quinta-feira, junho 08, 2006

Recuperando um antigo texto, publicado à mais de um ano atrás num conhecido forum:

O MEMORIAL DO CARVALHINHO

No inicio, ainda antes de ter visto o mundo, vim a voar no cú de um passarinho. Este pousou debaixo daquele tecto sombrio e, indiferente ao meu destino, resolveu cagar numa fina fissura de granito. A humidade fria dos Invernos e o calor abrasador dos Verões viram-me nascer sob a forma de um tímido arbustinho passando, alguns anos depois, para um pequeno mas forte e orgulhoso tronco de árvore. Tinha-me transformado num Carvalho (na verdade, tão entalado estava naquela estreita fissura que o meu crescimento sempre foi difícil. Realmente, havia-me transformado num “Carvalhinho”). A minha posição era privilegiada. Avistava todo o vale da Nossa Senhora da Peneda até Tibo. À minha frente, o maciço granítico estendia toda a sua crista até à gigantesca placa da Nédia. Os dias, meses, anos e as estações, corriam lentamente. A magnífica monotonia cíclica da terra desfilava ao vento, perante os meus ramos e folhas. E, eis que um dia vi surgir uma figura humana. Trepava na minha direcção. De estranhas vestes e um magote de quinquilharia metálica à cintura, este estranho ser ganhava gradualmente altura. Corria o mês de Outubro do ano 1981. Miguel Lopez, Antonio Martinez e José Maria, subiram até à minha presença e, um de cada vez, suspenderam-se ao meu tronco para cruzarem, por primeira vez, o tecto que me cobria da intempérie. Ainda estava longe de adivinhar a importância daquele acto. Aquele encontro surreal, naquele cantinho remoto da parede da Meadinha, acabou por marcar a minha vida para sempre. Estes primeiros escaladores baptizaram a linha de quatro lances “As escaleras al cielo” e, ao nível da segunda reunião, ali estava eu, no caminho, como uma bênção da oportunidade, pronto a ser laçado, ao bom estilo dos cowboys. A palavra foi viajando e, com o correr dos anos transformei-me no Carvalhinho mais famoso da região. Todos os que ousavam enfrentar a “Escaleras al cielo”, iriam encontrar-me, laçar-me e continuar. O “passo da árvore” era inevitável e a minha importância inestimável. Eu era um Carvalhinho emblemático conhecido e comentado por todos. A minha existência tornara-se um símbolo. Até que... o mês de Fevereiro de 2005 viu surgir três escaladores. Não havia novidade. Três mais, três menos... não fariam a diferença. Só que eu não me apercebi dos sinais. Algo não estava bem. Quando se aproximaram não consegui distinguir o brilho tresloucado por detrás dos óculos de um deles. O primeiro escalador laçou-me a sua cinta, como todos o fizeram até então. - À primeira! Nunca tinha laçado a árvore à primeira! - gritou o tal de Miguel Grillo.

A segunda escaladora, de nome Daniela Teixeira, repetiu os movimentos, subindo sobre mim e continuando... como todos até então. Mas, eis que surge o terceiro elemento. O de olhar tresloucado. Não sei se era da vaidade por estar a estrear umas ridículas novas calças amarelas ou se este seria apenas e por natureza intrínseca um “pataludo” incorrigível, o facto é que a sua conduta foi muito menos elegante que a dos precedentes. Duas mãos feias e enrugadas agarraram o meu tronco e suspenderam-se confiantes. Demasiado confiantes! Num mísero segundo a minha vida foi literalmente quebrada. - VIL ASSASSINO! Pendurado pela corda, a rodar no ar, o surpreendido criminoso fitava nas suas mãos o meu corpo inerte, separado para sempre daquela moradia de granito, à qual já me havia acostumado.

Segundos depois fui lançado ao vazio, caindo na base da parede, saltando uma, duas vezes, até jazer junto aos meus primos maiores. Que morte tão indigna! Um trágico momento na história da escalada na Meadinha. A partir desse instante o “passo da árvore” seria muito mais difícil. Sem a minha valiosa presença tudo se havia modificado. Ao descer, os mesmos três escaladores encontraram-me numa das curvas do caminho romano. Após uma breve homenagem solene, fui deixado no interior de uma fissura de granito, na parede que me viu crescer.

As flores irão surgir, o Sol irá aquecer, as folhas cairão e a chuva irá aparecer. As estações do ano seguirão o seu curso normal. A Terra continuará a rodar à mesma velocidade e os planetas do universo não se desviarão da sua rota. No entanto, nem que seja por uma miserável e ridícula parcela de um micro-segundo, o mundo mudou. Sem mim, o Carvalhinho, o mundo mudou.

Paulo Roxo (o de “olhar tresloucado”)

20 de Fevereiro de 2005

1 Comment:

Isabel said...

Esta história fez-me lembrar outras bem parecidas :)
Muito bom o texto!