I. Na mente vagueava a esperança de poder alcançar um daqueles cumes intocados pelo Homem.


 O final do glaciar e o inicio das oportunidades. Pico sem nome com 5960m. Possivelmente virgem.



Continua...

Paulo Roxo