PIRINÉUS - RESPIRAR!
Acto I - Circo de Perramó
Vista do Circo de Perramó e Vale de Estós, desde o cimo da via "Momentos".
Ordesa! Sinónimo de vertigem, de aéreo, de lastras imensas
empilhadas formando o verdadeiro arquétipo de lego para gigantes.
A visão do mundo vertical do Parque Nacional de Ordesa
revela receios ocultos mas também sentimentos profundos. Não é fácil evitar as
exclamações sonoras em cada recanto do caminho, em cada brecha na folhagem da
floresta quando, como uma aparição fantasmagórica, surgem as muralhas
avermelhadas pela luz quente do final da tarde.
Já em 2012 a Daniela e eu tivemos a oportunidade de explorar
uma nova via nestas paredes e, não sei bem, mas a distância temporal talvez
tenha entorpecido a memória do medo visceral provocado pela verticalidade
perturbadora da escalada em Ordesa. Por isso… voltámos!
A grandiosa parede do Galliñero no Parque Nacional de Ordesa.
Nos últimos tempos, por razões diversas e uma perda familiar
imensa, os nossos níveis de ansiedade aumentaram muito. Resolvemos escapar para
as montanhas. Ansiávamos pelas grandes paisagens, pela natureza selvagem, pela
pureza crua dos montes, pela frescura dos bosques. Ansiávamos pela indiferença
dos elementos. Uma indiferença sem questões, sem juízos, no fundo, acolhedora.
Pirinéus: a mais bonita cordilheira do mundo.
Duas semanas: pouco tempo mas, uma lufada de ar. AR!
Ordesa consistia no objectivo principal mas, queríamos em
primeiro lugar subir a um lugar isolado, deserto e bonito. Lembrámo-nos de um
vale espectacular que havíamos visitado há uns anos. Mas seria necessário
andar. Andar e carregar!
As muito desejadas sombras do bosque num dia de caminhada dura sob um calor intenso!
Com as mochilas apetrechadas com tudo, incluindo equipamento
de escalada suficiente para abrir uma nova via, iniciámos a caminhada para o
Vale de Estós. Hora e meia depois, saímos do caminho principal e embicámos para
o trilho da esquerda, empinado e sinuoso em direcção ao Circo de Perramó.
O
calor acompanhou toda a jornada, apenas aliviada pela visão sublime das paisagens
de aspecto “Canadiano”, das montanhas, dos bosques e das lagoas de água
translúcida.
Uma visão do paraíso.
A Daniela já mais animada: "Estamos quase!"
Uma penosa subida de três horas e meia depositou-nos num dos
lagos superiores do Vale. Um mergulho rápido nas águas gélidas para lavar os
litros de suor perdido precedeu a montagem rápida da pequena tenda. À nossa
direita, a Torre de Perramó evidenciava-se. Em 2012 Escalámos por ali uma nova
via. Já naquela altura pensámos que os 75 metros de escalada não justificavam a
aproximação dura e demorada. Desta vez já se adivinhava uma repetição desse
cálculo matemático. Mas quem disse que a montanha é feita de cálculos
matemáticos? Nunca é, e naquele lugar, para prova-lo bastava levantar o olhar e
apreciar o horizonte num giro lento de 360 graus.
Delimitando a cumeada do vale que acabáramos de subir,
avistava-se o pico Perdiguero. Das suas vertentes escorregavam prados de um
verde intenso até desaparecerem escondidos por um bosque magnifico. As pequenas
lagoas encontravam-se salpicadas por ali e acolá. Em sentido oposto, ali estava
o cordão de granito formado pelas Tucas de Ixeya, Agulha del Chinebró e Tuca de
Corbets.
O nosso pequeno refúgio isolado do resto do mundo.
Estas paredes surgiam como uma carta aberta, disponível para colmatar
os nossos desejos de escalada. É um lugar bastante remoto e bastava escolher uma
parede ou um esporão ao azar e a probabilidade de se abrir um novo itinerário
era grande.
Ligámos o fogão para aquecer a água para a refeição. Não
fossem os mosquitos, a perfeição teria ali uma verdadeira expressão física. No
entanto, o tão desejado isolamento, esse, tínhamo-lo encontrado.
Às duas e
trinta da madrugada a fisiologia obrigou a uma saída da tenda. De olhos
entorpecidos admirámos o céu limpo e a via láctea em versão total. A ténue luz
combinada das estrelas era suficiente para iluminar a muralha de granito e a
lagoa que agora revelava uma tez negra. Paz e silêncio absoluto. PAZ! Ficámos
ali um bocado a olhar o infinito, a admirar o momento. MOMENTOS!
A preparar o material para iniciar uma nova via na face norte da Tuca de Xinebró... num lugar descrito pela Daniela como: "Onde o Diabo perdeu as botas!"
Na Tuca de Xinebró (de raríssima visita), a uma hora do
“campo base”, inaugurámos uma nova via. Cerca de 150 metros de granito, com a
cereja no topo do bolo situada no segundo lance, um diedro estético e belo.
A Daniela a emergir do primeiro lance fácil.
A iniciar o estético segundo lance da escalada.
Atipicamente, a nossa via não terminou no cume da torre mas
sim no cimo de uma crista. Para cima, ficou a faltar uma secção de parede tombada
de trepada fácil. “Parece demasiado tombado mas, não para descer!” –
considerámos. Decidimos não continuar para não ter que abandonar muito material
nas inevitáveis instalações de rapel. O chip da poupança prevaleceu à lógica
alpinística.
Visto a frio, caminhámos umas quatro horas para escalar uma
via de sabor incompleto e com um único lance de boa qualidade. Errado!
Caminhámos quatro horas para viver e respirar e ainda se aproveitou para subir
um pedaço de muralha com vistas largas.
As vistas compensaram todo o esforço.
“Como será isto no pino do Inverno?” – questionava-se a
Daniela, com os olhos metidos nas sombrias paredes vizinhas, voltadas a norte.
Naquele momento, nasceu uma nova ideia. Talvez um novo sonho…
Quase esquecemos que após uma subida daquele calibre,
inevitavelmente, viria uma descida igualmente extenuante. Os joelhos e os
tornozelos - especialmente os meus tornozelos, já bastante desgastados por
percalços e acidentes vários, ao longo de uma vida de aventuras - viriam a
queixar-se lá em baixo, na civilização. O dia terminou com uma tareia magnífica.
Algo que por aquelas bandas é conhecido como “Una menuda paliza!”
Que mais se
podia desejar?
Entretanto, Ordesa sussurrava…
Paulo Roxo
A seguir: PIRINÉUS - RESPIRAR! Acto II
Topo da via "Momentos":
3 Comments:
Muito bom! parabéns por mais uma abe(n)rtura!
Raios, não percebo!!!
Não consigo entender como após tantos anos de convivência, tantos anos de aventuras comuns, tantos anos a ler os seus rasgos literários, tantas partilhas... ainda fico impressionado, para não dizer mesmo emocionado com a qualidade deste teu relato... ou melhor, desta pequena-grande peça literária... desta voz interior a exaltar liberdade!
Por momentos... estou esmagado por uma saudade irrecuperável...
Parabéns por esta pequena aventura, e fico a aguardar pelos próximos dois capítulos.
Um grande abraço
Miguel Grillo
Que comentário tão simpático Miguel. Mas eu ainda acho que a palavra "irrecuperável" não existe! Um abraço deste teu amigo de aventuras.
Paulo Roxo
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