quinta-feira, julho 13, 2006

Ovelhas negras…nas mandíbulas da URSA!

Ovelhas negras…nas mandíbulas da URSA!

(Nota: Continuando na recuperação de textos já escritos anteriormente e aparecidos em alguma página ou forum da web, aqui fica mais um breve relato)

Reuuuniãooooooo…!!! Sobressaltado, desperto com o forte grito do Roxo. Por momentos deixei--me adormecer ao som das suas distantes e ritmadas marteladas, embalado pelas vagas do oceano. Apreensivo mas tranquilo, inicio o primeiro largo. Uma enorme e rara travessia, inicialmente por terreno fácil, depois pelo interior de um grotesco e húmido túnel, finalizando sobre uma impressionante e exigente travessia extra-prumada directamente sobre as ondas do mar até se alcançar a suspensa reunião. No momento de entrar para as profundezas daquele característico túnel, tive a estranha sensação de estar perante um irreal portal cósmico que uma vez transposto nos levaria para uma outra dimensão espacial e mesmo temporal. Suspeitava, mas estava longe de imaginar que de facto estávamos perante um inesquecível e único dia de escalada. Somente de duas coisas tínhamos a certeza: a primeira era que após a passagem de este túnel que dá acesso directo à face Sul, estaríamos expostos a um grande isolamento e compromisso sob mais de 100 metros de desconhecido e descomposto terreno vertical, de difícil retirada onde nada poderia correr mal; a segunda, esta mais reconfortante (ou não!) era de que dispúnhamos de bastante tempo para esta nova abertura, mais precisamente de cerca de 12 horas. Nem mais nem menos, pois como é sabido que a Ursa apenas tem acesso terrestre (sem direito a banho) na fase de maré baixa. Como tal, apenas por volta das 8 horas da noite voltaríamos a ter acesso seco para regressar. Em todo este período, estaremos embarcados num extenso mar de rocha em pleno azul Atlântico.
Chego à reunião bastante cansado pois este primeiro lance é quase tão exigente para o segundo cordada como para o primeiro. Incómodo e dolorido pela longa espera na suspensa reunião, o Paulo pede-me para ser ele a continuar a abrir o próximo largo. Vendo o seu sofrimento e olhando para o estético e vertical muro branco que temos por cima, cedo-lhe de bom grado o meu turno de primeiro de cordada. Com toda a sua enorme experiência e força abre 50 metros de precária escalada sobre bonitos mas por vezes bastante descompostos muros, equipando a 2ª reunião no início do grande e visível filão de cinzento basalto que domina a parte central da Ursa. Das muitas vezes que observámos a parede desde a praia, foi sempre este negro filão que suscitou as nossas maiores duvidas e receios acerca desta ascensão.
Agora chegou o meu turno de abrir, e começo este 3º lance inquieto, apreensivo e com medo…bastante medo. Tento recordar as palavras do carismático Georges Livanos de forma a manter alguma tranquilidade: “Não existem rochas descompostas mas sim escaladores inexperientes”. Não creio nem acredito na totalidade desta frase mas perante a situação soa-me como um espiritual mantra. Durante largas dezenas de minutos, extremamente focado e cauteloso, após 35 metros de receosos movimentos, precárias protecções, de um valente susto e de soltar muitas pedras e lastras finalmente alcanço uma confortável plataforma onde montar a próxima reunião. Embora bastante descomposto e de difícil protecção a rocha mostrou-se francamente melhor do que o inicialmente esperado. De qualquer modo, este foi um dos largos que mais exigiu de mim próprio desde sempre e onde mais tive de me empenhar física e mentalmente para ultrapassar cada desconhecido metro deste selvagem terreno.

Para terminarmos de forma suave e plena, o ultimo largo revela-se extremamente aéreo, franco, acessível e com rocha de invejável qualidade.
Felizes, no instável e aguçado cume desta torre marítima festejamos esta ascensão, a abertura da segunda via da Ursa, e tudo o que ela representa neste particular momento para nós. Rapelando e destrepando sob a luz dos frontais, baixamos pela via normal imersos na distância dos pensamentos e comentamos como tão perto e aos olhos de todos, numa torre perdida banhada pelo mar se pode viver uma grande aventura e uma inesquecível escalada. Pensamos como nos dias de hoje as pessoas (inclusive escaladores) perdem um pouco o sentido de aventura, do desconhecido, de imaginação, sufocadas por uma rotina preconceituosa e intolerante onde tudo o que seja simplesmente diferente é motivo de duras criticas, repudio e desprezo.
No rebanho da sociedade, os elementos tresmalhados tem um nome: as ovelhas negras!


«As Ovelhas Negras» (150 mts, 6a+/A1) – Ursa (Cabo da Roca), por Paulo Roxo e Miguel Grillo a 16/10/2004

Miguel Grillo (Outubro 2004)



3 Comments:

Isabel said...

Mais uma vez...muito bom relato!!!
A verdade é que a sensação de medo traz-nos uma felicidade incrível, e é aí que (também) está a beleza da escalada clássica!
Digo eu...

chb said...

Hoje, tive por essas bandas mais o "Puto" Marc, e apesar de termos ido apertar nas singelas e pouco aventureiras vias desportivas de 1 largo, disfrutamos bastante com o enquadramento natural da Ursa... e com algum desejo, inquietude, ou talvez apenas pensamento, olhámos para esse esporão e ficámos a imaginar como será fazer o que vocês fizeram.... Dasse! Gandas Malucos! eheheheh
Apertem forte!!!

sesa said...

Aquilo esta-se a desmoronar... ai o medoooooo. São os meus heróis.