FECUNDA INDECISÃO
Ainda não via as nuvens num céu indeciso quando acordei pelas 5 da manhã.
- Paulo, estás a dormir?
- Não. Que horas são?
- Ainda não tocou o despertador, pouco passa das 5!... mas
já não consigo dormir!
- Então vamos levantar!
Cerca de uma hora antes do previsto, quem sabe pela falta
que a rocha já nos fazia nos dedos - porque a chuva tem abundado - pulámos do aconchego
dos lençóis para as fardas de escalada.
Pouco depois, já a nossa Berlingota acelerava rumo a norte,
direcção? "Terra Prometida".
Tínhamos em vista uma via, mas a aproximação por um lado
diferente das paredes encheu-nos as medidas… e os olhares esbugalhados e
sonhadores fixaram-se num estético pilar com um bico. Um estético bico cortado
a meio por uma fissura ainda mais estética.
Começou assim mais um rol de frases indecisas:
- Xiiii, olha ali! Já tinhas reparado naquele bico?
Espectacular! E os diedros? Esta deve dar quê… uns 3 largos?
- Iá! Por aí.
- Está mais perto do que a outra via. Pode ser mais rápida!
Será de ir lá?
- Hummm, será que o primeiro diedro tem fenda? É tudo muito
vertical!
É assim que geralmente se
instalam as dúvidas e os dias ganham contornos diferentes… muitas vezes,
terminam sem via!
Dúvidas, dúvidas, muitos metros de dúvidas…
- Danielocas, se calhar é melhor seguirmos o plano original.
- OK!
E assim continuámos a aproximação à via previamente escolhida para aquele dia.
Mas as surpresas teimavam em não terminar. Já bem perto da
parede, uma cerca de arame farpado impedia-nos de chegar à tão almejada parede
e os minutos não deixavam de passar e o dia tornava-se a cada dúvida mais
curto.
Entre trepar até uma árvore que poderia dar acesso à parede
escolhida (ou não!) ou… ou… ou olhar para o lado e ver outra via num esporão
que estava mesmo à mão de se escalar, ou ou… ou ir para o pilar do bico, decidimos
pelo que nos parecia oferecer um dia de escalada… mais garantido, neste caso,
mais fácil, em jeito de reconhecimento a um novo sector… e aos pés de gato por
estrear que a mochila escondia – tenho medo da combinação pés de gato por
estrear com via grande e nova!
Na base de um pilar com ar de não ser o mais interessante do
sector, esvaziámos a mochila, protegemos as mãos com as mais que úteis luvas
para fissuras e acomodámos no bandulho umas sandochas bem abonadas. Vendo bem
as coisas, já era quase hora de almoço!
Por volta do meio-dia, demos início ao bailado na parede. O
primeiro largo foi amável, próprio para quem já não tocava naquele quartzito há
muitos meses e para quem já não fruía em aventuras verticais há umas semanas.
- Sinto-me perro! Estou todo atrapalhado e isto é uma
cagada!
Sentimo-nos os dois perros durante cerca de 30m.
Para o aspecto inicial, pelo qual não daria boa nota à
estética daquela via, a coisa até não saiu feiosa.
Já na primeira reunião, a coisa mudou de figura, a fissura
vertical desenhada na parede já aumentava a nota atribuída à estética da via.
- Reuniããããoooo!
- Não precisas medir! Trinta meeeeetros! – gritei de uma
cómoda plataforma.
30 magníficos metros, não me senti burlada pelo que o olhar
abarcou da agradável primeira reunião.
Da segunda reunião, dois pares de olhos esbugalhados pousaram
em mais uma “daquelas” fissuras… mais um largo com qualidade bem superior ao
que esperava quando calcei os pés de gato na base da via.
- Reuniããããoooo!
- Não precisas medir! Mais trinta meeeeetros! – gritei de
outra cómoda plataforma.
A escalada regalou-nos com verticalidade, fissuras estéticas,
boas presas, tudo o que povoa o imaginário de um par de escaladores ávidos por
um dia bem preenchido.
- Reuniããããoooo!
- Não precisas medir! Mais trinta meeeeetros! – berrei
novamente – Agora só faltava o último largo também ter… 30 metros!
Na última reunião debatíamos por onde seguir: pelo estético
diedro ou arriscar pela placa vertical, esperando que por baixo da capa de
musgo surgissem boas presas e fissuras nos sítios certos para proteger?
A placa não era clara e decidimos…pela placa!
- Reuniããããoooo! Termina aquiiiiiiiii!
- 30 meeeetros! – gritei ainda com um largo sorriso
estampado nos lábios, na cara, no corpo todo!
Contrariamente ao que tantas vezes acontece, a escolha pela
placa revelou-se acertada. Por entre o musgo que nunca foi em demasia (bem nos
enganou!), surgiam sequências de presas e apoios para os gatos, sempre em
abundancia e nos sítios certos.
Eram as cinco da tarde quando nos encontrámos no topo da
parede. A via que me tinha parecido “pouco estética”, na verdade meio
“mastronça” vista de baixo, revelou-se muito, mas muuuuuuiiiito mais bonita do
que a impressão que o meu primeiro olhar transmitiu ao meu encéfalo.
Pouco mais de meia hora demorámos a chegar novamente à Berlingota e poucos minutos depois, a noite tornou-se tão escura como quando acordei.
A pergunta “do costume” já tinha sido respondida no topo da
parede: “E nome para a via?”
Daniela Teixeira
Os Topos
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