quarta-feira, novembro 08, 2006

No início deste mês de Novembro fez um ano (como o tempo voa!!!) que abrimos a 2ª via da Falésia dos Pinheirinhos na Arrábida e a 1ª a percorrer toda a extensão do paredão. «Viagem sem Rumo» foi para nós uma grande aventura. É (para nós!) uma grande via. Como nessa data ainda não percorríamos esta via cibernética do "Rocha podre..." publicámos um relato, fotos e croqui do fórum do Havista.com/pt. Hoje, por falta de imaginação ou de tempo, ao não termos nada preparado para colocar, recuperámos esta história (será que estamos a ficar repetitivos?):
VIAGEM SEM RUMO

Sexta-feira, 4 de Novembro 2005
A noite está escura. Aperto com força uma cinta, coloco o pé numa rugosidade rochosa e subo para a frágil plataforma de lona e tubos de alumínio que será o meu leito de descanso nas próximas horas.
A fraca luz da lua, o brilho das estrelas e as débeis luzes dos barcos de pesca conferem um aspecto algo fantasmagórico e mesmo surrealista a esta cena.
Desde este ponto, suspensos no interior de uma grotesca cova calcária sobre dezenas de verticais metros sobre o mar, a noite imensa, diria mesmo que o universo inteiro, nos acolhem.
Buscava uma noite como esta e aqui a tenho. Poucos sabem neste momento, o sugestivo e misterioso que é o mar nesta escuridão. A fraca ondulação rebate incessantemente ao longe nos cascos das sofridas traineiras, na sua quotidiana faina.
Nesta moldura idílica, as embarcações parecem não flutuar no mar, mas sim na escuridão imensa que se confunde com a do céu.
Esta intensa e subtil presença, transporta-me para um mundo sem limites, a essa constante interrogante que é a nossa própria existência. Em nosso redor, as sombras deformadas destas falésias projectam-se sobre o brilhante oceano como monstros de um louco mundo que somente existe nas nossas atordoadas mentes. Ao longe, a luz de um qualquer farol para os lados do Cabo Espichel hipnotiza o céu com o seu vaivém sinistramente constante. Logo, a fragrância e o calor do mar e os ecos de tantas vozes…vozes que agora retumbam na interioridade de todos nós. Tenho a sensação que todo o universo está diante de mim. O seu frio e distante latir, segue o ritmo do meu coração. As nossas sombras confundem-se com a escuridão, confundem-se simplesmente com nada. Dou conta que eu e tudo o que me rodeia somos uma mesma coisa.
Sinto um arrepio. O nosso isolamento perde-se como um inútil eco no vazio estrelar. Fecho os olhos e tento adormecer.

Domingo, 6 de Novembro 2005
Algo que realmente me entusiasma e desfruto após estas escuras noites, são as seguintes manhãs. Adoro estes amanheceres tremendamente luminosos e claros. A luz do Atlântico e este mar revolto costumam-me colocar as ideias no seu lugar. Embora algo fresca, neste final de manhã o sol começa a aquecer.
Encontro-me sentado nesta pequena esplanada em plena Praia Grande. Olho para o profundo azul do mar e quase de um trago só, consumo uma revitalizante Coca-Cola. Ao Sul, para lá do familiar Cabo da Roca e para além das turvas águas do Tejo, erguem-se as serranias da Arrábida e as suas particulares falésias. Por sua vez, estou prestes a rumar a Norte, em direcção a casa.
Ao longe o Paulo e a Daniela preparam-se para iniciar mais uma intensa e solarenga tarde de escalada. Apercebo-me como os seus olhos se fixam impulsivamente no cimo destas imponentes placas rochosas e pressinto subtilmente as suas ansiedades…
Ao longo do extenso areal, deambulam crianças, adultos e velhinhos, embalados pelo ritmado rebentar das ondas. No mar, uns poucos Surfers, esperam pela onda perfeita, alheios a tudo, submersos neste azul oceano.
Olhando para a linha do horizonte, onde o céu se une ao mar, sinto de novo um estranho arrepiar pela grandeza deste espaço. Vislumbro um quotidiano domingueiro em meu redor e novamente sou assolado por uma rara sensação de isolamento e deriva. Olhando em qualquer direcção, fixando qualquer rumo no olhar, apercebo-me como esta paisagem se apresenta um universo infinito, numa aparente tranquilidade de um mundo a fervilhar de vida. Hoje, vejo com clareza como por vezes também nós embarcamos numa viagem de objectivos claros mas sem rumos definidos ou traçados, onde a intuição, as sensações, emoções e ilusões nos conduzem num precária caminho em busca de algo que nem nós em breves momentos de reflexão como este conseguimos realmente compreender.
Ainda não passaram 24 horas desde que na companhia do Paulo regressámos de mais uma aparentemente irreal aventura vertical, numa perdida falésia da nossa extensa orla costeira e tudo está ainda tão vivo e ao mesmo tempo já tão distante nos labirintos do pensamento.
As ondas do oceano Atlântico continuam enviando rajadas de odor, sons e de um sedativo calor. Desde o terraço deste bar de praia, diante de um espectáculo tão tipicamente veraneante como este, parece-me verdadeiramente absurdo falar de escalada.

A Ascensão

Dia I (Quarta-feira, 2 de Novembro 2005): Apesar do dia se apresentar cinzento, decidimos iniciar a nossa pequena aventura numa desconhecida falésia perdida entra Sesimbra e o Cabo Espichel, à qual apelidámos de Falésia de Pinheirinhos devido à proximidade com a pequena povoação do mesmo nome.
Pela complexa estrutura da parede, prontamente suspeitámos que para abrir a linha imaginada, seriam necessários pelo menos uns dois dias de escalada. Era nossa intenção neste 1º dia, transportar os pesados “petates” até à base da parede e abrir e fixar os dois primeiros largos em travessia para aceder ao forte extra-prumo sobre o mar.

Abrimos o 1º largo (Vº) e subimos os “pigs” para a primeira reunião. Nestes cilíndricos sacos, transportamos toda a nossa comida, água, roupa, sacos de dormir, “hamacas”, quinquilharia de escalada artificial, cordinos e material de equipar (plaquetes+pernos). Abrimos ainda o 2º lance (Vº), uma extensa travessia na qual fixamos a corda estática como corrimão para voltarmos a percorrer este largo com os “petates” às costas.

Por motivos de visita ao mecânico mais próximo (estes carros são uma merda!) regressamos à grande cidade deixando tudo suspenso na primeira reunião.

Dia II (Sexta-feira, 4 de Novembro 2005): Ontem choveu todo o dia, de modo que tivemos de adiar o regresso à parede por mais umas largas horas.
Após duas noites e um dia de intenso dilúvio, o nosso receio seria que os “petates” não tivessem resistido à forte chuvada e que tudo no seu interior estivesse ensopado em água.
Felizmente tudo estava bem e podemos carregar a pesada carga ao longo da travessia e assim alcançar de novo a espectacular segunda reunião. Espectacular porque aos nosso pés (uns 20 metros) temos a transparência deste mar a prumo, e por cima das nossas cabeças o forte muro extra-prumado de um claro e atractivo calcário.
Apressadamente inicio o 3º lance. Este é o primeiro largo verdadeiramente na vertical. Movimentos de escalada artificial intercalados por algum movimento em livre, permitem-me cruzar este belíssimo muro e alcançar o “nicho das gaivotas”. Após largos minutos e muitas marteladas para colocar um perno de expansão, finalmente abandono este privilegiado trono de pestilento odor a criaturas marinhas.

Agora, uma delicada e imaginativa escalada artificial (A2+) conduz-me em diagonal ascendente sobre um incisivo, diria mesmo corrosivo vazio, para alcançar a enorme e de aparência grotesca cova, a qual baptizamos de “nicho dos colgados”.
A noite, aproxima-se a passos largos, e decidimos montar aqui , no interior desta cova o nosso “colgado” bivaque.
Nunca imaginei que pela noite dentro, neste paradisíaco oceano, o tráfego de barcos, barquinhos e barcões fosse tão intenso, parecendo uma metropolitana auto-estrada em imaginárias rodovias aquáticas.

Dia III (Sábado, 5 de Novembro 2005): Para além das broas doces e dos cubos de chocolate regados por iogurte líquido, o Paulo complementa o pequeno-almoço com um 4º lance (6b) de terreno de aventura no seu melhor expoente. 40 metros de escalada mantida, em terreno sinuoso de boa qualidade, onde a experiência dita regra e algum passito de fazer transpirar os mais incautos.
Içamos os “petates” e decidimos deixa-los na enorme rampa da 4ª reunião. Esta rampa, poderá servir de escapatória em caso de necessidade, assim que voltaremos mais tarde a recuperar os sacos. A partir deste ponto prevemos que apenas nos faltarão mais dois lances de corda. Como tal, decidimos sair numa versão «light & fast». Sem cargas, muito menos material, uma garrafa de água e muitas ganas de sair por cima rapidamente.
O 5º lance (6a), olhando de baixo parece uma trepada sem grande interesse, mas na realidade exige alguma concentração e sentido de recorrido entre algum bloco e muita vegetação…enfim mais um largo de puro terreno de aventura.

A sexta (6a+) e última tirada apresenta-se inesperadamente bela e mantida, como uma agradável cereja no cimo do bolo. Um espectacular largo sobre uma rocha de grande qualidade, movimentos atléticos e graciosos num ambiente extraordinário.
A meio de uma solarenga tarde, alcançamos o cimo da falésia. Felizes e animados, brindamos a esta nova abertura. Mais um momento para recordar…mais uma via para partilhar…mais uma ilusão cumprida. Desfrutamos por longos momentos esta magnifica vivência, envoltos nesta luxuriante paisagem, deste infinito e brilhante espaço.
Regressamos á rampa da quarta reunião a resgatar os enormes sacos e já à luz do frontal alcançamos o carro aparcado na aldeia de Pinheirinhos (e claro está que tivemos de nos perder no caminho, não fosse o caso de ainda chegarmos de dia!).
Miguel Monteiro Grillo (Novembro 2005)

Via «Viagem sem Rumo» (235 mts, 6b/A2+) – Falésia de Pinheirinhos – Serra da Arrábida. Abertura realizada nos dias 2, 4 e 5 de Novembro de 2005 por Paulo Roxo e Miguel Grillo.















1 Comment:

Fatima Vinagre said...

Viajem sem rumo? Na minha opinião é com rumo!