segunda-feira, setembro 26, 2016

Pirinéus - acto II

PIRINÉUS - RESPIRAR!

Acto II - A SAUDADE



Ordesa vertical.


Estávamos cansados. Um dia para recuperar da ida e volta ao Circo de Perramó não foi suficiente. Os quadríceps ainda doíam, os gémeos também, mas a avidez de usar todo o pouco tempo disponível para escalar, fugir para lugares bonitos era maior que todas as dores do corpo, essas mesmas que se instalaram para mascarar a dor que se instalou na minha alma. Dias antes perdi a minha avó Zita, com os seus 101 anos. Segura de que olha agora por mim de uma forma diferente, decidi mostrar-lhe as paredes de Ordesa.
Dias antes, eu e o Paulo tínhamos falado em abrir uma via em Ordesa. Como ultimamente as escaladas tem sido escassas, a pouca rodagem parecia limitar os nossos desejos a uma parede já nossa conhecida, o Abismo de Carriata (vizinha do famoso Tozal del Mallo), onde em 2012 escalámos uma nova via. No entanto, desta vez, era a parede da Fraucata que cativava os nossos sentidos.


A imensa parede da Fraucata.


Cruzar a Fraucata era um sonho que vagueava nos nossos cérebros desde 2012. A parede intimidante, a menos concorrida, onde escaladores de renome, como Jesus Galvez e Christian Ravier deixaram traços ainda hoje pouco (ou nunca) repetidos. Essa mesma parede onde não nos sentiríamos confortáveis. “A Fraucata é a menos desejada das paredes de Ordesa. É austera, o sol chega tarde”, foi o que lemos no novo guia de Christian Ravier e Rémi Thivel. Essa frase exercia sobre nós um misto de medo e atracção.
De alguma forma, entre as saudades da Zita e a melancolia perdeu-se o medo, e deixámo-nos levar pelo sonho. Porque a Zita sempre me fez sentir o coração leve, livre, achei que tinha chegado a altura de enfrentar a Fraucata sem pensar demasiado. Libertar-me, tentar alcançar um esboço de alegria. Senti-me livre do medo de falhar, de não ser aceite por esta parede… “Que se lixe o que acontecer!” Neste enredo confuso, abrimos o livro de Ravier e escolhemos um espaço no papel sem linhas desenhadas. Após um dia de descanso acercámo-nos da parede.


A terminar o segundo lance de escalada. 


Cerca de 300m de calcário vertical olhavam-nos de soslaio. Buscámos o traçado que nos pareceu mais fácil. Brincávamos tentando adivinhar as dificuldades. “Em busca do V grau!” Porque não tínhamos muita corda para fixar, a aventura teria de se desenrolar em tão só dois dias. A rapidez seria algo imperioso para terminar a via no segundo dia. No primeiro não poderíamos fixar mais que 60 a 80m (80 metros... com truque!), no segundo, ou chegávamos au topo ou regressaríamos de mãos a abanar. De qualquer modo, decidimos que aquela via sairia de uma forma ou de outra. Tínhamos tempo, não íamos desistir!
No dia 26 de Agosto, perto da 9 da manhã, apanhamos o autocarro que nos depositou no parque de estacionamento de Ordesa. Uma hora e quarenta depois estávamos à sombra dessa enorme parede. A Fraucata parecia olhar-nos com um sorriso traquinas.


O Paulo inicia o terceiro lance da nova via.


Após um primeiro lance de trepada (70m, um passo de IV grau, o resto: jardinagem), atámos as cordas a um pinheirito isolado e, olhando para cima, descobrimos um lance de aparência… fácil.
- Queres ir tu? Não parece difícil! – propõe o Paulo.
- Estou cansada. Não estou muito motivada. Olha vai tu!
... passada uma hora e cerca de quarenta metros escalados juntámo-nos novamente, na nova reunião.
- Chiça! V grau? Achas mesmo? A mim custou-me! – declarei decepcionada.
- Eu não disse que era V grau! – retorquiu o Paulo.
Tínhamos acabado de escalar o lance que nos parecera mais fácil, um 6b! O nosso “em busca do V grau” desvaneceu-se e mentalmente preparámo-nos para uma via mais dura, bem mais dura.


Todos os lances são mais duros que o esperado.


No quarto lance. A aventura continua.


O dia de escalada parecia estar quase a terminar, pois a corda estática não dava para muito mais, mas lá nos lembrámos que poderíamos fixar uns 30m extra usando uma das cordas duplas (não aconselhável, mas lá o fizemos!). Assim, o primeiro dia rendeu-nos uns bons 80m de escalada.
Como em corpo não recuperado uma nova dose física não ajuda, achámos por bem descansar um dia para regressar em força.


Finalmente um respiro! O quinto largo "aligeira" um pouco.



"Mmm, como será o resto?"


No dia do regresso, despertámos às 4h30 e às seis da manhã apanhámos o primeiro autocarro que parte para o estacionamento de Ordesa.
Antes do nascer do Sol, escondemos uma mochila no meio de um denso matagal no início do caminho que nos levaria à parede. No interior dessa mochila colocámos algum equipamento de pernoita, caso não conseguíssemos apanhar o último autocarro para Torla, o das 22h00. Mentalmente, preparámo-nos para um dia épico.
Algures pelas 8h30 estávamos a tomar o pequeno-almoço, constituído por uma dose de 80 metros de jumar!


Uma reunião típica.


Num momento de travessia nervosa para aceder ao último muro da via.


Escalámos e escalamos e pelas 14h00 tínhamos já atingido uma pequena plataforma que corta a parede. Por onde ir?
Sem grandes hesitações, decidimos seguir a linha que parecia mais fácil – agora já sabíamos que a aparência de facilidade era aqui uma mera ilusão.
- Merda! Está aqui um piton! Este diedro já foi escalado! – a voz do Paulo denotava frustração.
- Queres tentar mais à esquerda? Ainda temos tempo! – berrei com convicção.
Estávamos determinados a abrir uma linha que fosse só nossa. O Paulo destrepou um pouco e escalou em direcção ao diedro da esquerda, aquele que queríamos evitar por nos parecer mais difícil. A vantagem é que terminaríamos a via por uma saída mais elegante.


Escalada exigente já no último muro da via.


Dois lances de escalada levaram-nos ao diedro final. Seria o último lance, lógico e inevitável.
- Merda! Um piton! – silêncio…
- Já andaram por aqui! Epá, agora vou seguir!
Esse último lance seria comum com outra via misteriosa que provinha de qualquer um dos múltiplos diedros ou fissuras. O guia não indicava qualquer via por ali. Foram os únicos vestígios de outros escaladores que encontrámos no nosso alinhamento.


Perto do final. Trezentos metros de escalada debaixo dos pés.


Após sofrer mais uns 35m de escalada, penduranço, “A1zanço” e tal, algures pelas 17h30 estávamos finalmente os dois no topo da Fraucata. Do outro lado do vale, olhávamos a parede do “Gallinero” com orgulho, felizes por ter cruzado toda a “Fraucata austera”, felizes por quase terminar o sonho (faltava a descida) que nos perseguia desde 2012. Felizes por deixarmos o nosso medo 345m mais abaixo. Deleitámo-nos com a paisagem, a vista era imensa, no horizonte de cristas de montanhas reconhecia-se o Taillón, o Cilindro de Marboré, a Falsa Brecha de Rolando, nomes famosos...


"Yeeeeaaaaahhhhhhhh! The end!... opss, ainda não! Falta a descida!"


Vistas largas para o belíssimo circo de Cotatuero. Descida esgotante mas, muito compensadora.


Faltava-nos agora regressar ao ponto de partida. Com alguma sorte e celeridade talvez conseguíssemos evitar dormir por ali. Agora o sonho mais apetecido era jantar num dos restaurantes de Torla. O guia de Ordesa indicava algo como 1h30 para descer... “Hummmm” - estranhámos e contámos no nosso intimo com 2h00. Fizemos contas para apanhar o “bus” das 20h00.
Andámos, andámos, e andámos muito, e em jeito de recompensa a natureza decidiu oferecer-nos a visão de enormes flores Edelweiss, rebecos que corriam pelo vale, marmotas empoleiradas em pequenas pedras. Andámos e corremos, porque o tempo passava e sentíamo-nos cada vez mais longe daquele jantar apetecido.
Perto de três horas depois, a esperança era agora apanhar o autocarro das 21h00.
Novamente no escuro, os arbustos que serviam de esconderijo para a mochila do depósito pareciam ter desaparecido! Os minutos passavam, víamos o jantar cada vez mais longe. Pouco depois os arbustos familiares apareceram. Com o pouco tempo que nos restava, colocámos a mochila às costas atabalhoadamente e corremos para o autocarro, ainda com o arnês à cintura e os friends a tilintar.
Eram 20h55 quando saltámos para dentro do autocarro. Nessa noite, os nossos liofilizados transformaram-se em dois excelentes “menus” e a água de rio ganhou o sabor de um vinho branco fresquinho nascido na mesma região da Fraucata, nos Pirineus!


Daniela Teixeira


A seguir: PIRINÉUS - RESPIRAR! Acto III


Topo da via "SAUDADE":







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