segunda-feira, novembro 23, 2020

Solo

SOLO 


Vignemale, há 19 anos...


Há pouco tempo, ao vasculhar os meus canhandros - aquele caos de memórias de aventuras esquecidas - , descobri umas pequenas folhas amassadas, já meio descoloridas, mas de aspecto familiar. Tratava-se do único testemunho escrito que relata, de uma forma demasiado sucinta, aquela que considero como uma das minhas mais inspiradas escaladas: a ascensão em solo integral e à vista do corredor Arlaud-Soriac (700m, MD+), no maciço do mítico Vignemale, nos Pirinéus.

Não foi num passado demasiado distante, mas também não foi ontem!


As fotos que acompanham o texto são cópias de slides, obtidos em 2001.

 

---------------------


No Inverno de 2001, vivia naquele limbo existencial, entre as montanhas e uma Fiat Ducato - uma velharia com uns 20 anos - transformada em casa ambulante, que me servira de abrigo durante 18 meses de deambulações alpinas.

No mês de Abril, após uma aventura invernal no Vignemale, o meu companheiro, Nuno Soares (Larau), teve de retornar aos seus compromissos profissionais. No entanto, durante as horas da caminhada de regresso, enquanto apreciava as montanhas em redor, uma ideia germinava na minha cabeça.

O Larau abandonou o estacionamento e eu fiquei para ali, sozinho, a matutar…

“E se…?”

Por via das dúvidas, não fosse realmente decidir-me a concretizar o plano, preparei o equipamento. Comi qualquer coisa e, devia pensar em dormir um bocado, afinal, tinha acabado de descer do refúgio nem fazia uma hora.

Deitei-me e… não dormi!


O magnífico Vignemale!



Às 2h30 da madrugada, abandonei a carrinha no estacionamento de Pont d`Espagne e, mochila ligeira, mente focada, pus-me a caminho, refazendo o trilho nevado pelo qual havia passado poucas horas antes.

Tardei pouco mais de duas horas a chegar ao refúgio. Eram as 4h45 e, reinava o silêncio. O refúgio estava ocupado por mais alpinistas que dormiam nas camaratas. Muito em breve iriam começar a emergir dos casulos quentinhos dos sacos-cama e cobertores, para a dor momentânea da madrugada fria e negra. A maioria iria escalar o famoso Corredor de Gaube. Outros, iriam para outras vias, quiçá, para a “minha” via, a Arlaud-Soriac e, isso, constituía um problema para mim. Não queria ter ninguém por cima a lançar-me detritos de gelo mas, sobretudo, não queria que soubessem do meu plano, antes de o concretizar. Não queria que me fizessem perguntas sobre o que tencionava tentar. Planeava uma escalada em solo e, não me apetecia ser influenciado negativamente por nada, por opiniões, nem sequer por informações acerca do estado da via.

O Vignemale não é uma estranha para mim. Em 1992, conheci-a da forma mais profunda e visceral que alguém pode conhecer uma montanha. Na verdade, da forma mais dolorosa. Uma queda de 15 metros na última cascata do Corredor de Gaube, resultou nas duas pernas partidas e num longo processo de recuperação física. A reabilitação mental foi a mais penosa. No entanto, para me ajudar a superar os traumas, possuía a melhor arma secreta que alguém poderá ter jamais: a juventude! Com 22 anos, qualquer muralha, por mais alta que possa parecer, rapidamente se transforma numa pequena barreira, ultrapassável com algum treino. Porém, aquele acidente delapidou para sempre a certeza da imortalidade, tão comum, quando se é novo. Cresci!


O amigo "Toño", de Riglos, a escalar a última cascata do Corredor de Gaube. Nesta actividade, (2001), tentámos o Corredor Y, à esquerda do Gaube mas, as más condições daquela via, levaram-nos a realizar mais uma repetição do Corredor de Gaube. A fotografia mostra o local do meu acidente, em 1992.
Hoje em dia, devido à recessão do glaciar, na face sul, esta cascata quase não se forma. Era o glaciar que, "escorrendo" para norte, alimentava o gelo do Corredor de Gaube.



Depois do acidente, retornei algumas vezes ao Vignemale. A minha primeira ascensão (efectiva) ao Corredor de Gaube, resultou num processo “espanta-fantasmas”. Vários medos ressurgiram, durante a escalada daquela fatídica cascata final, vertical e com 40 metros. As assombrações do passado reapareciam a cada estocada de piolet. No entanto, o passar do tempo, a experiência acumulada e a familiaridade ao terreno de alta montanha, minorou de forma significativa as mazelas psicológicas do acidente, deixando algumas físicas, com as quais ainda convivo diariamente.

Voltei ao Vignemale para tentar outras vias e escalei o Corredor de Gaube mais três vezes, com diferentes companheiros, incluindo clientes. Os fantasmas do passado tinham-se evaporado definitivamente.


Uma secção fácil do Corredor de Gaube, onde não utilizámos a corda.



No interior da sala do refúgio, a luz tépida da chama do pequeno fogão amenizava a escuridão. Só e em silêncio aquecia um chá, antes de enfrentar de novo a fria madrugada.

Às 6h15, saí do refúgio. O fogão e o pouco equipamento supérfluo tinham ficado dentro de um dos cacifos. Também a mochila ficou para trás.

Os meus entusiasmos são muitas vezes alimentados por pequenos detalhes. Detalhes aparentemente insignificantes que funcionam como catalisadores. Uma ideia, uma peça de equipamento por estrear, uma determinada morfologia rochosa, um pensamento. Naquela noite, o pormenor que mantinha acesa a chama que impulsionava o espírito era uma frase que tinha lido num artigo sobre alpinismo, uma espécie de mantra, que o meu subconsciente repetia uma e outra vez: “Se tu pensas que PODES necessitar de alguma peça de equipamento, não a leves! Leva aquilo que EFECTIVAMENTE vais utilizar!”. Tinha decidido não levar sequer mochila, ou seja, seguindo o mantra, seria uma escalada levada a cabo da forma mais ligeira que me podia ocorrer… extremamente, radicalmente, ligeira! Posteriormente, apontei a lista de equipamento na pequena nota amassada:

“- Arnés

- 1 parafuso de gelo

- ½ litro de água numa garrafa preparada para suspensão ao arnês

- Frontal

- (Obviamente!) Piolets e Crampons (mono-ponta)”

Escrevinhei ainda:

“Ah!... Como não transportei mochila levei também uma pequena bolsa de cintura com:

- Algumas bolachas (Maria)

- Uma barra de Isostar (que não comi – não suporto!)

- Algumas pastilhas Isostar energéticas (isso sim, vale a pena!)

- E… caramelos (a minha fraqueza em guloseimas)”


O corredor de Gaube em 2001. O círculo marca dois alpinistas já acima da rimaya da entrada.



A neve recém-gelada quebrava debaixo dos crampons a cada passada, produzindo um ruído característico, o “crunch-crunch” ritmado e monótono, reconhecido por qualquer alpinista. Um céu impossivelmente estrelado iluminava a noite tranquila, congelada, como a própria temperatura.

Curiosamente, não me recordo de qualquer pensamento negativo. Nada! Caminhava em direcção a uma goullote de gelo com quase 700 metros que nunca tinha escalado, da qual não possuía qualquer informação e para a qual não levava sequer corda, ou qualquer equipamento de relevância, por forma a prevenir algum… incidente… no entanto, estranhamente, interiormente, sentia-me calmo, sereno, equilibrado. Todas a variáveis, equações, dúvidas ou medos, tinham-se diluído no exacto momento em que a decisão fora tomada. Ainda não o sabia, mas a decisão fora tomada ainda no estacionamento, logo a seguir ao abraço de adeus ao Larau, talvez até horas antes, enquanto descíamos do refúgio. O mesmo refúgio do qual partia agora, para cima, para a montanha. Todos os vectores convergiam numa só direcção: a certeza que tudo iria correr de feição.

Tardei pouco mais de uma hora em alcançar a base da Arlaud-Soriac. A claridade do amanhecer revelava um céu glorioso, pálido ainda, a caminho do azul intenso.


O Corredor Arlaud-Soriac está marcado pela linha vermelha. A seta marca o Corredor de Gaube, o mais famoso e repetido do Vignemale. O Corredor Y é o braço evidente que parte do Gaube para a esquerda.



De piolets em punho observo o cavalo que pretendo domar. As condições da via parecem-me perfeitas. “Vamos a isso!” – digo em voz alta.

A primeira parte do corredor com 60 graus de inclinação foi fácil e serviu como um aquecimento de motores. Pouco depois, surgiu a primeira cascata de gelo. Escalei-a num ápice. Sentia-me seguro e confiante… invencível.

A cascata seguinte mostrou-me os dentes. Uma pequena prancha de rocha vertical, quebrava a continuidade do gelo. Um ressalto inesperado. Observação, análise, decisão! Ainda no troço de gelo anterior, estiro o braço esquerdo o mais que posso, tentando que o piolet alcançasse o troço de gelo seguinte, evitando o passo impossível de rocha. Uma estocada… nada! Segunda estocada… nada! Terceira estocada… o piolet parece aguentar. “Parece aguentar” não é suficiente. O piolet TEM de aguentar! Quarta estocada… Quinta. O piolet vibra. Ok! O passo toma uma direcção ligeiramente em diagonal para a esquerda. Confiando que o piolet está solidamente cravado no gelo, coloco o piolet direito no ombro, levo a mão livre ao piolet cravado (durante alguns segundos agarro-me com as duas mãos à mesma ferramenta, a única que me agarra à cascata e… à vida), deixo balançar um pouco o corpo ao mesmo tempo que engancho a ponta do crampon esquerdo numa exígua saliência rochosa. Ergo o pé direito e desfiro um só golpe certeiro de crampon, procurando o eixo de equilíbrio. Volto a agarrar o piolet suspenso no ombro, desta vez com a mão esquerda. A troca de mãos no mesmo piolet permite-me tentar cravar ainda mais à esquerda, onde o gelo parece mais “saudável”. De novo, procedo ao ritual das estocadas até atingir o resultado ideal. Após três golpes o piolet vibra. Ok! Desta vez tenho de me erguer no crampon esquerdo que se aguenta precariamente na pequena saliência de rocha. Com cuidado, procuro o novo ponto de equilíbrio, desencravo o piolet direito, realizo um arco por cima do ombro e, num só golpe, cravo-o mais acima. Yes! – grito. Passo resolvido. Rapidamente escalo os metros seguintes com bom gelo. Naquele momento, soube que nunca iria poder destrepar aquela passagem. Pouco importava. A opção não me passava sequer pelo cérebro.


Uma das notas que escrevinhei, após a escalada da via. Uma miserável folha de papel, dobrada em quatro, é o único "documento" que possuo que testemunha a minha ascensão.



Um novo muro vertical apresentava o próximo desafio. Felizmente, o gelo encontrava-se em perfeitas condições e com quantidade suficiente para progredir sem sobressaltos. Acerca desse troço escrevi uma nota: “Gelo vertical (90 ͦ) em cerca de 6 metros, com ´ancragens` a ´explorar`.”

Alguns metros depois, a cascata reduziu um pouco a sua inclinação ao mesmo tempo que apertava a chaminé. Se pudesse soltar as mãos e abrir os braços conseguiria tocar em ambas paredes da garganta. Encontrava-me, literalmente, nas entranhas da montanha. Agora escalava com mais soltura, o terreno assim o permitia.

No final do corredor mais estreito, a uns 400 metros da base, deparei-me com um obstáculo. Um golpe psicológico! “E agora?” Analiso a situação. À minha esquerda erguia-se uma parede de rocha vertical, impossível de ultrapassar (mesmo com corda). À minha direita, uma estreita “escorrência” de gelo “trepava” até ao topo de um pequeno promontório que parecia terminar também em rocha. Ali, ocorreu o único momento de dúvida da ascensão. “E agora?” – repeti. Na verdade, não tinha alternativa senão optar pela “micro-goullote” da direita. Cravei o piolet. O gelo era de qualidade, escasso, mas de qualidade. Como não havia hipótese de colocar os pés lado a lado, tive de ir subindo um pé por cima do outro, cravando os crampons com bastante cuidado. Um escorregão estava fora de questão. Um pensamento ocupava-me o cérebro durante aqueles passos de escalada: “E se isto terminar efectivamente em rocha vertical?”


A "lista" de material que transportei. O parafuso de gelo servia apenas para me auto-segurar em caso de perigo extremo. Nunca o utilizei!



Atingi o topo do promontório e… à minha direita ali estavam, os duzentos metros restantes do corredor, não em gelo mas, em neve dura, de muito mais fácil progressão. Para alcançar o Nirvana tinha apenas que destrepar para o lado oposto da pequena aresta onde me empoleirava, evitando assim a parede de rocha e, alcançando o corredor. À medida que subia, fabricando uma escadaria de degraus pouco profundos na neve transformada, um misto de sensações debatia-se no meu cérebro. Misto de alívio e regozijo. Felicidade pura? Talvez isso.

O ponto focal, bem apertado na concentração máxima, podia agora alargar o seu horizonte. A "Zona", aquele estado cerebral difícil de alcançar e que nos permite realizar coisas perigosas ou difíceis, sem que o ritmo cardíaco se altere, desaparecia, como que diluído por um qualquer mecanismo misterioso. Podia agora ceder ao luxo de me distrair com outros pormenores, outros pensamentos.


O rabisco do croquis que fiz após a escalada do Corredor Arlaud-Soriac, onde apontei as condições encontradas. Esta e as notas anteriores (fotos anteriores), são os únicos escritos que documentam aquela ascensão. Como não transportei qualquer camera (peso a mais!), as fotografias não existem!



O vento frio recebeu-me na aresta, entre o Petit Vignemale e a Punta Chausenque. Detrás, encontrava-se o cume do monarca, o Vignemale com 3298m. Observei a vertente sul do maciço, mais suave e amistosa, iluminada por um Sol intenso de alta montanha. O relógio marcava as 9h30. A minha aventura a solo tinha demorado duas horas. Não escondia a sensação de orgulho. Celebrei sozinho aquela realização pessoal.

Sentei-me e olhei para trás. O vale profundo, branco de neve, estendia-se até aos bosques verdejantes, muitos metros mais abaixo. O refúgio Des Oulettes surgia na paisagem como um pequeno ponto colorido. Era para ali que devia descer. Pensava que iria encontrar outros alpinistas. Desta vez já podiam perguntar-me o que tinha escalado. Aquele pensamento suscitou um certo sentimento precoce de vaidade. 

Descendo pela via normal, desta vez em ritmo de passeio, parei a poucos metros do refúgio. Voltei a cabeça para encarar a imponente face norte do Vignemale, com os seus emblemáticos corredores de gelo. Um penacho de neve em pó surgiu da aresta de cume, projectado pelo vento. A montanha apresentava-se bela e impassível, indiferente a todos os sucessos, fracassos ou tragédias, acontecidos durante a breve história das “conquistas” humanas. Afinal, correspondiam apenas a meras fracções de segundo da sua vida geológica milenar.  

A minha escalada era alheia à montanha…

Assim como tem de ser…


Paulo Roxo




domingo, novembro 08, 2020

Fecunda indecisão

FECUNDA INDECISÃO


Mundo de tranquilidade.


Ainda não via as nuvens num céu indeciso quando acordei pelas 5 da manhã.

- Paulo, estás a dormir?

- Não. Que horas são?

- Ainda não tocou o despertador, pouco passa das 5!... mas já não consigo dormir!

- Então vamos levantar!

Cerca de uma hora antes do previsto, quem sabe pela falta que a rocha já nos fazia nos dedos - porque a chuva tem abundado - pulámos do aconchego dos lençóis para as fardas de escalada.

Pouco depois, já a nossa Berlingota acelerava rumo a norte, direcção? "Terra Prometida".

Tínhamos em vista uma via, mas a aproximação por um lado diferente das paredes encheu-nos as medidas… e os olhares esbugalhados e sonhadores fixaram-se num estético pilar com um bico. Um estético bico cortado a meio por uma fissura ainda mais estética.

Começou assim mais um rol de frases indecisas:

- Xiiii, olha ali! Já tinhas reparado naquele bico? Espectacular! E os diedros? Esta deve dar quê… uns 3 largos?

- Iá! Por aí.

- Está mais perto do que a outra via. Pode ser mais rápida! Será de ir lá?

- Hummm, será que o primeiro diedro tem fenda? É tudo muito vertical!

É assim que geralmente se instalam as dúvidas e os dias ganham contornos diferentes… muitas vezes, terminam sem via!

Dúvidas, dúvidas, muitos metros de dúvidas…

- Danielocas, se calhar é melhor seguirmos o plano original.

- OK!


Aqui já não havia indecisão. Era para cima!


E assim continuámos a aproximação à via previamente escolhida para aquele dia.

Mas as surpresas teimavam em não terminar. Já bem perto da parede, uma cerca de arame farpado impedia-nos de chegar à tão almejada parede e os minutos não deixavam de passar e o dia tornava-se a cada dúvida mais curto.

Entre trepar até uma árvore que poderia dar acesso à parede escolhida (ou não!) ou… ou… ou olhar para o lado e ver outra via num esporão que estava mesmo à mão de se escalar, ou ou… ou ir para o pilar do bico, decidimos pelo que nos parecia oferecer um dia de escalada… mais garantido, neste caso, mais fácil, em jeito de reconhecimento a um novo sector… e aos pés de gato por estrear que a mochila escondia – tenho medo da combinação pés de gato por estrear com via grande e nova!

Na base de um pilar com ar de não ser o mais interessante do sector, esvaziámos a mochila, protegemos as mãos com as mais que úteis luvas para fissuras e acomodámos no bandulho umas sandochas bem abonadas. Vendo bem as coisas, já era quase hora de almoço!

Por volta do meio-dia, demos início ao bailado na parede. O primeiro largo foi amável, próprio para quem já não tocava naquele quartzito há muitos meses e para quem já não fruía em aventuras verticais há umas semanas.

- Sinto-me perro! Estou todo atrapalhado e isto é uma cagada!

Sentimo-nos os dois perros durante cerca de 30m.

Para o aspecto inicial, pelo qual não daria boa nota à estética daquela via, a coisa até não saiu feiosa.

Já na primeira reunião, a coisa mudou de figura, a fissura vertical desenhada na parede já aumentava a nota atribuída à estética da via.


Após um pequeno tecto, o crux!


- Reuniããããoooo!

- Não precisas medir! Trinta meeeeetros! – gritei de uma cómoda plataforma.

30 magníficos metros, não me senti burlada pelo que o olhar abarcou da agradável primeira reunião.

Da segunda reunião, dois pares de olhos esbugalhados pousaram em mais uma “daquelas” fissuras… mais um largo com qualidade bem superior ao que esperava quando calcei os pés de gato na base da via.

 - Reuniããããoooo!

- Não precisas medir! Mais trinta meeeeetros! – gritei de outra cómoda plataforma.

A escalada regalou-nos com verticalidade, fissuras estéticas, boas presas, tudo o que povoa o imaginário de um par de escaladores ávidos por um dia bem preenchido.

- Reuniããããoooo!

- Não precisas medir! Mais trinta meeeeetros! – berrei novamente – Agora só faltava o último largo também ter… 30 metros!

Na última reunião debatíamos por onde seguir: pelo estético diedro ou arriscar pela placa vertical, esperando que por baixo da capa de musgo surgissem boas presas e fissuras nos sítios certos para proteger?

A placa não era clara e decidimos…pela placa!


O último lance mais fácil mas, de desfrute.


- Reuniããããoooo! Termina aquiiiiiiiii!

- 30 meeeetros! – gritei ainda com um largo sorriso estampado nos lábios, na cara, no corpo todo!

Contrariamente ao que tantas vezes acontece, a escolha pela placa revelou-se acertada. Por entre o musgo que nunca foi em demasia (bem nos enganou!), surgiam sequências de presas e apoios para os gatos, sempre em abundancia e nos sítios certos.

Eram as cinco da tarde quando nos encontrámos no topo da parede. A via que me tinha parecido “pouco estética”, na verdade meio “mastronça” vista de baixo, revelou-se muito, mas muuuuuuiiiito mais bonita do que a impressão que o meu primeiro olhar transmitiu ao meu encéfalo.


A sempre-clássica "foto-cume".


Pouco mais de meia hora demorámos a chegar novamente à Berlingota e poucos minutos depois, a noite tornou-se tão escura como quando acordei.

A pergunta “do costume” já tinha sido respondida no topo da parede: “E nome para a via?”


Daniela Teixeira


Os Topos





quarta-feira, outubro 21, 2020

Zé do Desterro

ZÉ DO DESTERRO


A Daniela Teixeira na "Variante dos enganados". Uma via variante mais dificil da "Zé do Desterro".



Há mais de 100 anos, não se concebia uma “visita” à Serra da Estrela sem a contratação de um guia de montanha (por vezes mais do que um). Geralmente, esses guias, eram pastores ou caçadores, conhecedores profundos de um território selvagem e desconhecido. Os seus “clientes” provinham quase sempre de um extrato social elevado, erudito e privilegiado. Muitos eram médicos, políticos ou pessoas de grande influência. Na verdade, naqueles tempos, só as pessoas abastadas possuíam a disponibilidade financeira (e tempo) para investir em “proezas” de logística morosa e complicada, como uma travessia na Serra da Estrela. No entanto, apesar de fazerem parte de uma certa burguesia, não deixavam de possuir um forte espírito de aventura e sacrifício, aceitando, sempre que necessário, as agruras de uma tempestade ou de um bivaque debaixo de um qualquer bloco de granito, como um qualquer pastor serrano.

Estas “expedições” envolviam sempre a contratação de cozinheiros, ajudantes, aluguer de cavalos e de equipamento para acampar. Inevitavelmente, a contratação de guias fazia sempre parte do orçamento imprescindível.


"Exploradores" de 1912. Foto retirada do livro "Aos Montes Hermínios" de Duarte Rodrigues.


Um desses guias foi José Paschoa (nome original), mais conhecido como “Zé do Desterro”.

Zé do Desterro foi um dos primeiros empregados da central de electricidade, inaugurada em Dezembro de 1909, na Sra do Desterro (São Romão) e daí proveio a sua alcunha. Zé do Desterro dividia o seu tempo como fiscal na “Fábrica Eléctrica” (como era referida a central nos primeiros anos do séc. XX) e em explorações de caça (mas, também lúdicas) no território bravio da Serra da Estrela, calcorreando a pé muitos quilómetros, durante as quatro estações do ano, incluindo a das neves.


O guia José Paschoa. Esta será quiçá, a única foto conhecida de Zé do Desterro.


Foi um dos guias de montanha contratados pelo célebre Dr. Sousa Martins, Emygdio Navarro e Carlos Tavares, durante a sua travessia na Serra da Estrela em 1883, celebrizada no livro “Quatro dias na Serra da Estrella”.

Zé do Desterro constituiu também, muito provavelmente, o corpo de guias contratados para a famosa Expedição Científica à Serra da Estrela de 1881.


Dr. Sousa Martins, Emygdio Navarro e Carlos Tavares, aquando da sua travessia da Serra da Estrela em 1883.


Existem também algumas referências a José Paschoa no pequeno livro de nome sugestivo: “Impressões de uma excursão, Serra da Estrella (Subsidios para o desenvolvimento do alpinismo)”. Esta foi uma actividade liderada por Evaristo Faure em Agosto de 1911, que contou com a presença de Zé do Desterro, como guia oficial da “expedição”. 

Os guias da Serra da Estrela existiram há muitas décadas e fizeram parte de um legado histórico, de certa forma, perdido no tempo. Eram pessoas que serviam como apoio imprescindível a todos quantos desejassem conhecer a serra de uma forma mais profunda e aventureira. A simbiose entre o guia montanheiro e o cliente erudito forjou o espírito precursor do montanhismo actual, contemporâneo da realidade vivida em outras montanhas europeias, onde o Alpinismo respirava a sua época de ouro.


Capa do livro "Aos Montes Hermínios" de 1912. Obra pioneira que celebra o "Alpinismo" na Serra da Estrela.


 ZÉ DO DESTERRO (245m, V/V+)


Em técnica de escalada em solitário, aquando da "rectificação" e finalização da via "Zé do Desterro".


A via de escalada aqui apresentada é mais uma singela homenagem a estes guias de montanha que, em tempos idos, cruzaram a Serra da Estrela, na companhia dos seus clientes “da cidade” de espírito aventureiro, encantados com as terras altas de granito e neves sazonais.

É uma via relativamente longa e de dificuldade “moderada”.

Sob o ponto de vista da escalada pura, esta pode decepcionar um pouco quem procura a verticalidade e a continuidade, no entanto, a via apresentada pode constituir uma escalada adequada para os iniciantes nas técnicas de escalada tradicional, dita “clássica” ou, para quem deseje passar umas horas bem-dispostas de aventura amena, em equilíbrio com a natureza.

 

Durante a abertura da "Variante dos enganados". Variante mais dificil da "Zé do Desterro".


COMBINADO DOS GUIAS

 

Os escaladores mais famintos podem combinar a “Zé do Desterro” com a via “Guia Lau” (http://rppd.blogspot.com/2020/09/guia-lau.html), no mesmo sector e de características semelhantes. Para esta proposta sugere-se a seguinte estratégia:

- Escalar a “Guia Lau”, deixando as mochilas ou excedente na plataforma da segunda reunião.

- Descer em rapel pela própria via até à plataforma da segunda reunião. Atravessar as plataformas até alcançar a base da “Zé do Desterro”.

- Escalar a “Zé do Desterro” até ao cimo, saindo pela estrada.


O Guia Lau em 1934. 


Realizar o encadeamento baptizado como “Combinado dos Guias” pode traduzir-se numa boa proposta para um dia de aventura “alpina” e, ao mesmo tempo, constituir uma excelente homenagem às personagens que ajudaram a enobrecer a história do montanhismo e da escalada na Serra da Estrela e no nosso país.

 

Paulo Roxo


Topos







quarta-feira, outubro 07, 2020

Cho-Oyu 2006, 14 anos depois

 CHO-OYU (8201m) - 2006

14 ANOS DEPOIS...


A Daniela Teixeira, no cume do Cho-Oyu, às 8h00 da manhã do dia 7 de Outubro de 2006.



Texto publicado a 10 de Outubro de 2006


No passado Sábado 7 de Outubro a Daniela Teixeira conseguiu alcançar o cume do Cho Oyu com 8201 metros de altitude realizando assim, o seu sonho de escalar uma montanha com mais de 8000 metros.

Contudo, a tarefa não foi fácil.
Em primeiro lugar, a logística do Campo base esteve muito longe do razoável. Tendas de péssima qualidade e cadeirinhas da “pré-primária” impediram uma estância cómoda nos vários dias passados no Campo base. A alimentação também se tornou num grande problema. Não variava muito das batatas e massa, ou massa com batatas, enquanto as expedições vizinhas se deliciavam com variados menus.
O mau tempo que se abateu sobre a montanha durante vários dias encheu o Campo base de neve transformando o cenário numa autentica paisagem invernal. Bonito espectáculo para as fotografias mas, absolutamente impeditivo no que tocou a ascensões alpinas.
Várias foram as vezes necessárias para escavar a neve acumulada sobre as tendas.
Foi durante esses dias de intensas nevadas que a Daniela se sentiu mais desmotivada e deprimida.
As más condições do seu acampamento e o mau tempo perigaram a sua ascensão, inclusive a própria aclimatação.

Com o retorno do bom tempo muitas equipas iniciam a subida.
A Daniela decide tentar a ascensão ao campo 1 (6400 mts) e ao campo 2 (7200 mts), de forma a realizar um mínimo de aclimatação.
Para ela era o “agora ou nunca”, confessando não sentir possuir energia (e tempo) para realizar uma segunda tentativa.
No dia 27 de Setembro, sem companheiro de cordada, subiu ao campo 1. Determinada a não utilizar o apoio de um Sherpa carregador (ao contrário da maioria das expedições que contratam Sherpas até ao campo 1) carregou a sua “mochilinha” de 20 quilos, chegando ao local de acampamento bastante cansada. Decidiu então repousar um dia nesse local.
No dia seguinte, igualmente só (sem companheiro de cordada) cruzou a barreira de seracs (considerada como um dos “crux´s” da via) e alcançou o campo 2, ultrapassando os 7100 metros, o seu limite pessoal de altitude (Korjeneveskaya 7105 mts, em 2004). Aí dormiu para, no dia seguinte, retornar ao campo 1 e, posteriormente ao campo base.
Desta forma e rapidamente, a Daniela resolveu o seu processo de aclimatação.

Entretanto os dois Gregos com quem partilhava o campo base decidem desistir da montanha e voltar para Katmandu. Após desagradável discussão e partindo do principio simplista (e pouco cavalheiresca!) de que a maioria vence, os dois Gregos retiram e com eles foi também toda a logística, as tendas, o cozinheiro e o ajudante.
Por sorte a Daniela recebe o convite da simpática equipa Filipina para que se una a eles. A partir desse momento decide abandonar a sua tentativa em solitário juntando-se aos Filipinos na sua ascensão.
Os Filipinos possuem carregadores e utilizam oxigénio artificial. A Daniela não recorre a nenhum destes apoios.


Um dos muitos dias de tempestade no campo base do Cho-Oyu.


No dia 4 de Outubro reiniciam a ascensão.
No dia 5 encontram-se no campo 2. A Daniela reporta: “Ontem subimos ao campo 1 com muito mau tempo. Hoje atingi o campo 2. Estou exausta. Não sei como vou conseguir fazer cume!”
O Vitor Baía, com o seu valioso apoio desde Portugal, informa através de mensagens para o telefone satélite que a zona do Cho Oyu vai estar sujeita a ventos fortes da ordem dos 40 a 50 km e, “talvez mais”, acrescentando: “não subir no dia 7!”
A Daniela viu-se confrontada com uma decisão crucial. Subir ou... descer abandonando a montanha.
Apesar das adversidades e, sentindo ser a sua ultima oportunidade, decidiu por fim realizar uma derradeira tentativa.
Acompanhando os Filipinos (ou acompanhada pelos Filipinos) na madrugada do dia 7, iniciou a penosa ascensão desde os 7200 metros.
Após a banda rochosa que constitui a ultima barreira de dificuldades, o Cho Oyu perde inclinação apresentando uma enorme extensão até ao cume, técnicamente fácil mas, psicológicamente arrasadora. É nesta fase que muitas equipas desistem. A elevada altitude (superior aos 8000 metros) e a grande distância a percorrer minam a moral e energia dos alpinistas. Aqui, a força de vontade é crucial jogando a cartada fundamental. Foi aqui que os Filipinos decidiram desistir e voltar para baixo (nota: imprecisão corrigida pela Daniela no texto seguinte).
Após dificeis momentos de dúvida e, a partir dessa altura sem companhia, a Daniela resolveu continuar.
Pensando ainda faltar duas horas para alcançar o cume sente que se encontra muito perto do seu limite de resistência.


A tenda de campo base da Daniela, que foi várias vezes parcialmente soterrada pela neve, durante tempestades.


Vagarosamente, passo a passo, respirando profundamente, tentando inspirar o máximo do rarefeito ar, sobe um pouco mais e... ainda mais um pouco. Passam trinta minutos até que a inclinação positiva se transforma em negativa. Encontra-se no cume do Cho Oyu. Ás oito horas da manhâ de Portugal chegara ao cimo da Deusa Turquesa e, ao culminar do seu sonho.

Após dois anos de treino intenso e de uma tentativa fracassada (Shisha Pangma em 2005) a Daniela subiu o seu “8000” tornando-se, por acrescento, na primeira Portuguesa a escalar uma montanha com mais de 8000 metros.

Esta foi, sem dúvida, uma vitória pessoal bem merecida.
Para os que, de longe, acompanhámos assiduamente a sua aventura esta foi uma ascensão inspiradora. Uma história de determinação que decerto teremos a oportunidade de ouvir em primeira mão pela sua protagonista, quando pisar o solo Lusitâno.

Quanto à escalada em si, passo a citar uma mensagem publicada no site da expedição, que permite, em poucas palavras, explicar o destino desta realização:

“Momento histórico! Muitos parabéns!”

 

Nota: este foi o texto escrito antes da Daniela voltar ao contacto com o “mundo exterior”. Por isso saiu com algumas imprecisões. No dia 20 de Outubro (texto seguinte), a Daniela descreveu o que aconteceu no dia de cume, corrigindo as gafes anteriores.


Paulo Roxo

 

 

Texto publicado a 20 de Outubro de 2006

 

Dia de cume, 7 de Outubro de 2006


Pela meia-noite e meia, quando meti a cabeça fora da tenda, já 6 luzinhas tomavam a direcção do campo 3 enquanto a lua iluminava o caminho.
Os 2 rapazes filipinos estavam já também de saída.
A ideia do sherpa Lakpa, era dar a esta expedição oxigénio desde o campo 3.
Eu e as duas raparigas, acabamos por sair tardiamente, cerca das 2:30.
Preocupava-me já o atraso e o vento gélido que soprava não era um bom pressagio. Acelerei o passo e uma hora depois percebi que os dois rapazes filipinos estavam demasiado lentos para fazer cume. Cerca de 15 min. depois, 3 italianos baixavam demovidos pelo frio e pelo vento. Diziam que não se queriam meter em ventos de 70km/h que se faziam sentir acima do campo 3. 70km/h era exagerado, pois as previsões que tinha eram de cerca de 40 para o cume, pelo que decidi continuar. Perguntei-lhes por Julia, uma alpinista do grupo, disseram-me que teria decidido continuar com outros 2 italianos.


Campo 1.



Cheguei ao campo 3 cerca de três horas depois e decidi parar meia-hora para recupar, comer e beber algo. Aí, dois Espanhóis exclamaram: "Hola Portuguesa, vienes del campo 2?"
Respondi afirmativamente. Disse-lhes que queria descansar um pouco, mas ao ver que se estavam a preparar para subir resolvi aproveitar a "boleia". Não queria continuar sozinha.
O dia começou a clarear e acabei por sair do campo 3 com Rafael, que se viria a tornar em "São Rafael" pelo que se passou a seguir. Subíamos ao mesmo ritmo. Após uma vertente, chegamos a uma banda de rocha (a Yellow Band) que é necessário transpor.
Está tudo equipado com cordas fixas. No entanto, àquela altitude, cerca de 15 ou 20 metros de uma fácil escalada em rocha tornam-se num verdadeiro desafio, especialmente porque, para além do arfar, é necessário mexer em material, o Jumar (ascensor), com umas enormes e desajeitadas luvas de penas sem dedos e, no meu caso, com um bastão em punho. Vagarosa e desajeitadamente, lá transponho este obstáculo. No final, há que remover o Jumar, passando-o para a corda seguinte. Neste processo, sou obrigada a tirar uma luva, ficando só com uma fina luva interior. De repente, deixo cair a luva. Gelasse-me o coração, pois sei que sem a luva não posso continuar. Se o fizesse, iria congelar os dedos. Olho para baixo e vejo Rafael a apanhar a minha luva. Espero um pouco até que este me alcança, com a luva entre os dentes. Agradeço emocionada, sem ele nunca poderia continuar.
Depois deste incidente, apesar do frio intenso, a minha motivação parece ter-se renovado. À medida que subo, as pendentes parecem multiplicar-se. Avanço e distancio-me de Rafael e dou por mim novamente sozinha, a pensar se será ou não possível alcançar o cume desta montanha, com o vento forte que se faz sentir. Quantos irão à minha frente?
Tenho a certeza que pelo menos 3 italianos, que saíram bastante antes, já que não passaram por mim a descer. Isso dá-me forças para continuar. Um pouco mais à frente, vejo mais duas pessoas, que, como eu se movimentam vagarosamente.


Um aspecto da ascensão numa secção de cordas fixas.


De repente, vejo o fim das cordas fixas e o sol começa a iluminar-me. Penso que me irá aquecer, mas engano-me, pois o fim das cordas fixas significa a diminuição de pendente e logo uma maior exposição ao vento.
Paro para beber um pouco de sumo e tentar engolir alguma coisa. O sumo está já bastante frio e quase intragável, apesar de muito protegido. De comer, apenas consigo espremer um gel meio energético, tudo o resto congelou. Por esta altura, perdi já a sensibilidade nas pontas dos dedos de uma mão, mas não me preocupo muito porque percebo que as mexo bastante bem.
Quero acreditar que no fim da vertente vai surgir o que dizem ser o longo planalto do cume, mas quanto mais subo, mais a montanha insiste em esconder-me o dito planalto. Não faço ideia das horas, não posso retirar a luva para ver o relógio, o intenso vento tenta demover-me, mas penso "já que cheguei até aqui, continuo um pouco mais! Pelo menos até que os italianos que estão à frente se cruzem comigo ao descer”.
Nisto alcanço outro alpinista espanhol e pouco depois entramos os 2 no tal planalto do cume. As nuvens à minha frente movem-se depressa e a visibilidade não é perfeita. Os 40km/h que o Vitor Baía previa, eram ali cerca de 50 ou 60, duros de enfrentar. Penso que já deve faltar pouco, quando vejo um vulto a caminhar em minha direcção. Quando nos cruzamos, reconheço um dos espanhóis e pergunto "quanto tempo para o cume?" ao que me responde "2 a 3 horas". Surpreendo-me com a resposta e fico ali parada a pensar que, com aquele vento não vou conseguir. Faço um esforço para ver as horas e reparo que são cerca das 12:30 (hora nepalesa). Penso que se demorar 2 a 3 horas poderei ter sérios problemas. Pegadas apagadas pelo vento naquele imenso planalto com fraca visibilidade, podem significar perder-me por ali. Fico ali parada, durante o que penso serem 1 ou 2 minutos, a pensar o quão larga é a distância e tão curta a altitude. Desisto, volto as costas e penso que não vale a pena arriscar. Minutos depois, cruzo-me com um espanhol que vinha a subir e que me diz "Não, não! Daqui é no máximo uma hora. Vamos! Tenho um amigo mais à frente!". Isso dá-me novo animo e decido arriscar. O tipo parecia confiante. Novamente me ponho a caminho e, passado pouco tempo surge, vindo do cimo, o tal amigo feliz, dizendo "são mais 10 min!". Esses 10 minutos pareceram-me 5 e, de repente, estava ali, um cume que não parecia cume, de tal forma se encontra dissipado no meio de um planalto com nuvens que se movimentam rápido e com a neve que um intenso vento levanta.
Eram as 13:00. Sentados no chão, estavam Simone e Julia (italianos).
Felicitamo-nos. Olho em volta e avisto umas velhas bandeirinhas de oração. Atrás de mim, jaz no caminho uma garrafa de oxigénio laranja e um cantil azul. Há algum lixo no cume.
O Everest que era suposto ver, estava tapado pelas nuvens.
Faço de imediato uso do meu telefone satélite. Primeiro tenho a sorte de falar com o meu pai: "Pai, estou no cume! Consegui!" grito eufórica. Depois envio uma mensagem ao Pedro Cuiça para colocar no site da expedição. De seguida, peço aos italianos que me filmem um pouco, enquanto balbucio algumas coisas que me vêm à cabeça. Filmo um pouco o envolvente e quando peço que me tirem umas fotos, a minha máquina recusa-se a funcionar, acusando falta de bateria. Não posso acreditar. Nisto chega o espanhol que estava mesmo atrás de mim e peço-lhe para tirar umas fotos com a sua câmara, "Claro!" responde. Pouco depois vejo Rafael. Os dois espanhóis conhecem-se. Peço também que me tire umas fotos, ao que este acede. Pouco depois inspeciono o meu cantil. Tal como temia, descubro meio litro de líquido congelado. Até a comida que trazia junto ao corpo congelou! Resta-me voltar para baixo rapidamente e fugir ao intenso mau tempo. Penso apenas que o Vítor Baía tinha razão, não era dia de fazer cume... apesar de já estar feito!
O meu primeiro 8000... em tão duras condições!


A Daniela, de volta ao campo base, depois de alcançar o cume do Cho-Oyu.


Não duvido que baixarei bem e depressa ao campo 2, pois sinto uma enorme energia interior e uma intensa satisfação. Chego a esquecer que apenas ingeri meio litro de sumo e um pacotinho de gel, surpreendo-me como me sinto tão bem.
Vejo os restantes a descer devagar e extenuados, eu estranhamente, pareço agora ligada à corrente eléctrica!"
Rapidamente me ponho no campo 2 e, na ultima vertente, cruzo-me com 2 filipinos. Como os vejo exaustos, percebo que algo correu mal.
No campo 2, Noell (uma das filipinas) recebe-me de braços abertos e felicita-me. Estranhamente, o efusivo Lakpa mal põe a cabeça fora da tenda. Com Pasang passa-se mesmo. Dizem-me pouco depois que Regie, o líder da expedição, ficou com cegueira das neves e os 2 sherpas tiveram de o descer amarrado a cordas, pelo que ambos estavam extenuados.
O ambiente estava pesado.
Como o cansaço foi contagiante nessa noite, apenas eu e Noell cozinhamos umas massas para o jantar, mas já não houve paciência para fundir gelo para fazer água. Assim, fiquei-me com pouco mais de meio litro nesse dia. A consequência foi uma enorme dor de cabeça nocturna! Karina demorou uma eternidade para descer a ultima vertente, sentando-se de 5 em 5 passos. O que se desce em cerca de 15 ou 20 minutos, deve ter-lhe custado umas 2h.
Pela noite, ainda tive o enorme prazer de falar com os meus pais e com Ivan Vallejo que, do outro lado do telefone, estava tão contente com a noticia, que parecia ter sido ele a fazer cume.


Daniela Teixeira



sábado, setembro 19, 2020

Ressaltinhos, ressaltos e ressaltões!

 RESSALTINHOS, RESSALTOS E RESSALTÕES!


A sempre bela face leste do Cântaro Magro. A "Esporão do ressaltão" encontra-se na mole de granito mesmo à direita do colo formado entre o Cântaro e as paredes do lado direito.


Junto ao sector de escalada desportiva situado no sopé do Cântaro Magro, conhecido como “Cascata Musical”, existe um grande esporão de granito intrigante. Uma espécie de irmão menor do nobre Cântaro, sobranceiro e inevitável. Será que daria para “inventar” por ali algum alinhamento mais ou menos lógico? Algo que permitisse escalar todo o perfil do contraforte? A curiosidade vagueava há alguns meses (anos?) na minha cabeça, ausentando-se e surgindo periodicamente, normalmente quando cruzava o Covão da Ametade em direcção à infatigável face leste do Cântaro.


A Daniela Teixeira no final do terceiro lance - saída directa.


A escalar o diedro do quarto lence.


No passado dia 3 de Setembro, resolvemos dar uma espreitadela e, voilá, ao longo de cinco lances de escalada moderada a fácil, “desenhámos” uma linha na imaculada tela de granito; a primeira via a nascer naquele pilar atractivo, estranhamente abandonado.


A Daniela metida na placa do terceiro lance.


Apesar da sua lógica, na realidade, esta via ultrapassa uma série de grandes ressaltos que se sucedem até terminar em uma grande plataforma superior, com vistas privilegiadas para a impressionante face nordeste do Cântaro Magro. Estes terraços de granito convidam a uma fuga para os covões altaneiros, como o Covão Cimeiro, permitindo uma alternativa agradável à descida em rapel, utilizando as reuniões da via que acabou de se escalar… apenas uma sugestão direccionada aos potenciais repetidores da nova “Esporão Ressaltão”.


Foto-cume e... Kisss!


Aqui fica toda a informação acerca de mais uma via de grau “acessível”, a juntar a outras já divulgadas e do mesmo género (como a “Guia Lau”). Enjoy!

 

Paulo Roxo



Os Topos





terça-feira, setembro 01, 2020

Guia lau

GUIA LAU

Paisagens sublimes

Na linha da divulgação de vias “acessíveis” multi-lances na Serra da Estrela, aqui fica mais um contributo. Trata-se de uma via aberta há pouco mais de dois anos, mais precisamente a 6 de julho de 2018, em técnica de escalada em solitário.


Alpkit!


Com esta escalada agradável e relativamente fácil, resolvi homenagear uma figura que nasceu há mais de 100 anos e que realizou vários trabalhos como guia na Serra da Estrela; o Guia Lau!


O Guia Lau.


Entre os primeiros anos da década de 30 até finais dos anos 40 do séc XX, o famoso matemático Bento de Jesus Caraça realizou várias visitas à Serra da Estrela, “arrastando” muitas vezes os amigos nas suas travessias. As suas incursões seriam sempre guiadas pelo José Santos, também conhecido como o “José Lau”, ou simplesmente, “Lau”.

José Santos, de São Romão, era na verdade uma pessoa sem residência fixa ou ocupação permanente, cuja vida acabou marcada pela pobreza. No entanto, quando Bento de Jesus Caraça visitava a Serra da Estrela, o espírito de Lau iluminava-se. A vinda do matemático significava a sua contratação como guia e, com sorte, alguma roupa para vestir, oferecida pelo seu benfeitor. Lau costumava referir-se a Bento de Jesus Caraça como: “O Paizinho”.

Com o tempo, o “Guia Lau” ganhou uma certa reputação, tendo sido entrevistado algumas vezes. Numa dessas entrevistas, quando confrontado com uma questão acerca do seu modo de vida, Lau respondeu: “Vivo com o Sol do céu e com o pão que me têm dado os que vivem na terra!”

Apesar das dificuldades, em princípios do século XX, Lau tornou-se em um dos maiores conhecedores do território bravio da Serra da Estrela, merecendo um lugar de destaque na história do montanhismo da Serra da Estrela, na sua fase embrionária.


Paulo Roxo

  

Topo