quarta-feira, janeiro 28, 2015

Um dia que não vou esquecer

UM DIA QUE NÃO VOU ESQUECER


"Teresa, como é? Vamos a Sesimbra beber uma caipirinha e trincar uma tosta mista? Epá está um sol que não podemos desaproveitar! E esperamos lá por eles (os nossos maridos, Paulo Roxo e João Gaspar), se calhar até de despacham cedo!”
Era o último Domingo antes do Natal, um dia pleno de Inverno com um céu azul de meter inveja a qualquer dia de verão. Nessa manhã, o sol aqueceu-me durante duas prazenteiras horas de corrida bem acompanhada por uma amiga do coração. O treino dessa manhã tinha-me saído melhor do que o imaginado, sentia-me feliz e cheia de energia, mesmo depois de mais de 20km percorridos.
Com o meu polegar esquerdo ainda a recuperar de uma cirurgia, as escaladas estavam adiadas ainda por muitos dias. O Paulo decidiu aproveitar a companhia do João Gaspar e do Fernando Pereira e juntos lançaram-se à abertura de novas vias numa pequena falésia nas proximidades de Sesimbra.


João Gaspar a realizar a primeira ascensão da "Torre do sino", alguns momentos antes do acidente (21/12/2014).


Com o “sim” da Teresa, quase voei até sua casa para juntas irmos desfrutar de uma bela tarde de sol.
O meu telemóvel toca mal estaciono o carro e no visor surge o nome do João Gaspar. Imediatamente pensei que os rapazes já poderiam estar despachados e veio-me à ideia uma caipirinha a 4.
À primeira palavra que proferiu, logo percebi pelo tom de voz que algo de muito mau tinha acontecido. “ Daniela, vais ter de ter muita calma”, “Estás sentada?” Não me recordo das palavras exactas com que começou a conversa, mas algumas fixaram-se no meu cérebro: “O Paulo caiu ao chão!” Recordo-me do medo que aquele tom de voz me incutiu. “O Paulo vai falar contigo.” Imediatamente, percebi-lhe as dores, o medo, e a vontade de me tranquilizar, algo que inevitavelmente já não era possível.
A Teresa apareceu logo de seguida, estava ainda a falar para o 112, o alarme estava dado, os bombeiros seguiam para o lugar ao mesmo tempo que nós. As lágrimas molhavam-me já a face. Tinha medo, muito medo do que iria encontrar. Percebi que havia o receio de um dano permanente na coluna, estava assustada, muito assustada. Num segundo, aquele dia de sol, toda aquela felicidade se transformou em algo que ainda hoje não consigo descrever com precisão. A mistura entre o medo do que iria encontrar, o medo do futuro, do futuro do Paulo, do meu futuro, uma profunda tristeza e um amor gigante que nada consegue derrubar e que me fazia conduzir depressa e focada.
Chegadas ao local onde se inicia o carreiro que acede à dita falésia, encontrámos o Fernando, que veio à estrada esperar os bombeiros, e estes, que tinham acabado de chegar.
Segui o mais depressa que pude até ao local onde estava o Paulo e o João, a cerca de 300m do lugar onde estacionei o carro. “Joããããoooo! Grita para eu perceber onde estão!”.
Quando acedi à base da parede e os vi no chão inclinado de pedra irregular, o meu coração tornou-se numa frágil peça de cristal que se partiu... numa infinidade de estilhaços. Mordi os lábios de dor ao aproximar-me, tentando controlar as emoções para não piorar uma situação que de imediato percebi ser muito grave. O Paulo estava ali, deitado de lado, pernas semi-encolhidas a tremer, e a gemer. O João, de tronco nu, abraçava-o com um tremendo carinho, amizade... transpirava emoção. Tinha-lhe colocado em cima toda a roupa disponível, inclusivamente a sua t-shirt. Estava ali em pleno dia de Inverno em tronco nu, dando tudo de si ao Paulo.
Não me recordo das palavras, apenas das emoções. Cheguei perto dos dois, beijei o Paulo com cuidado tentei dar-lhe uma força que não tinha. O João tentou transmitir-me alguma calma... tentaram os dois, mas o visualizar da situação apenas veio avivar os meus medos. Ainda assim, tentei não vacilar, tinha de manter a calma. O Paulo tremia, cada vez com mais frio. Tirei o casaco e a camisola que coloquei por cima das suas pernas e pés. Os bombeiros tardavam em chegar ao local e se pelo meu lado irracional não percebia porque – porque o carreiro era mesmo fácil de percorrer – os seus quilos extra trouxeram-me à realidade.
“Como é que o vamos tirar daqui?” Não me espantou a pergunta, mas frustrou-me e por dentro feriu-me, arranhou-me, cortou-me... dilacerou-me. Ele ali deitado, a escutar cada palavra, “Como é que o vamos tirar daqui?”. Estávamos num local de muito fácil acesso, no que respeita a locais de escalada. Um simples carreiro de 300m levava à estrada.
Pediram reforços a uma equipa de resgate “que tem mais de 30 anos de experiência”. Confesso, o primeiro pensamento que me assaltou foi: “Merda, queres ver que agora vem a brigada de terceira idade? Estamos fodidos!”. O tempo passava como imagino que se passe sempre nestas situações, lento, muito lento, com os minutos a quererem possuir muito mais que 60 segundos.
Chega a brigada de resgate, os quilos a menos que tinham em relação aos primeiros bombeiros estavam transformados em mais anos de vida. Os meus anseios, a minha angústia não diminuiu. Era notório que tudo iria ainda demorar. Liguei para uma médica amiga do Paulo que trabalha no Hospital de Setúbal, imaginando que quando saíssemos dali, seria para esse que o levariam. “Diz-lhes que a máquina de fazer TAC’s aqui está avariada! Que o levem directamente para o Garcia da Horta (Almada)”. Confirmada pelo INEM a avaria, o plano passou de imediato para o transporte até ao Garcia da Horta. Mas primeiro tinham de o tirar dali.
Após as avaliações de rotina nestes casos (“sente formigueiro...”, “dói-lhe onde...”), o Paulo foi transferido para a maca rígida e imobilizado. Cada gemido, cada grito de dor gelava-me por dentro e transferia todo o meu pensar para um futuro negro. Tinha deixado algures no tempo toda a minha capacidade de ser positiva. Por dentro o negativismo era total, por fora, não o transmitia em frente ao Paulo. Toda eu era naquele momento uma edificação do sentimento medo. Era tudo realidade e se nos filmes o terror vem acompanhado da noite e mau tempo, na vida real pode acompanhar um dia de sol e de perfeito céu azul.
Duas horas depois conduzia de Sesimbra para o Hospital de Almada. A Teresa ao meu lado a dar-me força, conforto, carinho. A escutar-me dizer vezes sem conta “...tenho tanto medo...”. Não imagino todo este pesadelo sem o apoio dela e do João Gaspar, chamar-lhes amigos soa-me agora a muito pouco.




Os amigos João Gaspar e Teresa Leal sempre presentes. Assim foi a passagem de ano (31/12/2014 – 01/01/2015)


Do hospital lembro-o ali, deitado numa maca num corredor cheio de gente, alheia ao sofrimento de outros, de todos. O Paulo era o centro do meu universo. Sabia que não lhe conseguia evitar toda aquela dor que lhe saía do corpo, do olhar. Por breves instantes, quase desfaleci. Senti o meu corpo a abandonar-me, fui forçada a afastar-me para não cair no chão frio das urgências. Busquei algo com açúcar para me recuperar, enfiei umas moedas numa máquina e engoli um sumo. Para que o Paulo não se apercebesse, levei uma água para ele. Apesar de não lhe poder dar de beber, podia molhar-lhe os lábios que estavam secos e dar-lhe a chupar uma compressa embebida em água.
A ansiedade consumia-me, quebrava-me. Aquela espera pelos resultados do TAC, dos raios X era infindável. As primeiras notícias fizeram-me chorar por dentro, dilaceraram-me. Ao Paulo, não queria mostrar uma lágrima “...duas vértebras lombares fracturadas, uma fissura na anca, metatarso do dedo mindinho do pé esquerdo...”, e a única coisa que se fixou no meu cérebro foi: “duas vértebras lombares fracturadas”. Todo o meu mundo desabou. A ansiedade que pensei estar no auge aumentou ainda mais. Saía e entrava nas Urgências para dar as notícias à Teresa, ao João e aos meus pais que entretanto tinham chegado. Aproveitava as saídas para deixar escorregar as lágrimas antes de voltar para perto do meu amor, do meu cordada que agora estava ali, longe, muito longe dos nossos sonhos.
Só horas mais tarde chegaram as palavras que todos queríamos ouvir “não há danos ao nível da medula, são fracturas simples”. Respirei de alívio, sabia que a partir daqui a nossa jornada iria ser longa, dura, mas com o tempo, muito tempo, tudo regressaria à tão desejada rotina, tudo voltaria ao normal. Tínhamos agora pela frente a maior montanha de todas. Teríamos que a escalar juntos. Esta era uma montanha que iria necessitar acima de tudo muita paciência, muita união, muito amor.
O dia, nesta altura já de noite, ainda não tinha terminado. Entre confusões havia nesta altura duas perspectivas, ou o acompanhamento no Hospital Garcia da Horta (que não me agradava por completo porque os médicos que o atenderam me pareciam inexperientes), ou a transferência para o Hospital do Barreiro. A conselho de uma médica amiga, que garantiu que o serviço de ortopedia era melhor no Hospital do Barreiro, esperámos até às 23:00 para a transferência para este hospital.
No Hospital do Barreiro tudo correu bem, o atendimento foi rápido e os 2 ortopedistas que estavam nessa noite nas urgências deixaram-me uma excelente impressão.


À espera para uma consulta de neurocirurgia no Hospital Garcia da Horta...ainda na primeira fase da recuperação (29/12/2014).


O veredicto do Paulo no final da noite foi o seguinte, 3 semanas de cama (sem se levantar para nada!) seguidas de 3 meses com colete de reforço para as costas, com passagem pela cadeira de rodas e por um par de canadianas (à conta das fracturas no metatarso do dedo mindinho do pé esquerdo!). O veredicto para mim foi de pelo menos 3 semanas de enfermeira a acompanhá-lo!
“E vai hoje para casa, como lhe disseram no Hospital de Almada?”, indaguei. “Nem pensar! Com sorte sai daqui a 2 dias e ainda vai a casa comer uma rabanada pelo Natal.”... tendo em conta o estado em que ficou, pareceu-me uma resposta coerente.
Cerca das duas da manhã dirigi-me para casa. A cama pareceu-me grande demais, vazia demais. Podia ter ido sozinha, mas a Teresa acompanhou-me, quis estar, quis acarinhar-me, fazer-me sentir o conforto, o aconchego da verdadeira amizade... amizade soa-me agora a coisa pouca, comparado com esse enorme sentimento que por dentro tenho pela Teresa Leal e João Gaspar.
Destes dias tão acres, retenho também boas memórias, são as que estão com estes dois amigos de coração grande, e as que estão com os meus queridos pais, que tanto e tanto nos apoiaram e apoiam. Se calhar há situações que nos surgem na vida, para fortalecer uniões.
De algo triste, retenho o que de mais belo existe na vida, o amor e a amizade.



O meu cordada na segunda fase de recuperação – cadeira de rodas. E viva os amigos, sempre disponíveis para dar uma ajuda :). Aqui a Joana a fazer um servicinho ao domicílio.


A nossa primeira grande aventura pós-acidente – a primeira saída à rua num belíssimo dia de sol!!!! Cadeira de rodas nas ruas do nosso país é uma verdadeira aventura...e bem à nossa maneira...sempre à descoberta :) (24/01/2015).


 Início da terceira fase de recuperação – a passagem da cadeira de rodas para as canadianas. Os primeiros passos (24/01/2015).


 E daqui para a frente...É SEMPRE A MELHORAR!!!...YEAHHHH!!!!


Daniela Teixeira