BÉÉÉ!... BÉÉÉ!...
(Nota: No dia 13 de Março de 2000, no então existente Forum Montanha (www.jba.pt/montanha/forum) apareceu esta inspirada história acerca de um pastor alentejano e as suas ilusões verticais, escrito pelo Paulo. Hoje, recuperando este texto, aqui fica para deleito de todos uma vez mais)
(Nota: No dia 13 de Março de 2000, no então existente Forum Montanha (www.jba.pt/montanha/forum) apareceu esta inspirada história acerca de um pastor alentejano e as suas ilusões verticais, escrito pelo Paulo. Hoje, recuperando este texto, aqui fica para deleito de todos uma vez mais)
O compadre Gumerzindo, respeitável pastor da aldeia do “Pé na Bosta”, estava um dia, como todos os dias, a guardar o seu famoso rebanho de 32 ovelhas. A poucos metros de si estava “Vómito”, o fiel e único amigo de quatro patas e raça rafeira, companheiro de duras andanças pelos montes perdidos do Alentejo.
Sentado num calhau, mãos e queixo apoiados no seu cajado, de olhar inexpressivo, ao qual já se havia acostumado, Gumerzindo deixava que os minutos decorressem livres até se transformarem em horas. A seu lado… BÉÉÉ!... BÉÉ!… Vómito dormia, de focinho entre as pernas, absolutamente indiferente ao constante balir das ovelhas que, em seu redor devoravam ervas e pedras.
E, eis que de súbito, algo espantoso aconteceu… Trazidas pelo vento que se levantara com o final da tarde, as folhas de uma revista voavam descrevendo piruetas desordenadas até que se espetaram, num golpe seco, em cheio na cara de Gumerzindo.
- Ai! Merda! - bramiu.
Vómito levantou ligeiramente o focinho para, logo de seguida o voltar a pousar.
- O que é isto? - num gesto irritado o pastor retirou as folhas da sua cara. Dirigiu-lhes um rápido olhar antes de se preparar para as voltar a jogar ao vento. Mas, qualquer coisa despertou a atenção de Gumerzindo. Apesar de amarrotadas e descoloridas, ainda se conseguia observar uma série de fotografias nestas velhas páginas da revista. As estranhas fotografias eternizavam imagens de pessoas que se suspendiam unicamente pelas mãos em rochas e fragas, envergando roupas coloridas e esquisitos artefactos de metal, por onde passavam finos e atraentes “cordéis”. Algumas fotografias mostravam atletas de torso nu e musculado sobre pedras, em posições contorcionistas. Noutras imagens viam-se verdadeiros astronautas, dobrados sobre si próprios, transportando ás costas grandes “armários” e aparentemente, caminhando sobre inclinadas pendentes de neve.
Os olhos de Gumerzindo esbugalharam-se quando surgiu a foto de uma bonita rapariga, agarrada como uma lapa a um pedaço de rocha, envergando roupas mínimas, que lhe salientavam belos ombros e lombares bronzeados. Demasiado acostumado à companhia das suas ovelhas, custou-lhe abandonar esta ultima fotografia. A curiosidade deu lugar ao fascínio e só quando o Sol se escondeu por detrás do monótono horizonte, é que Gumerzindo desviou os olhos desta ocasional oferta do vento.
Nessa noite, embrulhado no seu velho cobertor esburacado, à luz da fogueira, tendo como tecto o céu estrelado, Gumerzindo tomou uma importante decisão. Também ele se iria tornar num trepador.
Blocos e paredes de granito invadem a paisagem da Serra da Estrela. Um território ainda em estado bruto no que diz respeito à escalada. A distância, a fraca vontade de exploração e aventura e, a pura ignorância, fazem com que este maciço receba poucas visitas do “pessoal colorido e artilhado de artefactos metálicos”.
No entanto, para Gumerzindo, este era um local de paraíso. Bons pastos para o seu rebanho de 31 ovelhas (a pobre Ofélia fora atropelado por um camião TIR quando cruzava o IP8, junto a Castelo Branco), montes e vales para o Vómito correr e saltar (um novo júbilo despertara no espírito deste cão, outrora um calão incorrigível) e sobretudo, muita rocha para Gumerzindo estoirar com os braços a praticar a sua nova e apaixonante actividade. Inspirado pelas páginas da velha revista, ainda em seu poder, cedo adquiriu o seu primeiro material técnico de escalada. Nos pés calçava umas belas galochas, ostentando a marca «Five-Ten», pintada a marcador. Uma lata vazia de feijões, com dois furinhos por onde passava um cordel, de forma a atar à cintura, fazia as vezes do imprescindível saco de magnésio. Quanto ao magnésio, pó-de-talco, está claro.
- “O único problema” – pensava Gumerzindo – “é que as mãos parecem escorregar um pouco mais”.
Para os dias frios não faltava a quente samarra… «North Face», bordado no ombro.
E assim passava os seus dias Gumerzindo. Escalando (sobretudo em solo) e resolvendo complicados problemas de Boulder, sempre acompanhado pelo seu inseparável rebanho de 31 ovelhas (BÉÉÉ!... BÉÉ!...), sob o olhar arguto do fiel (apesar de horrível) cão.
Para os passos de Boulder mais expostos já havia ensinado Vómito a conduzir o Ambrósio e a Mamalhuda (os calmeirões do seu rebanho) para debaixo de si, de forma a proteger eventuais quedas. Finalmente resolveu rebaptizar estas duas ovelhas como: o casal “colchão” (Crash-Pad, para os mais técnicos).
Mais meses volvidos e o pastor continuava a ser visto nos locais mais dispares da nossa geografia.
Um dia, nas Buracas, conseguiu encadear o seu primeiro 8a em solo, deixando os “penteadinhos”, bem vestidos mestres do “grau” (que se encontravam no meio das suas ovelhas… BÉÉ!...) boquiabertos.
Noutro dia alguém o descobriu a escalar “à vista” um 7c+ na Fenda da Arrábida. O escalador que testemunhou o acontecido relatou o facto:
- É pá! Eu cá só ouvia balidos de ovelhas. O cheiro era pestilento! De repente, do meio de toda aquela lã, vejo um tipo com umas galochas e uma lata de feijão atada à cintura, a subir como um louco por ali acima… foi indescritível!
Em Sintra, nos novos blocos de Boulder, resolveu um V10 à terceira tentativa.
Quando interrogado sobre os seus mais recentes feitos, a sua resposta foi enigmática:
- Ó compadre, experimente lá conduzir um rebanho pelos montes Alentejanos e aí sim…vossemecê vai ver o que é a dificuldade de verdade!
Hoje em dia pouco se sabe de Gumerzindo. No entanto algumas testemunhas oculares afirmam ter visto, em plena autopista Espanhola, um pastor de samarra (North Face) e de cajado em punho a deslocar-se em direcção a Cuenca, acompanhado por um rebanho de 33 ovelhas (comprovando os anunciados nascimentos de “Patas Tortas” e de “Costas Arqueadas”, os primeiros filhotes do casal Crash-Pad).
Ah! Convém não esquecer que, seguindo atrás de toda a “família” de Gumerzindo também foi visto um cão muito feio arrastando uma comprida língua.
Seria o fiel Vómito?
Paulo Roxo em 13/03/2000 (www.jba.pt/montanha/forum)
6 Comments:
Muito muito bom!!!!!
O Humor inigualável do roxo!Excelente!
Para quando o livro?
Abraço
o Roxo é o verdadeiro master! uma inspiração para todos nós... Parabéns.
Não era má ideia fazer uma pequena compilação de todos estes devaneios humorísticos com que o Roxo sempre nos presenteou...
Só é pena a "velhinha" revista Montanha já não existir...
Continua!
Um texto inspiradíssimo! Foi muito agradável relê-lo.
Um abraço ao autor e beijinhos à namorada.
ZM
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