terça-feira, outubro 31, 2006

Dos 8201m para o Pedra Dura

Então cá vai uma pequena amostra do cume do Cho Oyu...


quarta-feira, outubro 25, 2006

O Regresso de… JOLLY ROGER!?!?


Reza a lenda que este nome seria a alcunha do Diabo.

Representado pela figura de uma caveira branca sobre um fundo negro, cada um dos mais temerários piratas, vagabundos e senhores sem lei da imensidão dos mares, hasteavam orgulhosamente a sua Jolly Roger, anunciando aos quatro ventos o terror e a destruição.

Avistar ao longe, entre a maresia de uma qualquer manhã, a imagem de Jolly Roger, provocava um incisivo medo às suas vítimas e motivava a uma rendição rápida. O simples vislumbramento da bandeira branca e preta provocava horror pois esta bandeira trazia um presságio inevitável da inexistência de misericórdia durante a iminente batalha.

Ainda hoje, espíritos ávidos de liberdade… sequiosos seguidores das suas próprias ilusões, vagabundeiam subtilmente nas cerradas malhas de caminhos forçosamente estabelecidos…

Rumores recentes, trazidos pela força das vagas do Atlântico dizem que em breve, sinais demoníacos, evocando a presença de Jolly Roger, irão aparecer nas mais refundidas, grotescas e escarpadas falésias da costa lusitana, longe dos olhares mais fechados.

Sob a presença da negra e branca imagem, pequenas peças metálicas do mais duro e resistente aço inox serão disseminadas em estratégicos locais mantendo a rebeldia dos espíritos livres em reais aventuras verticais.

Diz-se que algures em suposto solo divino camuflando assim qualquer suspeita, piratas modernos da verticalidade, mentes retorcidas, irredutíveis discípulos e entusiastas seguidores das suas ideologias, invadem ao final da tarde de cada chuvoso e cinzento dia de Outono, após o expediente, uma escura e insuspeita oficina, onde na mais ténue descrição criam e fabricam as já citadas peças metálicas, apelidadas da gíria da comunidade escaladora de «plaquetes». Rodeados de torturantes artefactos e ferramentas tais como serras e punções, brocas e berbequins e endiabradas máquinas de quinar, incessantemente horas a fio, cortam, furam e retorcem enormes quantidades de chapa do mais prestigiado inox. O tempo passa, e vagarosamente aumenta a quantidade de chapas que se disseminarão sob o regresso de Jolly Roger.

Não se sabe como nem quando, e embora alguns ainda não acreditem, duas fotos das ditas cujas, apareceram nas mãos dos mais incrédulos.

Como tal aqui fica o alerta:

Estas chapas não têm qualquer inscrição numérica de valores de resistência
Não estão certificadas pela UIAA e muito menos certificadas pela CE
Tampouco foram sujeitas a qualquer teste oficial de resistência à ruptura
Diz-se que apenas respeitam a Norma ISO 9 mil e nunhum

Muitos já se perguntam qual o motivo de tal regresso. Para os mais cépticos, uma tentativa de disseminar o terror. Para os mais atentos apenas uma forma mais rentável de continuar a percorrer novos recorridos em busca das tão ansiadas aventuras.

Como nos tempos antigos, estes modernos piratas também se submetem a um código de honra que dita assim:

- Não serão equipadas vias de corte desportivo com estas chapas… até ao dia em que por obra do acaso um pirata mais retorcido de rebeldia constatada se lembre de realizar tal acto!
- Não serão equipadas reuniões em vias de vários lances utilizando estas mal afamadas… até ao momento em que por obra do acaso se acabem as caras e oficiais plaquetes nas mãos do pirata aberturista do momento!

Muito a medo, num tom muito, muito baixinho, já se diz que em breve nascerá a primeira via semi-equipada (!!!) com estas chapas.

Onde será? Quando será? Como será?

Apenas uma única e real resposta poderá existir.

Unicamente Jolly Roger!!!

Miguel Grillo





Ainda sobre o DOURO...
...algumas fotos da construção da Barragem de Aldeadávila.
Canhão do Douro

Canhão do Douro em 28 de Julho de 1956


Barragem em construção


Cheias de 1960 (1-Barragem; 2-Saida tunel desvio)

Cheias de 3 de Janeiro de 1962


Barragem de Aldéadávila


Corazón de las Arribes (embarcação que realiza passeios turisticos/didácticos)




Miguel Grillo

sexta-feira, outubro 20, 2006

Dia de cume, 7 de Outubro de 2006


Pela meia-noite e meia, quando meti a cabeça fora da tenda, já 6 luzinhas tomavam a direcção do campo 3 enquanto a lua iluminava o caminho.
Os 2 rapazes filipinos estavam já também de saida.
A ideia do sherpa Lakpa, era dar a esta expedição oxigenio desde o campo 3.
Eu e as duas raparigas, acabamos por sair tardiamente, cerca das 2:30.
Preocupava-me ja o atraso e o vento gélido que soprava não era um bom pressagio. Acelerei o passo e uma hora depois percebi que os dois rapazes filipinos estavam demasiado lentos para fazer cume. Cerca de 15 min. depois, 3 italianos que conheci baixavam demovidos pelo frio e pelo vento. Diziam que não se queriam meter em ventos de 70km/h que se faziam sentir acima do campo 3. 70km/h era exagerado, as previsões que tinha eram de cerca de 40 para o cume, pelo que decidi continuar. Perguntei-lhes por Julia, uma alpinista do grupo, disseram-me que teria decidido continuar com outros 2 italianos.
Cheguei ao campo 3 cerca de 3h depois e decidi parar meia-hora para recupar, comer e beber algo. Aí, dois Espanhois exclamaram: "Hola Portuguesa, vienes del campo 2?"
Respondi afirmamente. Disse-lhes que queria descansar um pouco mas, ao ver que se estavam a preparar para subir resolvi aproveitar a "boleia". Não queria continuar sozinha.
O dia começou a clarear e acabei por sair do campo 3 com Rafael, que se viria a tornar em "São Rafael" pelo que se passou a seguir. Subiamos ao mesmo ritmo. Após uma vertente, chegamos a uma banda de rocha (a Yellow Band) que é necessário transpor.
Está tudo equipado com cordas fixas. No entanto, áquela altitude, cerca de 15 ou 20 metros de uma fácil escalada em rocha tornam-se num verdadeiro desafio, especialmente porque, para além do arfar, é necessário mexer em material, o Jumar (ascensor), com umas enormes e desajeitadas luvas de penas sem dedos e no meu caso com um bastão em punho. Vagarosa e desajeitadamente, lá transponho este obstátulo. No final, à que remover o Jumar, passando-o para a corda seguinte. Neste processo, sou obrigada a tirar uma luva, ficando só com uma fina luva interior. De repente, deixo cair a luva. Gelasse-me o coração, pois sei que sem a luva não posso continuar, pois se o fizesse, iria congelar os dedos. Olho para baixo e vejo Rafael a apanhar a minha luva. Espero um pouco até que este me alcansa, com a luva entre os dentes. Agradeço emocionada, sem ele nunca poderia continuar.
Depois deste incidente, apesar do frio intenso, a minha motivação parece ter-se renovado. À medida que subo, as pendentes parecem multiplicar-se. Distâncio-me de Rafael e dou por mim novamente sozinha, a pensar se será ou não possivel alcançar o cume desta montanha, com o vento forte que se faz sentir. Quantos irão à minha frente?
Tenho a certeza que pelo menos 3 italianos, que sairam bastante antes, já que não passaram por mim a descer. Isso dá-me forças para continuar. Um pouco mais à frente, vejo mais duas pessoas, que como eu se movimentam vagarosamente.
De repente, vejo o fim das cordas fixas e o sol começa a iluminar-me. Penso que me irá aquecer, mas engano-me, pois o fim das cordas fixas significa a diminuição de pendente e logo uma maior exposição ao vento.
Paro para beber um pouco de sumo e tentar engulir alguma coisa. O sumo está já bastante frio e quase intragável, apesar de muito protegido. De comer, apenas consigo espremer um gel meio energético, tudo o resto congelou. Por esta altura, perdi já a sensibilidade nas pontas dos dedos de uma mão, mas não me preocupo muito porque percebo que as mexo bastante bem.
Quero acreditar que no fim da vertente vai surguir o que dizem ser o longo planalto sumital, mas quanto mais subo, mais a montanha insiste em esconder-me o dito planalto. Não faço ideia das horas, não posso retirar a luva para ver o relógio, o intenso vento tenta demover-me, mas penso "já que cheguei até aqui, continuo um pouco mais, pelo menos até que os italianos que estão à frente se cruzem comigo ao descer".
Nisto alcanço outro alpinista espanhol e pouco depois entramos os 2 no tal planalto do cume. As nuvens à minha frente movem-se depressa e a visibilidade não é perfeita. Os 40km/h que o Vitor Baía previa, eram ali cerca de 50 ou 60, duros de enfrentar. Penso que já deve faltar pouco, quando vejo um vulto a caminhar na minha direcção. Quando nos cruzamos, reconheço um dos espanhois e pergunto "quanto tempo para o cume?" ao que me responde "2 a 3 horas". Surpreendo-me com a resposta e fico ali parada a pensar que com este vento não vou conseguir. Faço um esforço para ver as horas e vejo que são cerca das 12:30 (hora nepalesa). Penso que se demorar 2 a 3 horas poderei ter sérios problemas. Pegadas apagadas pelo vento naquele imenso planalto com fraca visibilidade, podem significar perder-me por ali. Fico ali parada o que penso serem 1 ou 2 minutos, a pensar o quão larga é a distância e tão curta a altitude. Desisto, volto as costas e penso que não vale a pena arriscar. Minutos depois, cruzo-me com um espanhol que vinha a subir e que me diz "não não, daqui é no máximo uma hora, vamos, tenho um amigo mais à frente". Isso dá-me novo animo e decido arriscar. O tipo parecia confiante. Novamente me ponho a caminho e passado pouco tempo surge vindo do cimo, o tal amigo feliz dizendo "são mais 10 min". Esses 10 minutos pareceram-me 5 e de repente estava ali, um cume que não parecia cume, de tal forma se encontra dissipado no meio de um planalto com nuvens que se movimentam rápido e com neve que um intenso vento levanta.
Eram as 13:00. Sentados no chão, estavam Simone e Julia (italianos).
Felicitamo-nos. Olho em volta e avisto umas velhas bandeirinhas de oração. Atrás de mim, jaz no caminho uma garrafa de oxigénio laranja e um cantilo azul, há algum lixo no cume.
O Everest que era suposto ver, estava tapado pelas nuvens.
Faço de imediato uso do meu telefone satelite, primeiro tenho a sorte de falar com o meu pai "Pai, estou no cume! Consegui!" grito eufórica. Depois envio uma menssagem ao Pedro Cuiça para colocar no site da expedição. De seguida, peço aos italianos que me filmem um pouco, enquanto balbucío algumas coisas que me vêm à cabeça. Filmo um pouco o envolvente e quando peço que me tirem umas fotos, a minha máquina recusa-se a funcionar, acusando falta de bateria. Não posso acreditar. Nisto chega o espanhol que estava mesmo atrás de mim e peço-lhe para tirar umas fotos com a sua câmara, "Claro!" responde. Pouco depois vejo Rafael. Os dois espanhois conhecem-se. Peço também que me tire umas fotos, ao que este acede. Pouco depois, inspeciono o meu cantil, tal como temia descubro meio litro de liquido congelado. Até a comida que trazia junto ao corpo conjelou! Resta-me voltar para baixo rapidamente e fugir ao intenso mau tempo. Penso apenas que o Vitor Baía tinha razão, não era dia de fazer cume...apesar de já estar feito!
O meu primeiro 8000...em tão duras condições.
Não duvido que baixarei bem e depressa ao campo 2, pois sinto uma enorme energia interior e uma intensa satizfação. Chego a esquecer que apenas ingeri meio litro de sumo e um pacotinho de gel, surpreendo-me como me sinto tão bem.
Vejo os restantes a descer devagar e extenuados, eu estranhamente, pareço agora ligada à corrente electrica!"
Rapidamente me ponho no campo 2 e na ultima vertente, cruzo-me com 2 filipinos. Como os vejo exaustos, percebo que algo correu mal.
No campo 2, Noell (uma das filipinas) recebe-me de braços abertos e felicita-me. Estranhamente, o efusivo Lakpa mal põe a cabeça fora da tenda. Com Pasang passa-se mesmo. Dizem-me pouco depois que Regie, o lider da expedição, ficou com cegueira das neves e os 2 sherpas tiveram de o descer amarrado a cordas, pelo que ambos estavam extenuados.
O ambiente estava pesado.
Como o cansaço foi contagiante nessa noite, apenas eu e Noell cozinhamos umas massas para o jantar, mas já não houve paciencia para fundir gelo para fazer água. Assim, fiquei-me com um pouco mais de meio litro nesse dia. A consequência, foi uma enorme dor de cabeça nocturna!Karina, demorou uma eternidade para descer a ultima vertente, sentando-se de 5 em 5 passos. O que se desce em cerca de 15 ou 20 minutos, deve ter-lhe custado umas 2h.
Pela noite, ainda tive o enorme prazer de falar com os meus pais e com Ivan, que do outro lado do telefone estava tão contente com a noticia, que parecia ter sido ele a fazer cume.

NOTA: fotos...breve breve :)

quinta-feira, outubro 19, 2006

Terra de ninguém

TERRA DE NINGUÉM


- Ai querias BigWall?
- Ai querias?
- Heheh…

São cinco e meia da manhã e despertamos uma vez mais ao som do irritante despertador. Hoje será o nosso 5º dia em parede. Escalamos à 4 dias imersos nesta grandiosa mole granítica sobre as estranguladas águas do rio Douro.
A madrugada está fria e sobretudo paira no ar uma cerrada humidade. Prevemos que estamos a dois ou três lances de corda do final desta imensa parede. Se tudo correr bem, hoje sairemos desta intensa viagem vertical.
Já com a luz do amanhecer e rodeados de uma espessa bruma, o Paulo inicia mais um largo. Refundido no meu azul Gore-tex, uma estranha sensação de isolamento invade o meu pensamento. Talvez influenciado pelo lúgubre ambiente momentâneo ou pela tristeza do final avistado, pergunto-me se de facto tudo isto valerá a pena. Confesso que em cerca de década e meia de escalada, esta é a primeira vez que tão assustadora questão me ocorre. À algumas semanas atrás, alguém me perguntava se eu não achava que perdia demasiado da vida, ao estar sempre tão envolvido por algo tão incompreensível aos olhos da maioria.
Será que estou a ficar velho? Hummm… a verdade é que nesta manhã tudo me parece tão pouco claro…

Desde o início (nestas andanças), eu apenas queria voar. Voar suavemente como a brisa fresca que agora embate na desnuda pele das nossas faces. Subir onde os sonhos viveriam, onde pudesse transparentemente ver a vida como ela realmente seria, num misto de coloridas luzes e cinzentas sombras, entre picos e profundos vales, submergido numa grandeza que jamais poderia ser quantificada ou tampouco explicada. Naqueles dias, nunca sequer batalhei para compreender o que jamais deveria ser compreendido, tentando viver num qualquer rumo sobre o qual eu pudesse nele acreditar.


Nos últimos anos, esta parede preenchia alguns dos mais secretos recônditos da minha própria ilusão. Acreditava que poderia ser, poderia transformar-se num qualquer portal para um outro mundo. Constantemente me perguntava se nós realmente escolhíamos as verdadeiras encruzilhadas das nossas vidas. Certos acontecimentos, consequentemente transformam-se na nossa própria história, mesmo quando não conseguimos sequer recordar um único e singular momento de decisão.

Na manhã de há quatros dias, reencontrando-me face a face (já em Dezembro de 2004 havíamos tentado a sua ascensão) com esta enorme muralha, diminuto a seus pés, a nossa presença sentia-se como sendo uma escolha, a nossa escolha. A parede encontrava-se silenciosa e sombria, como uma grandiosa catedral de 400 metros capaz de inspirar devoção até mesmo ao mais dogmático não crente. Intuía que a parede falava connosco, sussurrando ironicamente ao nosso ouvido e dizendo: “Bem-vindos à vossa actual realidade! Tem muito para ganhar e tudo para perderem. Agora terão de jogar com as regras da gravidade!”.
Se esta foi a minha escolha, porquê estes inseguros pensamentos? Talvez porque nunca é mais negra a noite do que quando amanhece…

O Paulo termina de abrir mais um largo. Provavelmente o penúltimo largo. Subo recuperando o material. Acima vejo um diedro bastante sujo, húmido e ervoso para finalizarmos esta escalada. De baixo, não parece ter dificuldades de maior, mas uma vez iniciada esta tirada deparo-me com algo extremamente exigente de escalar, com uma elevada dose de exposição. O desejo de terminar é forte mas este lance consome bastante tempo…demasiado tempo.
Finalmente chego ao mais alto do Picón La Carrocera, e lucidamente todas as minhas dúvidas, hesitações e incertezas se dissipam de um só golpe. Liberto um grito de euforia camuflando a minha felicidade. Alguns minutos depois o Paulo, eu e os nossos dois gordos e pesados “petates” estamos reunidos no seu cume e com tempo para absorver o espectacular da situação.

Na minha mente vejo com maior clareza de que a vida é seguramente melhor aqui em cima do que lá em baixo, na cidade. Suportar a vida diária não me é fácil. Na realidade não creio que encaixe totalmente nela. Não consigo imaginar um sentido realmente útil. Todos os meus desejos apontam em direcções sem esperança, como sonhar e sentir-me vivo nesta austera parede. Ter um pé no socialmente correcto tem as suas vantagens, mas escalar é a verdadeira fonte das minhas vivências. Estou seguro que este caminho em direcção ao cimo deixou a marca da sua magia gravada nas nossas almas. Diante de nós, este imenso mar de pardacento granito assim como as tranquilas águas do Douro, avassalam-me, como um deserto sem gente, como só apenas aqui o poderia sentir, aqui longe…longe nesta Terra de Ninguém!

Miguel Grillo (11/10/2006)
Ficha Técnica e enfadonha de uma aventura vertical (foram avisados!)
Em Dezembro de 2004 realizámos a primeira tentativa.
Falo da tentativa de abrir uma via nas polidas paredes de granito do Douro Internacional.
Nessa altura fazia tanto frio que o desgraçado a quem tocava assegurar entrava em hipotermia como se de uma ascensão aos Himalaias (tão em voga nos dias que correm) se tratasse.
Após três sofridos lances, fugimos daquele gelo em direcção a um quente prato combinado, em Aldeadávila.

Importante: Antes de continuar, gostaria de referir que por aqui abundam passarinhos raros. Assim, torna-se imperativo respeitar a época de nidificação, de Janeiro a Agosto!

Este ano o Miguel e eu voltámos à carga.
Cinco dias depois emergimos triunfantes, qual águia sobranceira, no topo do pico de nome curioso, "La Carrocera".
Por baixo dos nossos torturados pés ficaram 400 metros de escalada sobre o rio Douro.
Para trás ficou todo o trabalho bestial de carregar e içar petates (grandes mochilas altamente desengonçadas mas, ultra reforçadas de modo a sofrer os piores roçamentos de toda a história da escalada).
Para trás ficou a horrível (e, ao mesmo tempo, bela) aproximação à base da parede.
Para trás ficaram as horas e horas de escalada lenta conquistada centímetro a centímetro.
Para trás ficaram as cuecas e as meias positivamente decoradas após cinco dias de parede.
Ficou combinado que o Miguel escreveria o texto "lamechas" e eu, o texto técnico da aventura. Por isso vou espetar-vos com uma seca de 12... ehh... 14 capítulos porque, para além dos 12 lances abertos ainda temos de juntar o acesso e a aproximação.

E é mesmo aqui que abro um parêntesis para vos dizer que estão à vontade para abandonar este blog e voltar a clicar no "Havista.com" ou em qualquer outra página à vossa escolha. Ou mesmo, desligar o computas e ir ver o "Preço certo", ou a novela da "Floribela". A sério! Estão mesmo à vontade!

Para os masoquistas resistentes aqui vai a descrição da via:

TERRA DE NINGUÉM, 405 mts, 6a+/A2
O Zé (sim, simplesmente "Zé"), para quem de quando em vez vou vergar a mola nos trabalhos verticais, ao saber da nossa aventura disse imediatamente: "Epá, essa parece ser a maior parede Portuguesa... em território Espanhol!"
"Yep! Boa descrição" Pensei.
Mas não, a maior parede ainda creio ser a Nédia na Peneda, mas essa é muito mais tombada. A Carrocera será talvez a mais... Tesa!
Não está de facto em território Português mas sim, voltada para Portugal (e aqui deve estar a razão pela qual ainda não possuía qualquer via. Imaginem se estivesse voltada para Espanha...).
No fundo, o que quero dizer é que este é um paredão colossal (como outros na zona), onde se torna obrigatório utilizar as técnicas de Bigwall.
Para terem uma ideia de como funcionam estas coisas, aqui vai uma versão resumida das acções de um típico dia de Bigwall.

Empacotar tudo de forma minimamente ordenada. Contar com 2 a 4 horas de trabalho.
Escalar em artificial durante horas e horas seguidas. Em geral é neste momento que o assegurador se coloca a questão do milhão: "Que merda estou eu aqui a fazer?"
Içar os maravilhosos petates. Acção não isenta de riscos que envolve técnicas de desmultiplicação de cargas de concretização básica... nos manuais, mas não na vida real! Claro está que as reuniões devem ser à prova de bomba... termonuclear... uma vez que lidamos com pesos brutais.
O segundo de cordada coloca os dentinhos afiados das levas dos jumares na "camisinha" da nova Beal e "jumareia" a corda de escalada previamente fixa. Este cavalheiro desmonta toda a quinquilharia colocada pelo primeiro de cordada. Incluindo entaladores demasiado entalados, pitons que teimam em não sair e friends ridiculamente encravados. Uma maravilha. De qualquer modo é bem melhor do que içar os petates... bem, partindo do princípio que estes não ficam presos por baixo de um tectinho qualquer (coisa bastante frequente!). Aí, lá vai o segundo armado em herói, a rodopiar na corda (que roça por todos os lados), com um pátio do camano por baixo das nalgas, para forcejar como um condenado de forma a conseguir desbloquear os teimosos petates. Conclusão: Deixem-se lá de cócós com o pozinho na camisinha das cordas e com os saquinhos de protecção! Aqueles esparguetes aguentam um boi, mesmo com a alma à vista em vários sítios.
Montar o "acampamento".
Pendurados como chouriços devem os intervenientes montar a maravilhosa hamaca: "Foda-se! Lá no meu quarto eu montava esta jorda em menos de um minuto e aqui... porra, esta fita onde é que fica?... Merda! Os meus rins!"
Cagar!
Ah pois é! Pensavam que a malta desligava o circuito quando escalava uma parede desta envergadura? Como podem imaginar, a acção desenvolve-se com uma subtileza extrema:
– Arriar a calcinha de arnés posto (muito prático!)
– Enquanto semi-suspenso na reunião, enviar a encomenda ao vazio (esperando que um passarinho não se lembre de passar na linha de fogo nesse preciso momento).
Pequena nota: se estiveres no El Capitan, "enviar a encomenda ao vazio" pode significar alguns dias atrás das grades e uma multa de fazer saltar os olhos das órbitas. Ali, levas os cagalhotos até ao cume.
Mesmo depois deste texto (leia-se: especialmente depois deste texto), não creio que a massificação chegue ás "Arribes del Duero", por isso e, uma vez que falamos de algo biológico... aqui vai disto!!
– Evitar que o parceiro se atire ao abismo por não aguentar mais o espectáculo decadente de alto teor radiológico.
Creio que estas difíceis situações podem ser minimamente suportáveis se pensarmos na seguinte máxima: "Se as enfermeiras conseguem... eu também vou conseguir!".
Uma mola no nariz também pode ajudar.
Dormir de arnês colocado, atado à reunião e deitados na claustrofóbica hamaca em posição de 69... pois, pois... que piadinha!
Horas depois, eis que surge o novo dia e a rotina recomeça uma vez mais.

VIVÓÓ BIGWALL!!

Bem, supondo que o pessoal irá aos magotes repetir esta via vou passar então à ficha técnica:
1º Capitulo
O Acesso


Se o Rallye não é bem a tua modalidade favorita então o melhorzinho é mesmo cruzar a fronteira em Vilar Formoso e, pouco depois de Ciudad Rodrigo, virar à esquerda seguindo a direcção da povoação de nome esquisito: Vitigudino, depois é só continuar até Aldeadávila de la Ribera.
Em Aldeadávila, seguir as indicações para a barragem.
Se por um acaso não se perderem, irão passar por uma central eléctrica.
Mesmo à direita existe um parque de merendas.
Mesmo nesse parque existe um telheiro.
Mesmo nesse telheiro existe um ratinho... pronto, esqueçam o ratinho!...
Mesmo nesse sítio é possível dormir ao abrigo da chuva. Não se escala um corno mas, pelo menos, evitas molhar o lombo e uma possível gripe de antologia.

2º Capitulo
A Aproximação

Ui, Ui! Este é um bom tema.
Alcunhámos o canal de aproximação com o nome: "A floresta do Bornéu"!
Só terás de descer o trilho que se dirige ao "Mirador de Picón del Filipe". Desde esse caminho avistas o topo da parede da "Carrocera". Desces para a esquerda até ao colo. Até aí, tudo na maior. Ervinha, caminho bom, etc. Depois continuas a descer até ao início do canal. Começas a maldizer a vida e a refilar com o petate: "Tinha de trazer uma coisa tão grande e mal jeitosa?". Continuar a destrepar. Fácil mas, cuidadinho com os escorregões. A dado momento tens de realizar um rapel de uns 25 metros desde uma árvore (nós fixamos uma corda estática, a qual retirámos no final da... expedição).
Depois vais descendo intuindo o caminho por entre o denso arvoredo e as simpáticas – e sempre presentes Silvas. Este é o momento em que preferias não saber que os Américas também chamam aos petates PIG. Irás sentir que transportas um enorme e rechonchudo porco. E um porco vivo! Que se debate e debate fazendo-te desequilibrar constantemente. O bom da questão é que mesmo que caías nunca irás parar muito longe. O mais provável é que fiques completamente atascado numa grande confusão de ramadas e silvas. Uma agradável perspectiva para colorir o cenário.
De vez em quando surgem troços de uma velha escadaria de pedras, montadas na altura da construção da barragem.
Irás passar por uma velha escavadora destroçada, tétrico testemunho de um voo descomunal desde o topo da parede oposta à Carrocera.
A via começa num ponto em que a velha escadaria é estrangulada entre um grande bloco e a parede própriamente dita.
Ao terminar a aproximação é que um tipo começa a apreciar a beleza luxuriante da "Floresta do Bornéu" e... a aperceber-se da aventura em que realmente está metido!

3º Capitulo
Primeiro lance: 35 mts, 6a.

FINALMENTE A ESCALAR!
A entrada é fácil. Há que subir uns ressaltos musgosos para, pouco depois, seguir uma fissura em diagonal para a esquerda. No final dessa fissura há que arrebitar as orelhas e respirar fundo pois, toca a destrepar um pouco para voltar a escalar em diagonal para a esquerda.
Após uns enormes blocos encavalitados de aparência precária (não há razões para alarme porque em caso de acidente a morte será rápida e indolor!) mas, de solidez bastante aceitável, realizar uma travessia horizontal até à reunião, equipada com um fresco e luzidio perninho de 10 mm.

4º Capitulo
Segundo lance: 30 mts, A1 (7a).

Este é simples. Basta seguir o diedrão até ao final, em direcção ao intimidante e grotesco tecto.
A reunião é a mais cómoda da parede (risinho irritante de chico-esperto)... absolutamente em suspensão no arnês. No pain, no gain!

5º Capitulo
Terceiro lance: 30 mts, A1+.

Evidente. A ideia é cruzar o mega tecto o mais rapidamente possível. Um rapel pendular a meio do tecto (plaquete) conduz ao resto da travessia. Logo, um ou dois passinhos de gancho em buraquinhos mano-facturados (se é que esta palavra existe!) e irás desembocar na reunião (dois pernes... espectáculo!). Claro, terás de realizar tudo isto antes que as pernas do teu companheiro (que assegura na tal reunião suspensa) gangrenem e tenham de ser amputadas no hospital de Salamanca.

6º Capitulo
Quarto lance: 25 mts, A2 (6b/A1+)

Até parece que os estou a ouvir: "Frouxos! Então não é só um seis bê?? Não o abriram em livre?! Tinham de o escalar em artifo?! Frouxos!" ao que respondemos: "Merda! Aquilo era uma placa sem fissura! Tínhamos de proteger nalgum sítio, não?! A malta não podia disparar por ali acima desalvoradamente e de qualquer maneira, não é? Nenhum de nós é o Larau, porra!!"
Enfim, se por um acaso do destino se sentirem inspirados podem escalar esta coisa em livre. É só seguir para a esquerda, em direcção ás arvores que espreitam
convidativas. Sim, tem montes de chapinhas... três!

7º Capitulo
Quinto lance: 30 mts, 6a.

Fiquem sabendo que o "Jardim dos Abutres" foi a nossa moradia durante duas noites.
Desde aí, subir o diedro sujo da esquerda até ao "Pátio das cantigas". Este largo é um tanto ou quanto exposto por causa da rocha (o único largo de rocha "questionável") e das saudades de proteger.

8º Capitulo
Sexto lance: 35 mts, A1/6a+.


Este é dos sinuosos. Começa no "Pátio das cantigas". Em primeiro lugar, uma trepada fácil (ou semi-dificil) para a direita. Depois uma artificialada também fácil para a esquerda, proteger a bem dita plaquete e... esperem um momento... "Epá Miguel! Acaba lá com essa cantoria! Deixa lá o Marco Paulo em paz! Foinix! Um tipo nem se pode concentrar a escalar!"... bem, onde é que eu ia? Ah, pois... seguir a fissura vertical, realizar uma secção em obliquo para a esquerda (já em livre), cruzar uma bela "Flake" Yosemitica e entrar numa espécie de canal vertical mais fácil, mas delicado, até ao ponto de reunião que se monta com uns friends bombásticos... simples, não?

9º Capitulo
Sétimo lance: 15 mts, IV.

Canal facilão!

10º Capitulo
Oitavo lance: 35 metros, 6a+.

Entrada por um evidente canal, que rápido se transforma em chaminé larga. À esquerda ergue-se um belo e convidativo diedro, desprovido de ervas... esqueçam! A via não segue por aí. Só para chatear, a via segue pela fissura ervosa (toca a limpar ervinhas!) O objectivo é a arvore que aflora no final.
Reunião equipada com dois fantásticos "parabolhos".

11º Capitulo
Nono lance: 45 mts, 6a+/A1.

Espantástico mega-diedro laranja. Mas antes há que ultrapassar um pequeno diedro muito dificil, ganhar uma plataforma e escalar um novo diedro "amazônico" (eu consegui arrancar alguns quilos de erva e terra, de forma a aceder à fissura para proteger. Ou seja, fui abrindo umas "ilhas" de metro a metro).
Ao atingir o diedro limpo, é só curtir!

12º Capitulo
Décimo lance: 30 mts, A2.

O protótipo do diedro perfeito. Pena que a fissura teima em não alargar o quanto baste para possibilitar a total protecção com entalecos e friends. Há que pitonar um pouco.
Este largo fantástico desemboca num verdadeiro hotel. Uma grande plataforma que chamámos "Plaza Antonio" – O Antonio parece ser uma personagem que trabalha na barragem adjacente (isso foi o que depreendemos ao ouvir o megafone que chamava repetidas vezes pelo "Antonio").
Nesta "Plaza" passámos a ultima noite em parede.

13º Capitulo
Décimo primeiro lance: 45 mts, V+.

Contornar a parede pela direita. Do outro lado surge um grande canal de árvores a evitar. A via segue por uma fissura que percorre o esporão à esquerda do canal. A meio, saltar para cima de um ombro desde o qual avistamos de novo o rio e a bela paisagem circundante. Uma escalada fácil conduzirá a outra grande plataforma e a uma azinheira isolada.

14º Capitulo
Décimo segundo lance: 50 mts, E.T. 4+.

Trata-se da fissura/diedro de aspecto facilão (enganador) em linha vertical até ao cume.
Lance de alto valor botânico pela quantidade vegetal que cobre a fissura. O Miguel
teve aqui um verdadeiro teste à sua paciência pois, o que pensava ser um lance de simples resolução, revelou-se um arriscado jogo do "eu meto aqui o pé mas será que não escorrego?".
"Não me perguntes o grau desta coisa porque eu não saberei o que responder!" Dizia-me repetidas vezes.
O Húmido largo agricola foi finalmente ultrapassado após alguns passos elegantes de "Erva Tracção (E.T.)". E assim, nasce uma nova escala de dificuldades com valores que vão do 1 ao 5. Este largo foi cotado de E.T. 4+ (a jumarear fui arrancando algumas ervas, descobrindo um pouco mais de rocha, por isso, neste momento não deve estar assim tão mau).

Epilogo

Podia estar para aqui a gastar litros e litros de tinta, a descrever a beleza da paisagem circundante, o pôr do Sol maravilhoso (eram umas duas da tarde!), ou o espectácular vôo dos Estorninhos que se reagrupavam nos céus, após milhares de quilómetros de migração mas, tal como tinha dito anteriormente, eu tinha a meu cargo a ficha técnica. Assim, tecnicamente vos digo que chegámos ao cimo deste calhau de granito todos cagados! E, ao transportar de uma só vez todo o material até ao carro, o suor arruinou de vez com as T-shirts (que nunca trocámos).
O nosso perfume de fragrância cavalar ameaçava um atentado ecológico de nefastas proporções. Felizmente, um belo banho nas águas tranquilas do Douro resolveu o assunto. Creio que provocámos a morte de muitas espécies de peixes das redondezas mas, citando um grandessissimo filho da p... opss... pilar da justiça mundial, George Bush, isso são apenas danos colaterais.

Todos comigo, não se acanhem!

VIVÓÓÓ BIGWALL!!

Paulo Roxo


Croqui:

Fotos:
Picón La Carrocera

Acesso pelo Canal da Floresta do Bornéu




A Escalada, os Bivaques e a Içagem dos "petates"






















5 dias depois...la cumbre!!!



O regresso