MURALHA
Na Serra da Arrábida, desde o miradouro natural do sector de escalada desportiva do Fojo dos Morcegos, é possível observar a grande faixa de falésias de aspecto decomposto que se estende para leste. Na faixa de calcário que encabeça essas falésias, uma parede em especial realça a sua presença. Trata-se da MURALHA, um paredão amarelado que atrai o olhar de qualquer escalador amante da aventura. Nos anos 80, o Fojo constituía, por excelência, a escola de treinos para um determinado grupo do qual fui membro, o Grupo de Montanha do Barreiro. Sempre que descíamos o trilho empinado que conduzia ao sector, o perfil da “Muralha” (como a batizámos então) ia ganhando forma, até que tomava a sua real dimensão quando a avistávamos desde a chamada “varanda do Fojo”.
Naqueles tempos, aquele muro vertical impressionava-me
sobremaneira e mexia de tal forma com a imaginação que não tranquilizei
até ter a possibilidade de lhe tocar com as minhas próprias mãos. Este
sentimento era acompanhado pelos meus dois companheiros de cordas da altura.
Também o Fernando Brito e o João Simões sonhavam escalar aquele pedaço de rocha
provocador.
Em 1989 surgiu a oportunidade. Eu e o Fernando Brito juntámos vontades e equipamento (quase todo do clube) e resolvemos tentar a nossa sorte. Destrepámos o Fojo, atravessámos as praias pedregosas, eternamente torturadas pelo mar e, iniciámos a nossa escalada por um afiado esporão que constituía a única entrada de rocha razoável, em toda a extensão de calcário decomposto. Dois lances nervosos (especialmente o segundo, constituído por rocha realmente má e terreno exposto, praticamente improtegível), colocaram-nos na grande plataforma de matagal que antecede a parede principal da “Muralha”. Após um retempero de energias e de um acalmar de nervos, retomámos a nossa escalada, desta vez por terreno muito mais sólido. O fim daquele dia viu-nos no topo da falésia, muito cansados, desidratados mas, mais que tudo, felizes. Acabáramos de “conquistar” a tão sonhada “Muralha”. O Fernando lembrou-se de um famoso poema épico de Álvaro Campos (uma das várias entidades de Fernando Pessoa) e a via foi batizada com o nome inspirado de “Ode Marítima”.
A partir daquela primeira ascensão, inevitavelmente,
começámos a estudar os outros aspectos da parede. No entanto, o acesso desde o
mar foi considerado demasiado perigoso e rapidamente ficou descartado. A partir
daí realizámos o acesso sempre desde o topo. Para as seguintes ascensões, o
João Simões juntou-se à cordada da via original e, a 5 de maio de 1990,
inaugurámos a via “Noite”, cujo próprio nome denúncia o pequeno épico final de
uma saída nocturna e às apalpadelas. Nos dias 19 e 20 de maio desse mesmo ano,
caíram as vias “Rota do vento” e a “Oceânica”. O doblete ofereceu-nos o
privilégio de poder realizar dois maravilhosos bivaques no topo da “Muralha”, à
luz de milhões de estrelas brilhantes da Via Láctea.
Retornámos a 16 de junho de 1990 para escalar a via “1313”.
O nome foi inspirado no Irmão Metralha que, nas histórias de banda desenhada do
Tio Patinhas (Walt Disney), era o vilão mais trapalhão e azarado. Durante
aquela escalada recordo-me de termos perdido vários pitons de rocha e um
martelo que, na sua queda, razou a cabeça do Fernando (naquele tempo o capacete
não estava na moda). No fim, pareceu-nos uma sucessão de azares adequada para
merecer aquele nome.
No ano seguinte (1991), desta vez sem o nosso companheiro
João, o Fernando Brito e eu escalámos a “Joshua Tree” e, finalmente, ainda
encordado com o Fernando, inaugurámos a última via da década dos anos 90. A
“Sentinela” nasceu a 7 de abril de 1996. Esta última aventura marcou o final de
uma época romântica de sonhos rebeldes de juventude sob o mote “dureza total”,
um cunho privado que pretendia realçar a nossa forma de encarar a montanha e a
escalada.
Durante muitos anos a parede da “Muralha” ficou esquecida, longe da vista e dos corações dos escaladores, a maioria embarcados na recente expansão da escalada desportiva. Longe também da minha visão, surgindo, aqui e ali, apenas nas memórias das belas páginas de vivências. Com o tempo, a cordada desfez-se. Até que, no ano 2007, agora na companhia da Daniela Teixeira, resolvemos revisitar o sector. Durante essas visitas, repetimos algumas daquelas velhas vias, surpreendidos pelo bom estado aparente do equipamento fixo, constituído por vários pitons e spits, apesar dos anos que nos separavam das primeiras ascensões. Ainda em 2007 equipei a via “Pânico, horror e dor”, que se revelou durinha e um bom objectivo de aventura “desportiva” para o futuro, uma vez que se encontra bastante equipada. Só realizámos uma tentativa de a encadear e tivemos de nos agarrar a algumas protecções para a ultrapassar e sair por cima. Até hoje, a “Pânico, horror e dor” permanece sem uma ascensão absoluta em escalada livre.
No dia 10 de fevereiro de 2008, a Daniela e eu abrimos a
bela “Yellowviper”, que parte desde o meio da parede (partilhando os primeiros
lances com a via “Noite”) e ultrapassa uma semi-fissura que corta na vertical
uma placa compacta e lisa.
Pouco depois, a “Muralha” voltou a afundar-se no
obscurantismo, durante vários anos.
No momento da publicação deste artigo (janeiro de 2025), a magnífica falésia da “Muralha” permanece um lugar tranquilo e, de certa maneira, esquecida da generalidade da “população”. Sim, trata-se de uma parede “vintage”, reservada apenas a amantes da escalada clássica (no melhor sentido da palavra) e uma bela varanda para o infinito oceano Atlântico. Existindo, talvez, como um testemunho, hoje em dia cada vez mais raro, da aventura em estado selvagem.
Paulo Roxo
TOPOS
Apresentam-se todas as vias existentes e, para a maioria das vias, os respectivos croquis por ordem numérica mas não tratados, ou seja, na sua forma original.