terça-feira, novembro 08, 2011

El Chorro. Via nova.

ANDANÇAS VERTICAIS POR ANDALUZIA



Sombras com cordas.


E aquela parede, têm alguma via?”

Olhei para cima, observando o pilar de calcário que se erguia por entre as placas e pequenas torres vizinhas.

“Bem, deve haver algo. Aquilo é tão evidente...”

Na minha resposta à questão da Daniela, sobressaía a dúvida.

“Já viste aquelas fissuras? Será que vai por ali qualquer coisa?” Continuou a Daniela.

As questões formuladas levaram a um novo interesse. Íamos a caminho de um sector atractivo mas, mais longínquo e, assim de repente, eis que surgia uma nova ideia.

O El Chorro é um velho conhecido e as minhas antigas visitas estiveram sempre centradas na escalada desportiva.


El Chorro natural.


Há vários anos atrás, quando o El Chorro era uma escola “da moda”, era costume realizar algumas peregrinações desde Portugal. A época favorita era, sem duvida, o final do ano. Nesta data festiva organizavam-se verdadeiras farras alcoólicas, com bastante erva e haxixe à mistura, num refugio apinhado de gadelhudos e gadelhudas desgrenhados. Normalmente, a meio da noite e, já bastante intoxicados pela nuvem de fumaça, causávamos sensação quando retirávamos do bolso uma ameaçadora navalha afiada... para a espetar num grande pão alentejano. Os variados dialectos confundiam-se mas, isso pouco importava porque a ordem do dia era a diversão pura em comunidade estreita com os “nuestros hermanos”.


Um dos sectores principais e decerto o mais mítico: Frontales medias e Poema Roca.


No dia seguinte à “fiesta brava”, lá nos íamos arrastando como podíamos pelas paredes, “chapando” plaquetes e enchendo a cabeça, já de si a transbordar, com o som agudo dos mosquetões a fechar.

O equipamento era organizado em dez minutos e isso incutiu no meu cérebro uma imagem precisa acerca do El Chorro. Para mim esta era uma escola de escalada desportiva. Uma mega-escola, apesar de tudo. Não desfazendo das suas vias desportivas, algumas excelentes e de qualidade inquestionável, algo escapava à minha percepção.


Paredes e mais paredes.


Com o passar dos anos sem retornar, esqueci-me basicamente que o El Chorro têm um bom leque de paredes grandes. Algumas relegadas para a ignorância. Até que um dia, o mau tempo geral na península empurrou-nos, à Daniela e a mim, para sul.


Vista geral de algumas das paredes de El Chorro. A via "Gula" foi aberta nas ultimas grandes placas visiveis, conhecidas como: "Escaleras Suizas".


Uma primeira incursão levou-nos a escalar uma via tão emblemática como esquecida, a “Rayito de Luna”. Essa visita terminou com uma tentativa de abertura no interior da garganta de contornos míticos, por onde se desenvolve o “Caminito del Rey”, um passadiço decrépito e espectacular que contorna os meandros do desfiladeiro de Los Gaitanes, a uma altura de vertigem.


A atractiva parede da "Rayito de Luna".


Uma nova investida, noutra ocasião, munidos do material pesado adequado possibilitou a abertura de uma nova via: a Via-Zita, escalada no dia 1 de Janeiro de 2010, no interregno de algumas chuvadas inconvenientes.


Vistas para o vale, desde as "Escaleras Suizas".


Outubro de 2011.

De baterias apontadas para o Douro, com todo o equipamento de Bigwall preparado, esperávamos a decisão final. E, hoje em dia, a decisão final está intrinsecamente ligada ás previsões meteorológicas cibernáuticas. É quase triste decidir o rumo das nossas vidas (mesmo que seja por um curto período de tempo) em função de um ecrã de computador. Rendidos enfim ás novas tecnologias, queríamos potenciar ao máximo as nossas possibilidades de escalada por isso, acabámos por rumar de novo para sul.


Bosque.


“Que tal? Não parece muito difícil. Pode até ser uma boa via de aquecimento para amanhã!” Com o “amanhã” a Daniela referia-se ao projecto abandonado há dois anos nas paredes da garganta dos Gaitanes, o motivo principal do nosso retorno a estas paragens.

“Está bem, vamos lá!”

Ás vezes ainda me surpreendo com a facilidade com que mudamos de ideias. Tínhamos combinado escalar noutro sector. De repente, um vislumbre, um olhar de esguelha e, plás! Mudança de azimute e alteração radical de planos. Por certo, também contribuiu a gula de escalar coisa novas. “Gula?! Olha, um bom nome para a via!” O baptismo estava feito e ainda nem sequer tínhamos pisado a base da parede.


O pilar "virgem" por cima das nossas cabeças.


O “fácil” cedo se tornou “menos fácil” e, alguns metros volvidos chegaram para nos convencer que aquilo afinal era “dificil”. Para quem almejava uma via mais relaxada, já se estavam a complicar as coisas.


No primeiro lance, no momento em que a escalada ainda era fácil.


No primeiro largo no momento em que a escalada se tornava... dificil!


O primeiro lance foi aberto. A Daniela veio ter comigo e, após rápida reunião resolvemos terminar a linha no dia seguinte. Tínhamos começado a escalada bastante tarde e o erro de previsão de dificuldades era óbvio. Olhando para cima adivinhava-se que a nossa via de aquecimento iria concerteza “aquecer” muito mais que o imaginado desde o solo.

“Ok! Terminamos isto amanhã e no dia seguinte atacamos o outro projecto!”

A ideia era bonita mas, os meus calcanhares estranhamente doridos pela nefasta combinação sol intenso/pés inchados, tinham uma palavrinha a dizer relativamente ao plano...


A Daniela a jumarear no segundo dia para continuar a abertura.


Inicio do segundo lance, espectacular e looongo (55 m).


A Daniela a curtir as placas compactas.


“Uau!” A escalada é espectacular!”

Á medida que ia descobrindo as presas francas que se adivinhavam ao longo das placas de aparência lisa, ia lançando ao ar palavras de regozijo. Contudo, havia algo que me incomodava e impedia a satisfação total destes passos fantásticos em rocha virgem: os meus pés. Nas secções mais desprotegidas demorava sempre mais algum tempo. Hesitações sobre a ponta dos pés que desagradavam a parte traseira dos mesmos. O sol não dava tréguas e cada passo a mais incrementava mais um nível na escala de dor imposta pelos calcanhares apertados.


Cool!



Dois momentos da chegada à segunda reunião após um longo e bonito segundo lance.


A escalada mantinha-se exigente, lógica e brilhante. Pensava na sorte de descobrir linhas deste gabarito nos dias que correm. “El Chorro esgotado? Não me parece!”

A verticalidade mantinha-se e, com ela, a dificuldade com alguns “run-outs” controlados. Atrás das costas, a floresta antecedia uma paisagem a perder de vista. Estávamos num verdadeiro miradouro de vistas largas.


Inicio do terceiro lance.


"Tens aí uns presões de mão cheia!" Terceiro largo.


“Parece que só nos falta um lance curto para terminar a via!” Anunciei, após uma inspecção de pescoço esticado, desde a terceira reunião.

O “lance curto” finalizou após cerca de 50 metros de corda, recordando que ás vezes -leia-se: quase sempre- as aparências iludem.


O ultimo lance curtinho (50 metros!).


A terminar a via. Missão cumprida (ou comprida?).


Com o sol a cair no horizonte alcançamos os últimos metros da nova via.

Sob a luz dirigida dos frontais aterrámos na base da parede satisfeitos. “Mais uma!”


"Aí vem o esparguete!!"


No dia seguinte, a bolha que espreitava orgulhosa no meu calcanhar direito, estragou o plano inicial. Dia de passeio e desfrute local.


El Chorro selvagem.


Um sector magnifico de fissuras absolutamente entregue ás moscas. As vias mais óbvias estão abertas e são linhas de escalada artificial. Esquecido!!


Decididos a aproveitar a nossa estada ao máximo (e quanto a mim ignorando totalmente as mazelas) lançámo-nos a uma nova escalada, no ultimo dia na Andaluzia.

Uma bela fissura encaixada entre duas vias desportivas prometia uma boa sessão de entalamentos de mãos, de resto uma técnica nem por isso reservada unicamente ao granito. Para aceder a esta linha óbvia mas, sem qualquer referência nos guias de escalada, tivemos de subir a ferrata que antecede o “Caminito del Rey”. A perspectiva não era de todo desagradável. Aceder a uma bela via de escalada através de um espantoso pedaço de historia.


Ferrata de acesso.


O “Caminito del Rey”, hoje transformado num arriscado percurso lúdico, data de 1905 e foi feito quando a barragem estava a ser construída. Servia como meio de passagem para os trabalhadores da altura poderem transportar materiais de construção. Durante a inauguração da represa Conde del Guadalhorce, o rei Afonso XIII teve de cruzar o “caminito” e foi então que este incrível passadiço recebeu o seu nome .


Um dos aspectos do "Caminito del Rey". A foto é de uma visita anterior.


Iniciamos a escalada com vistas directas para as fissuras perfeitas da parede oposta da garganta o que ambientava toda a situação de uma forma mágica.

Pouco depois, a Daniela divertia-se a realizar entalamentos a duas mãos, inspirada pelo relato de uma ascensão recente realizada no outro lado do mundo.


O inicio da espectacular fissura.


Continua...


Apesar de não existir qualquer referência nos guias e de não encontrarmos qualquer vestígio de uma ascensão prévia, é bastante razoável que a fissura já estivesse inaugurada. Por cima da reunião, montada a 40 metros do inicio, lá vimos uma burilada metida num improvável esporão. Alguém tinha destruído todos os buris e apenas surgiam os pequenos cotos que outrora haviam sustentado o peso de algum escalador. “O resultado de um antigo contencioso?”

“E será que acederam através da fissura?”

De qualquer modo, saber quem teria sido o primeiro era um detalhe sem importância quando comparado com a beleza e desfrute da linha.


Os diedros de saída "divertidos".


Um segundo lance bem mais fácil e deveras divertido, constituído por uma sucessão de diedros depositou-nos no topo da via. Mais uma vez, nem sinal de uma qualquer ascensão anterior. Nem uma plaquete oxidada, um qualquer piton rústico ou uma cordeleta passada de prazo.


A terminar a escalada.


Mudança de sapatinhos e... pabaixo!


Felizmente, subimos prevenidos e, meia hora depois voltámos a pisar o passadiço instável do “Caminito del Rey”.


O curioso rapel de saída do "Caminito del Rey".


Embora não tenhamos concretizado a ideia inicial, o resultado final foi bastante positivo, sobretudo com a abertura da via “Gula” que nos ofereceu uma escalada de qualidade, podendo vir a ser melhorada com uma limpeza mais a fundo de alguns blocos mais suspeitos.

“El Chorro esgotado?! Mmmm... deixem lá pensar um bocado."



Paulo Roxo


As vias:

- Gula. 175m, 6c/A0.


O sector "Escaleras Suizas" com a via "Gula" marcada.






- Fissura de Hierro (desconhecemos se teremos sido os primeiros!). 65m, 6b.





8 Comments:

Ana Duarte said...

Como sempre, grande relato, grande aventuras, grandes escaladas.
Continuem!

sesa said...

Hummm! um tipo de rocha diferente que abre o apetite e desperta a Gula. Sem dúvida, que numa ida futura ao chorro irá o material de entalar. Abreijos e continuem a inspirar-nos.
Abismo Branco

taia said...

"É tudo à grande", vias grandes, em pardes grandes, "É tudo à grande", fins de semana grandes...lol

Parabéns mais uma via de referência, um dia passaremos por lá.

Beijos e Abraços
Taia
AB

Anónimo said...

Sempre a navegar... ;)
MC

Jesús Alejandre said...

Que bien suena..., Gula en el Chorro y que con este relato quedo hechizado con ella.
Enhorabuena por la línea. Sin duda una buena vía y con el carácter que os caracteriza...

Saludos

Anónimo said...

Muito bom!!!!
João Animado

Anónimo said...

Muito Bom!!!!!
É assim mesmo!!!!
Abraço
João Animado

Anónimo said...

*****

Abreijos
Gaspar