segunda-feira, julho 18, 2022

Uma Arte Perigosa - O livro

 UMA ARTE PERIGOSA

 




Durante o período de recuperação de um acidente de escalada em rocha que resultou numa perna partida, Paulo resolveu dedicar o tempo involuntariamente disponível a escrever sobre as suas aventuras de montanha, algo que já desejava fazer há muito tempo.

O resultado foi um livro que fala de viagens extremas a lugares exóticos, seguindo de mão dada com uma viagem interior que se alimenta dos entusiasmos e de inspiração nas gestas de grandes pioneiros exploradores.



A paixão incontrolável pelo absurdo aparente de escalar montanhas perigosas em lugares perdidos teve início em terras lusas, na cidade industrial do Barreiro, onde, desde muito cedo, o autor perdia-se a admirar as nuvens que corriam no céu, imaginando montanhas geladas e imaculadas.

“Uma Arte Perigosa” é uma obra biográfica, contada na primeira pessoa, que vagueia por sonhos tornados realidade. Nas suas páginas encontram-se os relatos emocionantes de escaladas épicas e ascensões de alpinismo que acabam por fundir-se na resposta a uma questão insolúvel: Porquê?



A procura da sua quimera muito pessoal levou o autor a transformar em palavras algumas das aventuras vividas ao longo de trinta e cinco anos, em várias cordilheiras do mundo, desde os Pirinéus aos Alpes, passando pelos Andes e Himalaias. Os relatos percorrem ainda as escaladas iniciais nas ensolaradas falésias atlânticas do Cabo da Roca e Serra da Arrábida, durante os primeiros anos de exploração e conquista de “pequenas Luas”, paredes desconhecidas, nunca antes tocadas. Esse período de descoberta, cheio de felicidade e peripécias arriscadas, forjou o caminho para as grandes montanhas do mundo e para os cumes ilusórios — cujas neves eternas nunca conheceram os pés humanos —, que percorreu na companhia da alpinista Daniela Teixeira, “cúmplice” de cordas e de vida.

Cumes sem nome ou de nome impronunciável deixaram-se subir, outros nem tanto. Alguns episódios dramáticos assombraram mesmo o autor, como indicia esta passagem do livro: “Em desespero observei o helicóptero a afastar-se em alta velocidade, vale abaixo, até voltar a ser apenas um murmúrio, um pontinho vermelho no horizonte para, finalmente, desaparecer por detrás das montanhas. Naquele momento o mundo caiu-me aos pés. Chorei dominado pela revolta, depois, o desespero, depois, a aceitação. Depois… o silêncio gelado voltou a inundar tudo.”

Contudo, todas as aventuras moldaram o seu espírito, que nunca cessou de buscar uma razão para a sua obsessão.


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paulo.alpinismo@gmail.com




quinta-feira, outubro 07, 2021

Cho-Oyu, 2006

CHO-OYU, 15 anos depois


Texto publicado a 20 de Outubro de 2006

 

Dia de cume, 7 de Outubro de 2006



Dia 7 de Outubro de 2006, 13h00. A Daniela é a primeira portuguesa no cume de um 8000.

Pela meia-noite e meia, quando meti a cabeça fora da tenda, já 6 luzinhas tomavam a direcção do campo 3 enquanto a lua iluminava o caminho.

Os 2 rapazes filipinos estavam já também de saída.
A ideia do sherpa Lakpa, era dar a esta expedição oxigénio desde o campo 3.
Eu e as duas raparigas, acabamos por sair tardiamente, cerca das 2:30.
Preocupava-me já o atraso e o vento gélido que soprava não era um bom pressagio. Acelerei o passo e uma hora depois percebi que os dois rapazes filipinos estavam demasiado lentos para fazer cume. Cerca de 15 min. depois, 3 italianos baixavam demovidos pelo frio e pelo vento. Diziam que não se queriam meter em ventos de 70km/h que se faziam sentir acima do campo 3. 70km/h era exagerado, pois as previsões que tinha eram de cerca de 40 para o cume, pelo que decidi continuar. Perguntei-lhes por Julia, uma alpinista do grupo, disseram-me que teria decidido continuar com outros 2 italianos.
Cheguei ao campo 3 cerca de três horas depois e decidi parar meia-hora para recupar, comer e beber algo. Aí, dois Espanhóis exclamaram: "Hola Portuguesa, vienes del campo 2?"
Respondi afirmativamente. Disse-lhes que queria descansar um pouco, mas ao ver que se estavam a preparar para subir resolvi aproveitar a "boleia". Não queria continuar sozinha.
O dia começou a clarear e acabei por sair do campo 3 com Rafael, que se viria a tornar em "São Rafael" pelo que se passou a seguir. Subíamos ao mesmo ritmo. Após uma vertente, chegamos a uma banda de rocha (a Yellow Band) que é necessário transpor.


Daniela no campo base, após escalar o Cho-Oyu, a montanha que está por cima da sua cabeça.

Está tudo equipado com cordas fixas. No entanto, àquela altitude, cerca de 15 ou 20 metros de uma fácil escalada em rocha tornam-se num verdadeiro desafio, especialmente porque, para além do arfar, é necessário mexer em material, o Jumar (ascensor), com umas enormes e desajeitadas luvas de penas sem dedos e, no meu caso, com um bastão em punho. Vagarosa e desajeitadamente, lá transponho este obstáculo. No final, há que remover o Jumar, passando-o para a corda seguinte. Neste processo, sou obrigada a tirar uma luva, ficando só com uma fina luva interior. De repente, deixo cair a luva. Gelasse-me o coração, pois sei que sem a luva não posso continuar. Se o fizesse, iria congelar os dedos. Olho para baixo e vejo Rafael a apanhar a minha luva. Espero um pouco até que este me alcança, com a luva entre os dentes. Agradeço emocionada, sem ele nunca poderia continuar.

Depois deste incidente, apesar do frio intenso, a minha motivação parece ter-se renovado. À medida que subo, as pendentes parecem multiplicar-se. Avanço e distancio-me de Rafael e dou por mim novamente sozinha, a pensar se será ou não possível alcançar o cume desta montanha, com o vento forte que se faz sentir. Quantos irão à minha frente?
Tenho a certeza que pelo menos 3 italianos, que saíram bastante antes, já que não passaram por mim a descer. Isso dá-me forças para continuar. Um pouco mais à frente, vejo mais duas pessoas, que, como eu se movimentam vagarosamente.


Campo um do Cho-Oyu, 6400m.

De repente, vejo o fim das cordas fixas e o sol começa a iluminar-me. Penso que me irá aquecer, mas engano-me, pois o fim das cordas fixas significa a diminuição de pendente e logo uma maior exposição ao vento.

Paro para beber um pouco de sumo e tentar engolir alguma coisa. O sumo está já bastante frio e quase intragável, apesar de muito protegido. De comer, apenas consigo espremer um gel meio energético, tudo o resto congelou. Por esta altura, perdi já a sensibilidade nas pontas dos dedos de uma mão, mas não me preocupo muito porque percebo que as mexo bastante bem.
Quero acreditar que no fim da vertente vai surgir o que dizem ser o longo planalto do cume, mas quanto mais subo, mais a montanha insiste em esconder-me o dito planalto. Não faço ideia das horas, não posso retirar a luva para ver o relógio, o intenso vento tenta demover-me, mas penso "já que cheguei até aqui, continuo um pouco mais! Pelo menos até que os italianos que estão à frente se cruzem comigo ao descer”.
Nisto alcanço outro alpinista espanhol e pouco depois entramos os 2 no tal planalto do cume. As nuvens à minha frente movem-se depressa e a visibilidade não é perfeita. Os 40km/h que o Vitor Baía previa, eram ali cerca de 50 ou 60, duros de enfrentar. Penso que já deve faltar pouco, quando vejo um vulto a caminhar em minha direcção. Quando nos cruzamos, reconheço um dos espanhóis e pergunto "quanto tempo para o cume?" ao que me responde "2 a 3 horas". Surpreendo-me com a resposta e fico ali parada a pensar que, com aquele vento não vou conseguir. Faço um esforço para ver as horas e reparo que são cerca das 12:30 (hora nepalesa). Penso que se demorar 2 a 3 horas poderei ter sérios problemas. Pegadas apagadas pelo vento naquele imenso planalto com fraca visibilidade, podem significar perder-me por ali. Fico ali parada, durante o que penso serem 1 ou 2 minutos, a pensar o quão larga é a distância e tão curta a altitude. Desisto, volto as costas e penso que não vale a pena arriscar. Minutos depois, cruzo-me com um espanhol que vinha a subir e que me diz "Não, não! Daqui é no máximo uma hora. Vamos! Tenho um amigo mais à frente!". Isso dá-me novo animo e decido arriscar. O tipo parecia confiante. Novamente me ponho a caminho e, passado pouco tempo surge, vindo do cimo, o tal amigo feliz, dizendo "são mais 10 min!". Esses 10 minutos pareceram-me 5 e, de repente, estava ali, um cume que não parecia cume, de tal forma se encontra dissipado no meio de um planalto com nuvens que se movimentam rápido e com a neve que um intenso vento levanta.
Eram as 13:00. Sentados no chão, estavam Simone e Julia (italianos).
Felicitamo-nos. Olho em volta e avisto umas velhas bandeirinhas de oração. Atrás de mim, jaz no caminho uma garrafa de oxigénio laranja e um cantil azul. Há algum lixo no cume.
O Everest que era suposto ver, estava tapado pelas nuvens.
Faço de imediato uso do meu telefone satélite. Primeiro tenho a sorte de falar com o meu pai: "Pai, estou no cume! Consegui!" grito eufórica. Depois envio uma mensagem ao Pedro Cuiça para colocar no site da expedição. De seguida, peço aos italianos que me filmem um pouco, enquanto balbucio algumas coisas que me vêm à cabeça. Filmo um pouco o envolvente e quando peço que me tirem umas fotos, a minha máquina recusa-se a funcionar, acusando falta de bateria. Não posso acreditar. Nisto chega o espanhol que estava mesmo atrás de mim e peço-lhe para tirar umas fotos com a sua câmara, "Claro!" responde. Pouco depois vejo Rafael. Os dois espanhóis conhecem-se. Peço também que me tire umas fotos, ao que este acede. Pouco depois inspeciono o meu cantil. Tal como temia, descubro meio litro de líquido congelado. Até a comida que trazia junto ao corpo congelou! Resta-me voltar para baixo rapidamente e fugir ao intenso mau tempo. Penso apenas que o Vítor Baía tinha razão, não era dia de fazer cume... apesar de já estar feito!
O meu primeiro 8000... em tão duras condições.


Tenda messe no campo base, sob uma das tempestades que assolaram a montanha.

Não duvido que baixarei bem e depressa ao campo 2, pois sinto uma enorme energia interior e uma intensa satisfação. Chego a esquecer que apenas ingeri meio litro de sumo e um pacotinho de gel, surpreendo-me como me sinto tão bem.

Vejo os restantes a descer devagar e extenuados, eu estranhamente, pareço agora ligada à corrente eléctrica!"
Rapidamente me ponho no campo 2 e, na última vertente, cruzo-me com 2 filipinos. Como os vejo exaustos, percebo que algo correu mal.
No campo 2, Noell (uma das filipinas) recebe-me de braços abertos e felicita-me. Estranhamente, o efusivo Lakpa mal põe a cabeça fora da tenda. Com Pasang passa-se mesmo. Dizem-me pouco depois que Regie, o líder da expedição, ficou com cegueira das neves e os 2 sherpas tiveram de o descer amarrado a cordas, pelo que ambos estavam extenuados.
O ambiente estava pesado.
Como o cansaço foi contagiante nessa noite, apenas eu e Noell cozinhamos umas massas para o jantar, mas já não houve paciência para fundir gelo para fazer água. Assim, fiquei-me com pouco mais de meio litro nesse dia. A consequência foi uma enorme dor de cabeça nocturna! Karina demorou uma eternidade para descer a última vertente, sentando-se de 5 em 5 passos. O que se desce em cerca de 15 ou 20 minutos, deve ter-lhe custado umas 2h.
Pela noite, ainda tive o enorme prazer de falar com os meus pais e com Ivan Vallejo que, do outro lado do telefone, estava tão contente com a notícia, que parecia ter sido ele a fazer cume.

 

Daniela Teixeira

 


domingo, setembro 12, 2021

FANTASMAS

FANTASMAS


Com o tempo, com as escaladas, com os passeios, acabamos por nos fundir com a própria serra, passamos a fazer parte das várias paredes de granito que aqui se erguem.

Durante meses perdemo-nos cada dia mais, descobrimos cada dia mais, escalámos a cada semana mais e melhor. As nossas mãos, os nossos corpos, conhecem, adaptam-se cada segundo melhor a cada rugosidade, a cada buraquinho, a cada fissura.

Naquele dia, as temperaturas mais amenas desviaram-nos das escaladas mais técnicas do Vale Glaciário do Zêzere e convidaram-nos a revisitar a primeira via que abrimos na face sul do Cântaro Magro, a Erika.

Face sul do Cântaro Magro

O dia seria mais longo, os 8 largos que se desenham do solo até ao topo da agulha mais bonita da Serra da Estrela iriam tomar-nos várias horas. Ainda assim, algumas menos do que viemos a suportar. A suportar, sim. Suportar parece uma palavra que destoa de um acordar alegre, cheio de energia num perfeito dia em que as nuvens decidiram viajar para terras distantes e o céu se tingiu daquele azul profundo, perfeito, típico das montanhas verdadeiras.

Na “curva do Cântaro” colocámos as mochilas às costas e no meio da tranquilidade que o momento proporcionava, descemos o Corredor dos Mercadores. Cruzámos as obstinadas giestas que teimam em tapar o trilho já de si insipido, até à base da, talvez, a minha parede de eleição na Serra da Estrela.

A chegar à base da via "Erika"

Previa-se um dia perfeito, estávamos motivados, muito motivados para percorrer a distância que nos separava do topo do Cântaro.

Depois de tantos dias a escalar, sentíamo-nos mais fortes, mais rápidos, mais graciosos até.

O Paulo tocou o granito do primeiro largo e progrediu com airosidade até à placa quase lisa que nunca nos foi fácil cruzar. Desta vez, contrariamente ao que tínhamos desejado, a placa continuou a mostrar-se difícil. Ainda no chão, deliciei-me com toda aquela paz que os lugares especiais nos fazem sentir.

O Paulo na sempre difícil placa do primeiro largo

Pouco depois também eu navegava por aquele pequeno mar de granito, de superfície quase lisa, esse quase que na escalada nos deixa ainda avançar.

Daniela no mar de granito do primeiro largo

A 50m do chão, na primeira reunião sentia-me confiante. Confiante o suficiente para desafiar o segundo largo, um 6b+ que se estende por uma bonita fissura, até que o seu fim antecipa um suavizar das dificuldades.

Armei-me de friends, entaladores, fitas ao peito, esbranquicei as mãos nervosas com magnésio e avancei na parede vertical. O meu cérebro atraiçoou-me, a dureza da entrada retirou-me boa parte da confiança que sentia até então. Avancei atabalhoadamente mais um pouco, até que, na perspetiva de um passo que me pareceu duro, e sem perspectiva de colocar uma protecção nas proximidades para ganhar um pouco de confiança, decidi desistir. Tenta, não tenta, consegues, não consegues, a parte medrosa de mim levou a melhor. Segundos depois encontrava-me na reunião, a passar toda a parafernália que tinha pendurada no arnês ao Paulo, que evidentemente iria percorrer aquele largo com ligeireza e graciosidade.

Daniela no segundo largo, momentos antes de desistir

O ponto onde desisti momentos antes parecia ter-se modificado, mas não. O nervoso que ganhei nos primeiros metros do largo toldaram-me a visão para uma presa de pés que agora, com a passagem do Paulo, se mostrava evidente.

Arrependi-me de ter desistido.

A fissura foi escalada com singeleza e rapidez, como se não houvesse um pedacinho de rocha votado ao esquecimento desde a última vez em que o Paulo escalou aquele largo.

Entrou na última parcela do largo, já bastante mais fácil e após proteger na única plaquete do largo, o Paulo avançou confiante mais um pouco. Estabilizou. Os meus olhos deixaram por um momento a parede e percorreram a pequena plataforma onde estavam os últimos metros de corda. Ouvi um grito. Enorme. Escalafriante. De terror. Já conheço o tom, já o ouvi no passado. Segurei a corda com força até sentir a tensão da queda. Olhei para cima. Vi o Paulo de cabeça para baixo, olhos, face de horror. Gritava. Com o tom que adivinhava saber que a vida, num só momento, pode mudar. “Parti a perna, oh nãããoooo, outra vez não!!! Parti a perna…nããooo…”.

O Paulo na fissura do segundo largo

Estávamos ali, alvejados por um universo tremendamente injusto. Alvejados, sim. O pânico subjugou o Paulo que, ainda de cabeça para baixo contorcendo-se de dores, continuava a deixar que os gritos exprimissem a sua dor, tão física como de alma. Essa dor, muito maior que qualquer grito.

Eu, eu. Estava em pânico também, mas nunca o poderia demostrar naquele momento. Segurei a corda com força e vi o pé esquerdo do Paulo pendurado, virado, suspenso apenas, agarrado ao resto da perna pelos músculos, pela pele. Exigi de mim o máximo de concentração, não sei onde fui buscar a frieza para reagir.

“Paulo, acalma-te” gritei. “Vais ter de te acalmar, vamos ter de sair daqui”. Sentia-lhe uma dor cada vez maior, uma dor que se misturava com pânico, ansiedade, tudo o que seria de esperar numa situação como a que se encontrava.

“Paulo, vais ter de te acalmar e vais ter de te virar! Eu vou ter de te descer até mim.”. Gritei-lhe com a voz clara de quem dá uma ordem que não pode deixar de ser cumprida. “ACALMA-TE JÁ! Vais ter de te virar ou vou ter de te descer assim mesmo, de cabeça para baixo!”. O tom agressivo resultou. Não sei como conseguiu, mas mesmo a contorcer-se de dores, vi-o virar-se e de seguida desci-o, devagar até mim.

Adiei todos os pensamentos de um futuro que, num segundo, passou a ser um futuro diferente. Não sei onde fui buscar forças, menos sei onde o meu amor foi buscar forças para me ajudar a conseguir ajuda-lo.

Ele, deitado na pequena plataforma da primeira reunião. Eu, a agarrar no telemóvel desejando ter rede para conseguir pedir ajuda. Teclei o 112, ouvi um “pi” do lado de lá e a chamada caiu. Tentei novamente e percebi que o número do 112 não funcionava. Liguei para o comandante da GNR de montanha, não tive sorte, não atendeu. Fiquei sem rede, surpresa! Em poucos instantes, diferentes futuros invadiram o meu raciocínio. Pensei-os a todos de uma só vez. Posso ter de o descer…não, não posso correr o risco de que desmaie enquanto o desço. Mais seguro, por muito que me custe, será descer eu e deixá-lo aqui o “melhor” possível. Descer eu e tentar chegar à estrada o mais depressa que consiga para pedir ajuda. Ouço um ruido vindo do telemóvel, volta a ter rede. Ligo a um casal de amigos que passavam 4 dias de férias na serra. Para nosso alívio, atendem. Sei que posso ficar sem rede novamente, a qualquer momento. “Nuno, tenho de ser rápida. Estamos na primeira reunião da Erika, na face sul do Cântaro. Tivemos um acidente e o Paulo está muito mal, com a perna esquerda partida. Não conseguimos sair daqui, precisamos de um resgate”. Em poucas palavras o Nuno disse que iria fazer de imediato os possíveis. Lembrei-mo de outro amigo escalador da Covilhã, que é PSP. Tentei, atendeu, passei-lhe a mesma mensagem. Eram as duas da tarde.

Por entre as dores, pensamentos escuros, ansiedade, o meu amor mantinha uma clareza de raciocínio que até agora não entendo como o conseguiu. “Daniela, olha que eu posso desmaiar a qualquer momento. Vamos ter de estabilizar a perna”. Olhei em volta, não havia nada. Nada que tivesse rigidez suficiente para fazer uma espécie de tala. “Usa os meus ténis, põe um de cada lado e aperta-os com fitas (fitas de escalada)”. A clareza de raciocínio impressionou-me. Com um par de ténis ligeiros, improvisámos uma espécie de tala. Os gritos que invadiam todo o espaço pintavam de negro o meu coração apertado, que sentia dor, mas não chegava certamente à imensa dor do Paulo.

O telemóvel tocou, era o comandante da GNR “Daniela, os meus homens já vão a caminho. O que é que vocês precisam? Onde estão exatamente?”. A resposta foi perentória, apesar da pouca crença no que ia pedir “Precisamos de um helicóptero, é a melhor forma de sair daqui. O Paulo tem uma perna partida, está em muito mau estado. Desçam pelo corredor dos Mercadores e quando chegarem mais à frente vão ver-nos. Estamos na primeira reunião da Erika.”. O comandante da GNR iniciou uma sequência de esforços para conseguir que um helicóptero nos viesse resgatar. Sabendo que os elementos da GNR vinham ao nosso encontro, preparei as cordas de escalada para que as pudessem utilizar, subindo por elas para chegar a nós o mais depressa possível. Reforcei a reunião com mais um par de friends e demorei a desenrolar as cordas que, respeitando a lei de Murphy se embrulharam num novelo difícil de desfazer, mais ainda com a ansiedade que qualquer pormenor imperfeito fazia crescer. Pouco depois, dois elementos da GNR de montanha chegavam ao pé de nós. Os ténis foram finalmente trocados por uma tala de verdade e o Paulo foi colocado numa maca que se encaixou naquela minúscula plataforma onde à altura, estávamos quatro.

O tempo nestas situações, teima sempre em passar devagar. Entre a queda e o resgate de helicóptero passaram quatro horas, quatro longas horas difíceis de suportar. Apesar das infindáveis dores, a presença de espírito do Paulo era surpreendente “Verifica se estão todos autoseguros…equaliza a reunião com os friends de cima…tira daí essa corda que já não está a fazer nada, só atrapalha…vejam se a maca não está presa a nada por baixo, para quando vier o helicóptero…”. A experiência do mais experiente de todos nós era uma constante presença.

Quatro horas em que a minha concentração se tentava sobrepor a todos os pensamentos obstinados, tristes, negros, que não me queriam largar.

Finalmente, algures pelas seis da tarde, a maca eleva-se no ar. Senti um misto de alívio e relutância, afinal, a maca estava no ar a rodopiar, não no chão seguro. Rapelei e corri até à estrada o mais rápido que as parcas forças o permitiram. Diria que nunca subi daquele ponto até à estrada em tão poucos minutos. Queria vê-lo, acarinhar-lhe o rosto, o coração, antes que o levassem para o hospital.

Quando cheguei à “curva do Cântaro” o aparato era infindável, entre GNR, bombeiros de diferentes corporações, protecção civil, não sei quantas pessoas se mobilizaram, mas contavam-se dezenas. O helicóptero da Força Aérea tinha já aterrado nas proximidades da Torre, o Paulo seria mudado para outro helicóptero do INEM para ser transportado para o hospital de Coimbra. Cheguei a tempo. A tempo suficiente de trocarmos olhares, de lhe dar um carinho, afecto, amor. Estávamos os dois destroçados, tínhamos partido uma perna e quebrado a ligação ao futuro. Eu, com o coração encolhido de tanta dor, esmagada por não me ser possível fazer mais nada, por ter de aguentar a separação. O meu amor, para além de todo o sofrimento físico, suportava a dor de um coração que carrega outra dor, a dor do amor, a dor da preocupação por quem se ama.

Vi o helicóptero do INEM levantar. O céu continuava azul, o sol continuava a iluminar os granitos que se perdem de vista nesta serra bonita. Pela primeira vez, a beleza da serra não me aqueceu, foi como se a ignorasse, como se nos ignorássemos. O sentir seria igual estando ali, ou noutra qualquer parte sombria do planeta. E esse foi o momento de chorar, de quebrar, de deixar que toda a frieza que consegui manter até ali se dissipasse. Esse foi o primeiro momento em que tive direito a Sentir o que sentia.

Tinha ainda assim que conservar alguma frieza para contar à mãe do Paulo o que se tinha passado. “Ai meu deus! Outra vez!...”. Fiz o que pude para manter uma conversa muito menos preocupante do que a situação o exigia. Acho que consegui.

As horas sem contacto pareceram durar para sempre e os meus pensamentos nada tinham de positivos. Valeu-me a presença dos amigos Nuno e Ana, que acionaram o resgate e me acompanharam sempre nas horas, dias que se seguiram. Acompanharam-me, acarinharam-me, trataram-me.

O meu amor tinha caído, e num largo perfeitamente vertical bateu com a perna na única pequena plataforma que poderia surgir no caminho. Que maior azar poderia acontecer?

Olhando de longe, racionalmente, aquela situação não poderia ter sido pior. A lei das probabilidades ditaria que naquela queda, o Paulo apenas ficaria pendurado na corda, sacudiria as mãos, recuperava o folego e seguiria para cima, como em qualquer queda de escalada. O universo não conspirou a nosso favor.

O que há para aprender?

Nada. Rigorosamente nada. Não há nada a aprender num azar inverosímil, improvável.

Os “E se’s” ainda percorrem as ruas nocturnas da minha cidade de pensamentos bafientos, sufocados e sufocantes. E se o medo não se tivesse apoderado de mim, e se eu não tivesse desistido? E se eu tivesse continuado a escalar aquele largo?

Este “se”, este medo que nos fez trocar de lugar insiste em visitar-me. Insiste em espezinhar-me, calcar-me, por vezes com violência.

Não me liberto dos fantasmas. A noite, o silêncio, trazem as imagens de um passado tremendamente injusto. E se eu não tivesse desistido?

O meu medo mudou o nosso futuro.

O meu medo, o sentimento que, naquele momento, não fiz grande esforço para ultrapassar, não me apeteceu enfrenta-lo. Por vezes, a escalar, esse companheiro maldito visita-me. Por vezes, fecho-lhe a porta e continuo em frente. Por vezes, deixo o cérebro levar a melhor, não me esforço, deixo-me relaxar…porque não me apetece esforçar-me e desço. A lei das probabilidades ditaria que, naquela situação, o meu medo não teria qualquer influência. Mas teve. Mudou o futuro.


Daniela Teixeira


segunda-feira, março 22, 2021

Face norte do Cântaro Gordo

FACE NORTE DO CÂNTARO GORDO 


A face norte do Cântaro Gordo é a parede sombreada da esquerda.


Já andávamos curiosos com a face norte do Cântaro Gordo há algum tempo. Chegara a hora de dar uma espreitadela. No dia 22 de Fevereiro, um sol radiante e um frio prometedor viu-nos a atravessar o planalto superior em direcção ao Cântaro Gordo. A neve debaixo dos crampons apresentava-se bem transformada. De facto, já não encontrávamos uma neve tão boa há bastante tempo.

Já na base da face norte do Gordo descobrimos uma parede de neve, gelo e rocha, com um aspecto excelente. Uma oportunidade para aproveitar.


A Daniela observa o futuro...


Logo nos primeiros passos de escalada mista, encontrámos uma neve bastante diferente da que descobrimos durante a aproximação. Agora deparámo-nos com uma neve açucar, sem consistência para permitir uma boa tracção dos piolets. Os tufos de erva e musgo, quando congelados, permitem uma dose de confiança adicional pois os piolets cravam-se como se de gelo se tratasse. Neste dia não tivemos essa sorte! Apesar do frio, estranhamente, os tufos de erva não estavam congelados e não nos iriam servir de muito para progredir. Teríamos de nos defender com os clássicos gancheios em fissuras rochosas.


A iniciar a "Pézinhos de lâ". Constatação imediata de condições... menos boas.


Apesar das más condições, o muro compacto de rocha deixou-se escalar através de uma linha de fraqueza lógica e desafiante. Um primeiro lance de dificuldade “amena”, deu seguimento a um largo diagonal, com dois ou três passos picantes e mentalmente cansativos devido à sua relativa exposição.


A terminar a "Pézinhos de lâ". 80 metros inesperados de misto.


Terminámos a primeira via do dia, na crista do Cântaro Gordo e, poucos metros mais abaixo, abandonou-se uma cordeleta para realizar um longo rapel até à base da parede.

A face norte do Cântaro Gordo recebia assim a sua primeira via invernal.


No topo do Cântaro Gordo... next!


Ainda com tempo disponível, deixámo-nos levar pela visão de uma nova linha atraente que conduzia ao topo de uma pequena torre destacada.

No primeiro lance o “crux” surgiu na saída, obrigando a alguns passos difíceis num extra-prumo acentuado mas com bons gancheios e protecções fiáveis, permitindo ultrapassar as dificuldades sem muitas complicações.


A Daniela a ultrapassar o primeiro "crux" da "Não venhas gordo!"


Montada a reunião numa fenda oportuna, observámos o terreno acima. Uma canaleta de aspecto fácil desenvolvia-se pela direita. Caso seguíssemos por ali seria uma via desequilibrada ao nível das dificuldades. Um lance duro de entrada para terminar com um segundo lance muito mais fácil. Previa-se um sabor final um tanto ou quanto amargo. No entanto, uma observação mais cuidada fazia pensar que existia uma alternativa mais… equilibrada, leia-se: mais dura!


A Lagoa da Paixão em evidencia.


Resolvemos meter-nos pelo centro do pilar de rocha vertical. “Vamos tentar!” Uma primeira secção fácil em travessia permitiu aceder ao tecto no centro da parede. Felizmente, uma fissura franca consentiu proteger convenientemente, reduzindo em grande medida a exposição de uma potencial (e provável) queda. Gancheios laterais em bavaresa… crampons “em aderência” na parede lateral esquerda… gancheio potente muito por cima da cabeça, num pequeno bloco entalado na fissura… proteger com um bom camalot 0,75… escalar o próprio piolet bem gancheado… bloqueio duro… soltar o piolet direito e gancheio aleatório por cima do tecto… confiança… “Será que está gancheado?”; “Atenção!” Lá em baixo, a Daniela assegurava atenta. “Ok! Aí vou!” As forças estão no limite. Em apneia, tracciono o piolet direito, procuro um friend e atiro-o literalmente, meio à balda, para dentro da fissura disponível. A energia esvai-se a cada segundo que passa. Não aguento mais… dou tudo o que tenho e ergo-me nos dois piolets gancheados. Os crampons raspam violentamente no granito até que, sem saber como, um deles “agarra-se” a alguma protuberância minúscula. Num instante estou por cima do tecto em terreno mais fácil. Não sinto os braços, mas já consigo respirar. Os próximos metros ainda não são fáceis, mas apresentam-se muito mais amáveis que a escalada precedente.


No tecto muito difícil da "Não venhas gordo!" Uma das vias dry-tooling mais duras da Serra da Estrela.


A terminar a "Não venhas gordo!"


Desde o topo da pequena torre desfruto da paisagem invernal circundante. Os ante-braços acusam o esforço. Estou feliz. “Que via espectacular!”

Enquanto asseguro a Daniela, concentrada no esforço de ultrapassar as dificuldades da nova via, observo as paredes em redor. O potencial para a escalada mista é considerável…

“Está ali uma linha bem apetecível. Vamos?”

O futuro no “nosso” jardim apresenta-se risonho…


Paulo Roxo


Um reconhecimento com o Cântaro Magro envolto em mística...


Os topos








segunda-feira, março 08, 2021

Bucólico reloaded

SECTOR BUCÓLICO

RELOADED

 

Ambiance... Bucólica!


A ideia de desenvolver esta área começou com o plano de preparar um local adequado, e ao mesmo tempo recatado, para realizar os meus cursos de escalada em rocha. No entanto, as futuras explorações alteraram o objectivo original, o de criar uma simples “escola” de formação.

Neste momento o sector Bucólico possui 20 vias, entre as quais algumas totalmente equipadas.


Na bela e recente via de escalada desportiva "Ventoleira".


Esta “escola de escalada” alberga vias de escalada clássica, para as quais serão necessários um conjunto de friends e alguns entaladores, bem como algumas vias totalmente equipadas que se resolvem utilizando apenas um conjunto normal de expresses e os respectivos mosquetões de segurança. Algumas vias possuem três lances. Contudo são lances curtos, para os quais a utilização de corda simples de 60 metros será suficiente. Com excepção para a "Variante entrada" (via 4), todas as vias possuem as reuniões equipadas.


A inaugurar o pequeno sector de iniciação: "Rachinhas".


No campo das dificuldades, a maioria das vias são de dificuldade baixa e algumas moderadas, com uma ou duas difíceis. Creio ser um sector apropriado para se aprender as técnicas de escalada de auto-protecção (clássica) ou para a iniciação à escalada em rocha - quando devidamente acompanhado por alguém com saber e experiência na matéria - ou simplesmente, para passar um dia agradável de aventura comedida em contacto com a natureza. 

ATENÇÃO: Apesar da dificuldade relativamente baixa da maioria das vias, este é um local de escalada de aventura, isolado e pouco visitado. Prestar atenção a possiveis blocos ou pedras soltas e usar sempre o capacete.

O posicionamento geográfico contrasta com o que normalmente associamos à Serra da Estrela, com os seus escarpados de granito impressionantes e os desníveis acentuados. Aqui a morfologia apresenta um aspecto mais "tranquilo". Contudo, a localização altaneira permite vistas desafogadas, podendo observar-se o planalto superior da Serra da Estrela com neve no Inverno e os seus belos maciços em evidência, como os emblemáticos Cântaros. O ambiente campestre e o facto de quase não se avistarem casas até onde a vista alcança provoca sentimentos de calma e serenidade.

Uma envolvência… bucólica.


Paulo Roxo


Os topos

 












Equipamento necessário:

- Micro-friends

- Friends

- Entaladores

- 10 expresses

- Mosquetões com segurança

- Descensor (reverso)

- Capacete

- Prever cordeleta para substituir algumas cordeletas de reuniões

- Boa disposição e respeito pelo local e pela natureza


segunda-feira, janeiro 25, 2021

Ice report - Acto II

 ICE REPORT - SERRA DA ESTRELA

(A primeira report da temporada... desejando não ser a última!)


ACTO II


A parede leste do Cântaro Magro desde o Covão da Ametade.


O frio e a neve transformaram a face leste do Cântaro Magro numa bonita parede branca. O aspecto “Scottish” irresistível encheu-nos de motivação para tentar escalar um velho projecto adiado.

Um longo diedro evidente ergue-se no flanco direito da parede. Trata-se de um alinhamento inevitável de uma estética inegável… pelo menos para nós. Com as condições minimamente reunidas, resolvemos tentar a sorte. Concluímos a aventura após ultrapassar vários lances duros de escalada mista, incluindo uma secção especialmente difícil que obrigou a recorrer à escalada artificial. Porque teimámos em terminar da forma mais tradicional - leia-se: no cume - a ascensão consumiu muito mais tempo que o previsto. Com o avançar das horas resolvemos abandonar através de uma travessia lógica de escape para a direita, indo parar à face norte, buscando o famoso anel do Cântaro. Após vários “zigues e zagues”, optámos finalmente, por seguir pela canaleta da clássica “Y”, na “headwall”, de novo na face leste.


"Colagem" de gelo por cima das plcas de granito, escaláveis e "traccionáveis".


A longa jornada de aventura terminou noite dentro e nesse dia jantámos às 23h!

Baptizámos a nova linha de “Irrepetível” (220m, M6+/A1). Contudo, o escape para a direita, abandonando a parede principal, deixou-nos um tanto ou quanto sabor de boca amargo. Logo que as condições voltem a reunir-se, contamos retornar para repetir a “Irrepetível” e tentar “endireitar” a via, através de uma continuidade mais directa, que não obrigue a abandonar a face leste.


Bem dentro da noite, cansados mas felizes!


Passagens técnicas na "A irrepetível".


Durante as nossas múltiplas passagens de carro pelo Covão da Ametade, inevitavelmente, observámos o evoluir das condições no Cântaro Magro, até que, nos surgiu uma extraordinária visão. Observando com atenção, reparámos numa aparente linha ininterrupta de gelo que se iniciava na base da face leste do Cântaro Magro prolongando-se por muitos metros através do flanco esquerdo da parede. Foi um fantástico momento “Uau!”

Ainda cansados da actividade do dia anterior, resolvemos adiar um dia, perdendo assim a oportunidade de tentar a nova via no momento mais frio da semana. Apesar das previsões apontarem para uma subida de temperaturas e sendo uma parede com orientação leste, significando uma grande exposição ao sol matinal, decidimos subir na mesma. Estávamos convencidos que aquela seria a última hipótese de tentar uma via única e, provavelmente (essa sim), irrepetível.


Uma incrível cascata vertical na face leste do Cântaro Magro. Este foi "apenas" o segundo lance do lençol de gelo que se formou ao longo de seis tiradas de corda... Yuupii!


Literalmente numa corrida contra o sol, fomos escalando uma sucessão de cascatas de gelo de fusão, algumas constituídas por secções tão finas que se tornaram impossíveis de proteger. Por sorte, a dificuldade mantinha-se em níveis baixos e moderados, permitindo uma boa gestão do risco. Com excepção para os pontos de reunião onde utilizámos alguns friends, fomos protegendo sempre com parafusos de gelo. À medida que ganhávamos altura alucinámos com o insólito da própria situação: “Incrível! A face leste do Cântaro em piolet tracção!”


Ali, onde normalmente existe uma placa de granito compacto... piolet tracção!


Ultrapassados seis lances de escalada, alcançámos o final da linha ininterrupta de gelo. A nova via terminou no sítio mais lógico de saída, na base das belas vias de escalada em rocha da face sul, com escape para o célebre “Corredor dos Mercadores”.

Dadas as condições precárias e “no limite” em que encontrámos o gelo, resolvemos baptizar a nova linha de “No Limite Vertical”. O dia seguinte comprovou as nossas suspeitas de que o nome fora adequado. Com o aumentar das temperaturas vários troços da nova via tinham-se despenhado. A parede despia-se do seu casaco de gelo.


Ali, onde normalmente existe uma placa de granito compacto... piolet tracção!


Não satisfeitos com a mega linha de escalada em gelo, ainda atravessámos o “Corredor do Mercadores” para a vertente norte em busca de uma bela cascata que tínhamos divisado dias antes, desde o Covão da Ametade. Um pouco fatigados (mentalmente) da neve horrível que encontrámos para aceder ao novo sector, ainda recuperámos alguma energia para “conquistar” aquela via de gelo com 40 metros, que acabou por formar um par com a “Cascata Mariolas”, escalada por nós em Janeiro de 2017.

Para nós, este fora o sétimo dia de actividade do presente Inverno, portanto, a nova cascata mereceu o nome “Cascata do sétimo dia”.


Gelo com fartura na nova e surpreendente "Cascata do sétimo dia".


No dia seguinte, ainda um pouco entorpecidos pela intensa actividade, decidimos descansar. O “descanso” converteu-se numa nova via de escalada mista inaugurada no sector da “Curva do Cântaro”, na parede que forma o contraforte esquerdo do “Corredor da Ponte”. “É uma via curta e de aspecto ameno.” - afirmei, confiante na observação desde a base. Pouco depois, o bufar constante e o roçar agressivo do metal dos crampons contra o granito, convenceram-nos que aquilo seria tudo menos uma escalada “amena”.

A “Última chouriça” converteu-se numa via incómoda e dura, com uma difícil chaminé e um penoso diedro tombado que teimava em tentar empurrar-me para o precipício, apesar de todo o esforço de contorcionismo para tentar progredir.

O início da temporada ofereceu-nos belos dias de acção e aventura invernal. Resta saber se este é mesmo um “início de temporada”, ou se irá terminar simplesmente como… “A temporada!”

Para já, abateu-se a tempestade dramática do Covid e de um novo confinamento. Essa tempestade coincide com a chegada de vários dias de mau tempo e subida das temperaturas. Tempo de permanecer em casa.

Olhamos para as nuvens com olhos de esperança, alimentando o desejo de que os dias de neve e frio retornem brevemente, empurrados pelos ventos de norte…


Paulo Roxo


Os topos