EXPEDIÇÃO NANGMA VALLEY 2013
TERCEIRA PARTE
A ASCENSÃO
"Lá em cima não há nada. Apenas a historia que escreveste com a própria vida para lá chegar.”
Alfonso de Vizán
Síndrome da noite anterior
As maiores dúvidas surgem durante a noite.
Imagino cada detalhe da escalada, tento adivinhar cada
passo.
Quando tento dormir, os maiores perigos da montanha parecem
ganhar forma, tomam uma proporção quase real, palpável. Vejo-me a cair, a ser
alcançado por algum objecto vindo das alturas, a ser alcançado por uma
avalanche. A Daniela encontra-se deitada ao meu lado. A ideia de se poder
magoar é insuportável. Quanto mais tento afastar os pensamentos negativos, mais
estes me invadem o cérebro, obsessivamente. O livro que atirei para um dos
lados da tenda, não serviu de nada.
Os anos já me deviam ter ensinado a lidar com o “síndrome da
noite anterior”, quando surgem as reflexões negativas e os medos irracionais. É
sempre a mesma coisa. Antes de cada ascensão mais importante lá aparece o
pequeno diabinho, o gnomo invisível do pessimismo, o arauto da desgraça, para
me infernizar o espírito.
O "Gnomo invisivel do pessimismo" a inquietar o cérebro. Não interessa: os dados estão lançados!
Viro a cabeça encafuada no saco-cama. “Será que a Daniela
sente o mesmo?” Deixo de respirar durante um momento para tentar ouvir o
silêncio. A Daniela dorme. Lá fora, tudo está tranquilo. O vento não se sente.
Dentro de poucas horas vamos dar início a uma tentativa definitiva de escalada
do Kapura, com mais de 6000
metros de altitude, jamais tentado através do vale do
Nangma.
"As maiores dúvidas surgem durante a noite."
Em casa tudo é mais simples. Por mais técnica que pareça,
qualquer ascensão se torna muito mais fácil e possível. Depois, a diferença
temporal que divide o real do imaginário vai encurtando cada vez mais e, as
coisas começam a ganhar novas proporções. As certezas dos planos iniciais
começam a ser questionadas. Até que chega a hora da verdade, quando nos
colocamos frente a frente com o objectivo. Nesse instante, algo muda
drasticamente. A montanha bela, perfeita, possível, abstracta, torna-se num
ogro, duro, inclemente, agreste, real. Esse é o momento para recuperar aquele
truque da manga, a cartada que somente os anos podem providenciar. É o momento
da análise objectiva, da questão definitiva: “Sou, ou não sou capaz de subir
isto?”
A meio da noite, lá decido sacar a tal carta da manga.
Objectivamente, digo a mim próprio: “Tu és capaz de subir aquilo!” Quase de
imediato, o “gnomo do pessimismo”, voa para longe, açoitado pelo vento de um
pensamento.
Minutos depois… adormeci.
O nosso solitário campo base, visto da moreia do glaciar.
Deixámos o campo base no dia 5 de Setembro. Atravessámos as
primeiras rampas de prados de um verde intenso, usando pequenos trilhos que o
gado foi formando com o decorrer de muitos anos de utilização. A paisagem era
de cortar a respiração. Gigantescas muralhas de granito erguiam-se dos
glaciares e a grande mole maciça do K6, dominava o fundo do vale. Este colosso
majestoso com mais de 7200
metros, fora escalado apenas uma vez, em toda a sua
existência.
O maciço K6 domina o horizonte. O cume principal desta montanha foi escalado em 1970, por uma expedição Austriaca, a qual montou o campo base na moreia de blocos, que se avista na foto, mais acima do nosso campo base. Desde então, mais ninguém escalou nenhum dos seus cumes, desde o lado do Nangma.
Os prados que antecedem os blocos e o glaciar de aproximação ao kapura. As vistas são de cortar a respiração.
Desfrutávamos das vistas e da nossa posição privilegiada.
Poucos ocidentais tiveram a sorte de conhecer e sentir estes lugares belos e
selvagens. Mesmo os locais, na sua maioria habitantes de Kande, raramente sobem
a cotas superiores às dos prados de pastagens, como nos revelou Altaf, nos
primeiros dias de aclimatação, quando resolveu acompanhar-nos até ao sopé do
glaciar: “It´s the first time here!” Dizia, com os olhos perdidos nas
montanhas. Sentimo-nos surpreendidos e honrados por poder apresentar um novo
local a um autóctone.
O Altaf acompanhou-nos na nossa primeira subida de reconhecimento e aclimatação. Era a primeira vez que visitava o local da foto. Por cima da cabeça da Daniela pode-se apreciar uma perspectiva pouco conhecida do AminBrakk. Desde este vale trata-se de um bigwall com 1000 metros, nunca escalado.
Vistas sobre as montanhas do flanco direito do vale. O K6 encontra-se à esquerda, envolto em nuvens.
Junto ao início do glaciar sem nome, aos 5000 metros, fizemos
uma pausa para colocar o arnês e os crampons. Estava um dia magnífico, com o
raios de sol a irromper por entre bojudas nuvens que se intrometiam no meio das
arestas escarpadas. Sentíamo-nos com energia e, os pequenos diabinhos da noite
anterior desvaneceram-se, levando com eles os pensamentos negativos.
A neve fresca depositada pelo mau tempo dos dias anteriores,
tapou muitas fendas do glaciar, tornando a travessia numa “gincana” mais
nervosa, com zigues e zagues entre crevasses, bem mais amplos que nas ocasiões
anteriores.
"Zigue-zague", entre crevasses. Atravessamos o glaciar sem nome em direcção ao nosso Campo base avançado.
Uma hora e meia mais tarde, encontrámos a pequena tenda vermelha,
que tínhamos deixado montada a pouca distância da base do Kapura. O aspecto
sudeste do Kapura dominava toda a visão da montanha, uma impressionante muralha
vertical de rocha, um bigwall tremendo, com mais de 1000 metros de
desnível. “O sonho de qualquer base-jumper.”
À esquerda, o nosso objectivo, o Kapura. À direita, parte do K6.
A meio do glaciar, junto à nossa tenda, um pequeno ribeiro de agua permite-nos poupar muito combustivel, pois não existe a necessidade de derreter neve para cozinhar.
O despertador soou às 1.30 da madrugada. Era o dia 6 de
Setembro. Ligámos as lanternas frontais para descobrir uma miríade de pontinhos
brilhantes a cobrir o tecto da tenda, cristais de gelo produzidos pela
condensação da humidade da nossa própria respiração. Preguiçosamente, começámos
a emergir do torpor. Ainda com os olhos empedernidos pelas poucas horas de sono
e os lábios ressequidos pela desidratação nocturna, inclinei-me o mais que
pude, esticando o braço, tentando alcançar o fundo do saco de dormir. Apalpei
às cegas, tentando localizar a botija de gás, entre os vários utensílios armazenados
no interior do saco, como uma das cameras fotográficas, o telefone satélite, as
luvas molhadas no dia anterior, as meias húmidas, as botas interiores e outros
objectos menores. Durante a noite, com os valores do termómetro a caírem a
pique, esquecer algum deste itens no exterior do saco, podia traduzir-se num
desagradável inconveniente que, dependendo das circunstâncias, podia descambar
para um problema grave.
Repetimos o ritual ao qual já nos acostumámos nas madrugadas
incómodas de alta montanha. A Daniela começou imediatamente a aquecer a água
para o capuccino e o fogão não mais parou.
Há tarefas que dentro do silêncio da cordada já me estão
atribuídas... assim como outras fazem parte das lides do Paulo. “Cozinhar” o
pequeno-almoço, toca-me a mim. Acendi o fogão e aqueci água para os nossos
típicos capuccinos matinais (desta feita, nocturnos). Aproveitei o calor da
tampa da panela para aquecer uns troços de chapata seca, a que juntei uns triângulos
de queijo e uns quadrados de marmelada. A geometria alimentar do Paulo é sempre
mais ligeira que a minha. Umas bolachas rectangulares da marca “Tuc”,
um quadradinho de marmelada e... ar, servem-lhe de pequeno-almoço. À força e
entre tarefas, lá bebemos perto de um litro de líquidos cada um, como mandam as
regras de bom comportamento em altitude.
A chapata seca a aquecer no tacho. Um pequeno almoço de alta qualidade.
Após o frugal pequeno almoço, colocámos as botas e saímos
para o exterior da tenda, para o frio e noite escura.
Às 3.30 da madrugada, abandonámos o local, com todo o
equipamento às costas. Uma meia hora depois, reiniciámos a primeira parte da
nossa via. Entrámos oficialmente nos domínios do Kapura. Quando amanheceu, já
estávamos num ponto elevado da vertente e aproximámo-nos rapidamente da primeira
travessia exposta à queda de pedras. Desta vez, toda a muralha sobranceira
vertical e ameaçadora descansava num silêncio gelado. Fazia mais frio que da
ultima vez que ali tínhamos estado e, o mundo em nosso redor encontrava-se em
modo de pausa. Os únicos ruídos que nos chegavam aos ouvidos eram os dos
crampons e piolets, produzidos pelos nossos próprios movimentos. Todo um
contraste relativamente aos dias da aclimatação.
A Daniela atravessa uma passagem de neve, antes da aresta de xisto, agora, coberta pela neve caída nos dias anteriores. Desta vez a montanha está calma e não caem quaisquer pedras.
A Daniela, no final da segunda travessia perigosa. Desta feita, a neve e o frio permitiram uma ascensão tranquila e sem risco de queda de pedras.
Uma perspectiva da parede que iriamos enfrentar no dia seguinte.
Por volta das 7.30 da manhã, chegámos ao colo Alam.
Imediatamente, reconhecemos o local para procurar um cantinho adequado para
plantar a pequena tenda de bivaque, apenas para descobrir que… não havia nada
para reconhecer. O colo era afiado e as vertentes caíam a pique para ambos
lados da montanha. Um dos precipícios despenhava-se para o vale do Charakusa, o
outro para o “nosso” lado, o vale do Nangma. Naquele lugar, separava-nos menos
de um metro de largura de aresta. Encontrávamo-nos literalmente, no gume da
navalha. Descortinámos o único cantinho possível para um bivaque mais ou menos decente.
No colo Alam. Por cima da Daniela, uma aresta de rocha decomposta em direcção a um outro cume com 6000 metros, virgem, claro!
- Um bivaque “Fowleresco”! – exclamei, aludindo a Mick
Fowler (um alpinista britânico, considerado como um especialista em bivaques
grotescos, em lugares horríveis). A Daniela concordou, com um acenar de cabeça.
Numa tentativa de aplanar um pouco o lugar, colocámos
algumas lajes de rocha, colmatadas com neve compactada, de forma a dissimular,
os blocos pontiagudos. Algumas horas depois, terminámos uma pequena mas,
orgulhosa plataforma, onde depositámos a tenda, com os bordos a escorregar para
cada vertente mas, com espaço suficiente para albergar duas pessoas deitadas.
Istalamo-nos confortávelmente no nosso "ninho de passarinhos".
Planeámos despertar muito cedo, ainda no dia anterior,
imediatamente antes do dia posterior.
Mais uma vez, não conseguia dormir. Os gnomos voltavam para
me atormentar a alma. Mais uma vez, tentava escalar a parede com a mente.
Tentava adivinhar os perigos. “E se?...”, “O tempo está mais que bom, não há
desculpas!…”, “E se?...”, “Tens experiência mais que suficiente para escalar
isto!...”, “E se?...” No entanto, mesmo com todos os “se`s” a bater e rebater,
como bolas de bilhar, nas paredes do meu cérebro, a decisão estava tomada e
íamos para cima. Com esta certeza em mente, a ansiedade tomava uma nova
dimensão, desta vez vinha acompanhada por uma impressão de inevitabilidade.
Mas, em lugar de uma inevitabilidade trágica, esta era positiva. Crescia um
sentimento de que os dados estavam lançados e de que não existia nenhuma razão
lógica para não tentar. Na verdade, a ansiedade nocturna traduzia-se num
nervoso miudinho de excitação. Desejava que as horas passassem depressa para
enfrentar aquele desconhecido vertical, para mais uma vez, enfrentar os meus
próprios fantasmas, desta vez, numa montanha esquecida, numa terra longínqua.
Ao meu lado, a Daniela parecia dormir tranquilamente. Será que lhe passavam
coisas semelhantes pela cabeça? Não consegui pregar olho nessa noite.
Uma perspectiva, desde o glaciar, da segunda parte da nossa via na face sul do Kapura. A pequena tenda de bivaque foi instalada na ponta esquerda do colo Alam.
Cumes ilusórios
23:30 do dia 6 de Setembro, toca o despertador. As horas que antecedem a saída para o cume são tendencialmente de ansiedade, mas desta vez, sentia-me calma, tranquila. Na verdade, apesar de não ter dormido profundamente, resultado da altitude e do chão ondulado e duro da nossa minúscula tenda, sentia-me confortável no quentinho do saco-cama e tinha a perfeita noção de que o corpo estava descansado, perfeitamente preparado para um longo dia em altitude. Tinha aquela doce sensação que nos impele a adiar o despertador mais dez minutos. A solução que encontrei para combater aquela inércia gostosa foi levantar-me de rompante. Vestir-me rapidamente e iniciar todo o longo processo que separa o despertar do sair da tenda.
23.30, despertar!
Enchemos a garrafa térmica com chá, outra com café e dois
cantis com sumo energético de laranja. À última hora,ao contrário do que
tínhamos combinado inicialmente, decidimos não levar o fogão connosco.
Poupávamos assim cerca de 600g ao lombo. Estimámos que a ascensão e retorno à
tenda nos deviam levar cerca de 15 horas, período que aguentaríamos bem, com
dois litros de líquidos para cada um.
O vento pouco soprava. Encordámo-nos, trocámos um beijo,
um abraço de boa sorte, e pelas 1:30 do dia 7 de Setembro, iniciámos a
ascensão.
Cuidadosamente, para evitar as cornijas, cruzámos a
aresta do “Colo Alam” para aceder à face do Kapura. A noite estava escura e não
havia lua que nos iluminasse. Ao meu lado direito a brilhar no céu, estavam as
3 Marias. Sorri. Achei que aquelas três estrelas alinhadas nos trariam boa
sorte.
Cravei pela primeira vez os piolets na vertente empinada.
Encostei o capacete à pendente e fechei os olhos. Inspirei profundamente. Era
uma espécie de ritual simbólico muito pessoal.
Durante meses, imaginámos aquele momento. O momento do
frente a frente com o monstro. Agora, o monstro não era a montanha mas sim, a
nossa vontade. O pequeno ponto geográfico que buscávamos estava lá em cima mas,
o verdadeiro desafio estava dentro de nós e, tinha chegado o momento exacto de
lutar pelos dois.
Sentia que a Daniela pensava o mesmo. A corda unia-nos num
laço tal, que nos transformava num único ser. O espírito da “cordada” é mesmo
esse!
Tudo, toda a envolvência do lugar me fazia acreditar que
iríamos conseguir chegar ao cume. Sentia que toda a ascensão iria ser um
verdadeiro desfrute, uma bonita escalada numa soberba montanha, numa via
intocada, com a melhor companhia do mundo, o Paulo. Vi cruzarem o céu duas
estrelas cadentes e o desejo que formulei não podia ser mais previsível: chegar
ao cume e regressar em segurança.
Abri os olhos, olhei para cima esquadrinhando a escuridão.
Ergui o braço e, numa estocada decidida, cravei o piolet no gelo.
O que estás disposto a sacrificar pelos teus sonhos?
Foi sem surpresa que encontrámos a parede formada por gelo
puro e duro, coberto por uma fina camada de neve. Desde os primeiros passos,
entendemos que a única opção seria escalar um lance de corda de cada vez. A
técnica mais rápida de “ensamble” em que os elementos da cordada avançam ao
mesmo tempo sem pontos de reunião intermédios era, neste caso, inviável, pelos
perigos que comportava. Este era um mundo que não perdoava qualquer queda.
A escalar à noite, deixei-me embalar pelo típico barulho
dos piolets e dos crampons a penetrarem o gelo. Nos primeiros 40 metros de cada
largo avançava sempre com uma cadência confortável, controlando a respiração,
deixando os movimentos do meu corpo fluírem. Fazíamos parte da vertente, a face
sul do Kapura acolhia-nos hospitaleira. Os cerca de 20 metros antes de chegar
às reuniões eram sempre mais sofridos, com a respiração mais ofegante, mais
profunda. Por vezes, o Paulo desligava o frontal para poupar as baterias e
ganhar uma melhor percepção das formas da montanha.
Para poupar energia, de vez em quando, desligava a lanterna
frontal. Não necessitava da luz para assegurar a Daniela. Ao fim de alguns
segundos, os olhos acostumavam-se ao breu da noite. A Via Láctea delineava-se como
uma auto-estrada de asteriscos brilhantes, por entre outras nebulosas de
estrelas longínquas. A fraca luz emitida pelo enxame galáctico de pequenas
luzinhas era suficiente para iluminar a cordilheira do Karakorum.
Ao amanhecer, começamos a distinguir as montanhas em redor. À direita o magnifico Drifica, com 6400 metros e á esquerda um fantástico pico virgem com 6000 metros. O esporão de rocha que desce desde este ultimo pico, desemboca directamente no colo Alam, onde deixámos a tenda de bivaque.
Ainda em Portugal, sabíamos que iríamos ser uma das últimas
equipas da época a escalar no Paquistão. O período normal de alpinismo, nestas
latitudes, encontra-se entre os meses de Junho e Agosto. Quando chegámos aquele
país asiático, a meados de Agosto, a grande maioria das equipas estavam já de
saída. De todos modos, este ano, ninguém visitou o vale do Nangma, ou seja, na
prática, não nos iríamos cruzar com nenhum ocidental.
Com o frontal apagado, conseguia observar as silhuetas sem
cor que os gigantes de gelo e rocha insinuavam. Muito provavelmente, naquele
momento, seriamos as únicas pessoas metidas numa escalada, num raio de muitos e
muitos quilómetros de montanhas selvagens. A sensação de isolamento e exposição
esmagavam-me e isso deixava-me fascinado.
A Daniela, nas pendentes empinadas da face sul do Kapura. Lá embaixo é possivel distinguir o ponto vermelho da nossa tenda, instalada no colo Alam.
Ao amanhecer, a meio da ascensão.
Horas depois, encontrámos os primeiros afloramentos de rocha
e com eles os primeiros passos de escalada mista. A banda de rocha que cortava
a parede numa grande diagonal ascendente para a direita, obrigou-nos a realizar
uma larga travessia. De súbito, o gelo desapareceu e, em seu lugar, encontrámos
uma neve fina e inconsistente, sobre placas lisas de granito. Um tipo de
terreno que obrigava a uma concentração especial.
Imediatamente antes do inicio da banda rochosa, a escalada torna-se mais interessante.
A Daniela a emergir de um dos lances em travessia.
As pontas dos crampons seguravam-se precariamente em algo
que não conseguia distinguir muito bem. Um dos piolets encontrava-se gancheado
num troço de rocha. Utilizei o outro piolet para procurar outra presa decente,
ora raspando a neve, ora golpeando, tentando encontrar algum troço de gelo escondido.
O desagradável som do metal na rocha não revelava grandes possibilidades. Por fim,
lá consegui ultrapassar o obstáculo. Um a menos. “Vamos ao próximo!” Um último
lance de 60 metros
em travessia, protegido por um entalador martelado numa pequena fissura,
depositou-nos na rampa final… pelo menos, parecia-nos a rampa final.
Algumas passagens mais precárias em que a neve pouco consolidada escondia as boas presas de rocha.
Os lances sucediam-se, entre algumas passagens mais interessantes.
O tempo passou a voar e ainda parecia faltar bastante.
As dúvidas retornaram. Já passava do meio-dia e o trajecto
do Sol conduzia ao inexorável ocaso e à indesejável perspectiva de uma descida
nocturna.
- Como te sentes? – perguntou a Daniela.
- Já estou cansado mas, sinto-me bem. E tu, que tal?
- Estou bem. A única coisa que me preocupa é a descida
nocturna. Pelo menos, a descida da banda de rocha.
A Daniela tinha razão. A partir daquele momento, retornar
pelo mesmo itinerário estava fora de questão. A grande travessia tinha
eliminado essa possibilidade. Restava-nos rapelar a direito, por terreno
desconhecido. Olhámos para cima durante algum tempo tentando calcular a
distância que nos separava do topo. Parecia relativamente perto mas, sabíamos
estar a ser ludibriados por um erro de perspectiva.
- Que tal apontarmos para aquele ombro? – de braço esticado,
a Daniela indicava uma espécie de aresta que parecia tombar.
- Com sorte, a inclinação irá permitir continuar em
“ensambe”.
- Sim. Desde ali deve faltar apenas mais um lance até ao
cume. – concordei.
Nesta foto, inicio a secção em travessia, constituida por cinco lances de escalada não demasiado dificil mas, com algumas passagens mais delicadas. Muito mais acima é possivel avistar a ultima pendente de neve e gelo que termina nuns afloramentos de rocha, que pensámos fazerem parte do cume... estavamos enganados.
Continuámos. O meu ânimo... os meus sentimentos estavam
confusos, creio que pela primeira vez me senti enganada por não conseguir
calcular as distâncias. A montanha enganou-nos, parecia já ali, tão perto...
tão difícil era arriscar como voltar para trás. Tive um medo inconsciente da
noite, de não saber medir as minhas forças com as forças da montanha. Tentei
racionalizar, fisicamente sentia-me bem, o tempo continuaria bom, o gelo estava
em perfeitas condições... se o corpo não me atraiçoasse seria apenas uma
questão de tempo. Pensava também no Paulo, no rosto tinha escrita a vontade de
querer continuar. O único senão era mesmo a pouca quantidade de líquidos e de
comida que nos restava... o combustível que racionávamos há já algumas horas.
Tentei novamente racionalizar, pensei no Cho Oyu. “Subi aquele 8000 com apenas
meio litro de água, certamente não seria ali, aos 6000m, que o corpo me
atraiçoaria por falta de líquidos!” Ponderei todas as variáveis.
Numa das secções da grande travessia.
Vistas vertiginosas.
Para ganhar o “ombro”, escalei um último muro de gelo com
cerca de 70º. Ao chegar ao bordo da parede, a realidade esbofeteou-me com
violência.
- Nããão! – gritei ao vento e deixei cair a cabeça entre os
piolets. O capacete fez um som oco. Por cima de mim, ali estava a dolorosa evidência
de que faltariam muito mais que 60 metros para terminar a escalada.
Naquele momento, desfaleci psicologicamente.
- Não pode ser!
Era já muito tarde e a parede parecia não ter fim. O
resultado estava à vista, o fracasso era evidente. Dobrado sobre mim próprio,
deixei as lágrimas correrem pela face.
Vi o Paulo chegar a essa linha, gritar de raiva e baixar
a cabeça. Percebi que mais uma vez a montanha nos enganava. Separavam-nos 50
metros. Não o podia abraçar, senti raiva, frustração. Aquela era a quarta
visita ao Paquistão e, mais uma vez, não faríamos cume. Decidi não mais voltar
àquele país. Não nos trazia sorte.
Anunciei as más notícias à Daniela, que me observava com
atenção, desde a reunião de baixo. Devolveu-me um grito de desânimo.
Com lentidão hipnótica, enrosquei um parafuso no gelo e
preparei-me para assegurar a minha companheira. Pelo menos, iríamos decidir
juntos o que fazer a seguir. Para cima, ou para baixo? A Daniela escalava
devagar, num misto entre o cansaço e o desalento. Notava-se no ar, o ambiente da
derrota.
Comecei a escalar sem pensar na respiração, nas costas
direitas, no cansaço físico... o mental já me tinha dominado. Queria apenas
chegar rapidamente perto do Paulo, ver o que ele via.
Uma das muitas reuniões de gelo.
O dia seguia magnifico.
Enquanto recuperava as cordas com lentidão, comecei a
analisar os arredores. Notei que a aresta que divide a face sul da parede
sudeste, não estava assim tão longe. Olhando com mais atenção apercebi-me que
estava muito perto do topo do grande bigwall que dispara directamente do
glaciar, quase até ao cume do Kapura. Voltei a cabeça para o lado oposto e,
reparei que a aresta do lado esquerdo também não parecia nada longe. Um novo
júbilo invadiu-me a alma.
- Não podemos estar longe! Quiçá um lance e meio mais. No
máximo, 80 metros
mais. – comuniquei o meu optimismo à Daniela.
- Ok! Mas, tens a noção que vamos alcançar a banda rochosa
de noite, não?!
- Neste ponto, vamos ser apanhados pela noite, de uma forma
ou de outra. – concluí. A Daniela concordou.
A inevitabilidade conduziu à decisão final.
Avistámos mais longe, duas montanhas de granito impressionantes, certamente por escalar. Já estariam em terreno proibido a estrangeiros, em plena zona de disputa entre a India e o Paquistão, junto ao glaciar Siachen, naquela que é já reconhecida como a "guerra mais alta do planeta".
Algum tempo depois, alcançámos a aresta rochosa. À nossa
esquerda, caía a vertiginosa face Oeste da montanha. Finalmente, conseguíamos
avistar as agulhas rochosas que constituem os cumes centrais do Kapura. O cume
principal escondia-se atrás das agulhas mas, a sua calote de gelo era visível,
desde aquele ponto. Abandonámos as mochilas, suspensas em dois pitons de rocha,
que seriam posteriormente aproveitados para o rapel. Faltavam apenas uns 30 metros para terminar a
escalada. O relógio marcava as 18 horas quando alcançámos o cume sul do Kapura,
com cerca de 6350 metros
de altitude, dezasseis horas e meia depois de iniciarmos a escalada.
A Daniela a poucos metros do cume do kapura sul. "Yeaaahhhhh!"
Eu, no cume do Kapura sul. "Yeaaaahh!"
Éramos os
primeiros seres humanos a pisar aquele pedaço estreito do planeta.
Abraçámo-nos. A celebração ficaria para depois. Naquele momento, estávamos
vazios de emoções. Apesar do cansaço, o instinto mantinha-nos atentos, tensos.
Apenas queríamos descer o quanto antes. Esperavam-nos ainda muitos rapeis, até
alcançar a segurança do colo Alam.
Vista para o vale do Nangma, desde o cume sul do Kapura a 6350 metros. Entre as muitas montanhas visiveis, encontra-se o AminBrakk, o cume bojudo situado à direita na foto. A face virada ao sol é a mais conhecida dos escaladores, com diversas vias abertas. A face da esquerda à sombra encontra-se ainda por escalar.
Epilogo para um dia infinito
Sorridentes, do cume do kapura sul.
O sol afundou-se no horizonte durante o segundo rapel.
Agora a velocidade da descida já era indiferente, pelo que pela primeira vez,
decidimos fazer uma pausa para comer e beber algo, 20 minutos de pausa, todo um
luxo! No meio da escuridão, distinguimos lá em baixo no vale, uma luz
intermitente. De imediato percebemos que era o nosso cozinheiro, Altaf.
Respondi-lhe, fazendo também sinais de luz.
- Não faças isso! Ele ainda pode pensar que não estamos
bem! – alertou o Paulo.
- Que mau! Não trouxemos o rádio como combinado, ele deve
estar em pânico! Mais ainda a ver-nos cá em cima a estas horas! Coitado...
O que pensava Altaf era fácil de adivinhar, mas naquele
momento não havia nada que pudéssemos fazer para o tranquilizar.
Uns quantos rapeis depositaram-nos no topo da banda de
rocha. Sabíamos que depois de ultrapassar aquele trecho, o resto seria uma
questão de tempo.
O Paulo desceu, vi a luz do seu frontal desaparecer nas profundezas. Restou-me esperar. Sabia que não seria fácil encontrar no
escuro fissuras que lhe permitissem montar reunião. De quando em vez
sentia a corda baloiçar e percebia que ainda estaria à procura. Momentos mais
tarde a minha ansiedade foi quebrada.
- Podes viiiiiiiir! – um grito, vindo dos confins da
escuridão, quebrou o silêncio.
Coloquei a corda no descensor e rapelei.
- Bom trabalho. És um espectáculo! – disse-lhe, quando vi
o lugar que encontrou para montar a reunião.
- Desculpa lá a seca! – respondeu-me.
O processo repetiu-se por mais três rapeis e horas depois
chegávamos ao gelo. Deviam ser cerca das onze da noite e ainda tínhamos mais
uns 500 metros para descer (cerca de 10 rapeis!), mas agora sentíamos
segurança. Sabíamos que seria apenas uma questão de tempo até atingirmos o
conforto da nossa pequena tenda.
A coisa tornou-se mecânica, o Paulo rapelava até ao fim
das cordas e colocava um parafuso no gelo. Eu iniciava a descida. Quando
terminava o rapel, estava ele a preparar o “Abalakov” para o rapel seguinte. Eu
limpava os parafusos de gelo e puxava as cordas. Colocávamos as cordas no
“Abalakov”, o Paulo colocava-as no seu descensor, descia e o processo
repetia-se. Vigiávamo-nos mutuamente para que nada corresse mal por vias do
cansaço. Naquela altura a sede era o pior. O conteúdo dos cantis já estava
gelado e inconsumível. Para poder aproveitar tudo o que tínhamos, tivemos que
misturar o sumo dos cantis, com o chá e o café que estavam nas garrafas
térmicas. Daquela forma, acabámos a inventar duas novas bebidas energéticas de
altitude (café de laranja e laranjada de Lúcia-lima!).
As horas seguiram-se, os rapeis repetiram-se e tudo era
igual na escuridão, nem as silhuetas das montanhas se desenhavam. A monotonia
era imensa e, a certa altura: - Olha, acabei de adormecer! - anunciou o Paulo. Por momentos, passou-me
pela cabeça que algo podia ainda correr mal, tão perto do final.
- Mal por mal, se for preciso, deixamo-nos ficar aqui
pendurados e descansamos um bocado! Vê lá! – disse-lhe.
- Não. Eu estou bem, foi só um segundo. É melhor
continuar a descer.
O tempo passava cada vez mais devagar até que a certa
altura, pareceu-me ver a silhueta familiar do colo Alam.
- Estamos quase! Está ali! São só mais um ou dois rapeis!
- Achas? Não sei! – o Paulo mantinha-se reservado quanto
ao cálculo das distâncias.
Nessa altura apetecia-me chegar à tenda e descansar, mas
sabia que ainda teríamos tarefas obrigatórias pela frente. Hidratar, comer,
ligar o rádio para tentar falar com o Altaf, que devia estar preocupadíssimo.
Após um ultimo rapel, chegámos ao colo Alam e, pelas 3:15
da madrugada de 8 de Setembro voltámos a reptar para o interior do nosso
pequeno refúgio de tecido vermelho, 25 horas e 45 minutos depois de o
deixar-mos.
Aí sim, senti-me em segurança e desfrutei em pleno da
aventura que tínhamos acabado de viver, da linha que tínhamos aberto, do cume
intocado que tínhamos escalado. Aí sim, abraçámo-nos com força e felicidade e a
noite brindou connosco e ficou mais bela.
- Já está! –
exclamei.
- Calma, ainda falta sairmos daqui amanhã! – respondeu o
Paulo, conservador.
Mas naquele momento, eu já tinha a certeza que tudo iria
correr bem.
A minúscula tenda parecia-nos um palácio. Derretemos
neve, bebemos sopas e entrámos nos nossos sacos-cama aconchegantes. O chão
estava ainda mais irregular que no dia anterior, resultado de alguma neve que
tinha derretido, mas naquela altura, isso era um detalhe insignificante.
Ainda ligámos o rádio, mas o Altaf não estava do outro
lado.
Adormecemos sem ansiedade.
Eu, com um sorriso gigante.
Paulo Roxo e Daniela Teixeira
Carregados com todo o equipamento, dirigimo-nos para o campo base.
Uma pausa para um descanso, antes de continuar a descida em direcção ao campo base!
Ao chegarmos ao campo base, Altaf agraciou-nos com os ornamentos tradicionais do final das expedições. Missão cumprida!