O Pilar do Golfinho
(Nota: Continuando na recuperação de textos já escritos anteriormente e aparecidos em alguma página ou forum da web, aqui fica mais um breve relato)
Por vezes, em momentos em que o pensamento se perde na labiríntica e infinita distância do olhar, há vivências que julgávamos únicas e que inesperadamente quase integramente e surpreendentemente se voltam a repetir.
Nunca fui crente em que tudo o que nos acontece na vida tivesse um motivo definido, ou uma razão de ser explicável, ou movido por algo oculto ou tampouco divino, em astros ou destinos…simplesmente acredito na casualidade dos momentos, no constante ritmo “vivo” de transformação do nosso planeta, nas voltas e giros que a vida dá, movida pelos momentos, vivências, por um olhar inquieto, sensações, motivações e intermináveis ilusões.
Uma vez, recorrendo aceleradamente as prenunciadas curvas de uma sinuosa estrada numa quente noite de Verão de regresso de mais um fabuloso dia de escalada em Monserrat, Sergi, um amigo Catalão, dizia-me que nada na vida acontece por casualidade, todos os encontros e desencontros, acontecimentos, reacções e adivinhações tem uma razão de ser, simplesmente nós não temos o conhecimento suficiente para interpretar toda a dinâmica que a Natureza nos brinda.
Relutante e pragmático nas minhas opiniões, daquele dia não fui capaz de contestar aquelas afirmações.
À alguns meses atrás, o Paulo e eu abrimos numa refundida e solitária enseada, a via “O Terror da Baía”, escalada essa que nos proporcionou inigualáveis momentos e sensações.
Hoje, recordo com uma nostálgica emoção aquele dia e não consigo deixar de comparar as semelhanças (e demasiadas coincidências) daquela aventura com a nossa última abertura, ontem Domingo, no sempre mágico e surpreendente Cabo da Roca.
Como tantas vezes havíamos decidido ir escalar para este Cabo.
Tal como naquela vez, encontrávamo-nos na pastelaria da Malveira numa chuvosa manhã de Sábado.
Tal como naquela vez, o dia manteve-se escuro e a chuva não deu tréguas.
Tal como naquela vez, as nossas ânsias de escalada desvaneceram perante o cinzento cenário.
Tal como naquela vez, as nossas mentes sentiram-se perdidas e desorientadas.
Tal como naquela vez, apenas nos restou a conformação perante os factos e a esperança no dia de amanhã.
Tal como naquela vez, deambulamos pelos recantos dos nossos pensamentos e por estradas repletas de impacientes automobilistas e de abundante água.
E tal como naquele dia, o segundo dia, nascia sereno e azul.
Tal como naquele dia, apressadamente dirigimo-nos a uma perdida e pouco visitada enseada.
Tal como naquele dia, era uma baia de ambiente austero, resguardada por contrafortes de granito, batida pelas poderosas vagas do Atlântico.
Tal como naquele dia, o nosso objectivo era um remoto e inexplorado pilar rochoso de aspecto rude e grotesco, que o Paulo havia avistado numa visita prévia.
Tal como naquele dia, o nosso desejo era inaugurar uma via naquele pilar e o nosso olhar transpirava de desejos por aventuras verticais.
Tal como naquele dia, aproximávamos por íngremes ladeiras e arribas que descem ao mar por trilhos de pedra roliça e verdejantes “chorões”.
Tal como naquele dia, abrimos uma nova via de 3 lances de corda, em 100 metros de terreno de aventura onde por vezes a rocha não era a melhor (embora seja de maior qualidade do que o inicialmente esperado) mas o ambiente era único.
O primeiro largo, decorre por uma irregular fissura ao longo de 35 metros de um estético muro. O segundo, começa com um terreno algo descomposto, para depois entrar num bonito diedro sub- prumado de fissura fina, movimentos atléticos e ambiente extraordinário. O terceiro lance, percorre uma longa placa torneada pela erosão agreste destas paragens, entrecortada por pequenos tectos e serpenteantes fissuras e rugosidades.
Neste dia, num daqueles largos, parado numa reunião ou simplesmente suspenso de um qualquer pequeno micro-friend, por vezes deparava-me estático tentando relaxar da tensão ou simplesmente admirando a conjugação do brilho do sol, do céu azul, do revolto oceano com o luminoso granito e as verdejantes encostas, desfrutando de todo aquele majestoso cenário e olhava…dava por mim olhando para trás, onde ao fundo se podia timidamente ver a refundida «Baía do Terror» e pensava como tudo estava a ser tão semelhante com aquele dia.
Tal como naquele dia, chegávamos ao cimo da falésia, com um enorme sorriso nos lábios e a felicidade estampada nos salgados rostos.
Tal como naquele dia, subíamos cansados, esfomeados mas profundamente alegres os íngremes trilhos de regresso no final de mais um dia.
Tal como naquele dia, apesar da fadiga, das duas horas e meia ao volante de regresso casa, do avançado da hora ao início desta madrugada, da vontade de querer dormir pelo temor de ter de me levantar bastante cedo, por longos minutos não conseguia adormecer. De olhos fechados, apenas conseguia visualizar os momentos de escalada vividos, os momentos de aventura e de partilha com os amigos e sentir o áspero e purpúreo granito no suor das mãos.
Mas, mas neste momento…sentado diante deste computador, apercebo-me como afinal nem tudo foi tão semelhante.
Ontem, era outro dia, outro mês, outra estação, outro ano, outro local. Ontem éramos três: para além de mim e do Paulo estava também a Daniela. Ontem, se bem que semelhantes, os momentos eram outros, as gargalhadas eram outras, os medos e temores distintos, as sensações intensas, mas eram outras. Ontem…simplesmente era outro dia, igualmente entusiasmante e fenomenal, mas era outro dia. Era diferente porque ontem, tínhamos na nossa própria interioridade mais algumas experiências acumuladas. E o ontem foi diferente do hoje que será distinto do amanhã. Penso que cada momento é um momento e cada experiência a base da seguinte. Será?
Duma única coisa hoje estou certo, por casualidade ou não, o Cabo da Roca uma vez mais proporcionou-me momentos de escalada e vivência únicos, no esplendor natural destas ocidentais e imponentes falésias.
Miguel Grillo (11/04/2005)
«O Pilar do Golfinho» (100 mts, 6b+ (6a/A1)) – Enseada de Assentiz (Cabo da Roca), por Paulo Roxo, Daniela Teixeira e Miguel Grillo em 3 de Abril de 2005
Rui Rosado e Ana Silva fazendo a 2ª repetição do «Pilar do Golfinho»
Daniela Teixeira na 1ª reunião da via «Cabo da Roca Social Club»
2º lance do «Pilar...»
2º lance do «Pilar...»