segunda-feira, maio 25, 2015

Padaria


A GRANDE AVENTURA FARINHENTA DA ARRÁBIDA. A "PADARIA"



- Epá! Ando mesmo a precisar de uma daquelas aventuras “à séria!” - desabafou o João, interrompendo a nossa conversa aborrecida acerca de acidentes, incidentes e mazelas várias.
- E já tens ideia da parede? - perguntei-lhe, enquanto tentava equilibrar-me nas “muletas”. Já estava num estágio mais avançado de recuperação do acidente mas, as aventuras verticais ainda não se vislumbravam no meu horizonte. - O Fernando é a pessoa ideal para te acompanhar!
- Sim, estava a pensar nele. Estás a ver aquela parede do Fojo, mesmo à direita da “Figos prós amigos?” – com o dedo, o João aponta a palma da mão direita, voltada para baixo – “Imagina uma via a atravessar aquele tecto gigante. Seria espectacular!”


A bela falésia!


A Parede dos Figos, na Serra da Arrábida, constitui uma das paredes mais remotas da nossa geografia. O que não quer dizer que esteja muito distante da civilização. Sem utilizar cordas, o único acesso existente para alcançar a base daquele pilar de calcário, é pelo mar. Adoptar o acesso por cordas requer algum planeamento e uma certa logística. Não existe propriamente uma linha de rapel que permita aceder comodamente à base da parede. Consequentemente, escapar dali também pode ser bastante complicado. Perante estas dificuldades, não se torna difícil compreender o considerável grau de compromisso envolvido. Mesmo assim, curiosamente, a “Parede dos Figos” já possui um bom número de vias de escalada. No entanto, todas elas foram equipadas desde o cimo e são vias “desportivas”.
Agora, a intenção era abrir uma nova via, desde baixo e, recorrendo o mínimo possível aos expansivos. Seria a primeira via do género, naquela parede, embora tenha havido uma anterior tentativa protagonizada pelo Ricardo Nogueira e por mim em 1998, que fracassou logo no segundo lance.


Fantásticas brumas matinais, num lugar mágico.


No dia 26 de Abril, o João Gaspar e o Fernando Pereira, iniciaram o trilho que se dirige para o topo da falésia, carregados com pesadas mochilas. Após alguma deliberação, a sua decisão foi a de instalar duas cordas fixas, entre a “Parede dos Figos” e a “Parede Branca”, como forma de ter uma linha de acesso e retirada – a jumarear! – durante o assédio.


A iniciar os rapeis de acesso à baía isolada. O plano "B" de acesso ou retirada às costas.


O Fernando iniciou as hostilidades e o que se seguiu foi um lance de escalada nervosa com um crux um pouco exposto, que foi resolvido em artificial.
Sem tempo para mais nesse dia, o Fernando desceu e tratou de sanear os blocos e pedras maiores, de forma a tornar a escalada mais “humana”.
Inicialmente, existiam duas estratégias possíveis para realizar a aventura. Uma das formas seria dormir junto à parede, desfrutando de umas noites bucólicas embaladas pelo “chap, chap” do mar tranquilo. Outra das hipóteses seria, no final de cada jornada, jumarear as cordas fixas e ir dormir a casa. A primeira hipótese seria a mais romântica e a segunda a que envolvia menos dores de cabeça em planeamentos. «Não nos apeteceu muito carregar o fogão, comida, sacos de dormir, colchonetes e demais parafernália para ir “viver” na parede. Por outro lado, a ideia de um jantarito como deve ser, acompanhado de uma “jola” fresquinha ou um vinho bem servido, também nos atraía bastante!» Se dúvidas houvessem, a ultima ilustração encarregava-se de as fazer cair por terra.


O Fernando a iniciar o primeiro lance.


O João a terminar de escalar o primeiro lance.


No dia seguinte, após “rapelar” as cordas estáticas, fixas para o acesso e, jumarear a corda de escalada, fixa na via até à primeira reunião, cabia ao João a responsabilidade de abrir o lance seguinte. O que encontrou foi uma rocha muito boa mas, de protecção precária. Felizmente, os micro-entaladores fizeram a sua função principal que consiste em providenciar alguma paz de espírito, animando o escalador a continuar, esperançado que o material aguente “o tranco”, produzido por uma hipotética queda. Nessa altura, os dois escaladores já tinham desistido da ideia de enfrentar o grande tecto “mesmo em frente” pois, obrigaria a gastar ali, todas as reservas de pernes e plaquetes disponíveis, o que entraria certamente em conflito com um dos objectivos almejados que consistia, precisamente, em furar a rocha o mínimo possível. 


O aspecto da primeira reunião.


De forma a alcançar um troço do tecto que permitisse a colocação de protecções naturais, o João realizou uma travessia, alcançou uma figueira característica e, pouco depois, concluiu o lance com um destrepe delicado em diagonal. Suspenso num gancho, o João içou a máquina e colocou os dois pernes que correspondem à segunda reunião da via. Quem não gostou muito da travessia final foi o Fernando que, ao retirar todo o equipamento, deparou-se com um destrepe desprotegido de arrepiar todos os cabelinhos. A duras penas e meio equilibrado em nada, o Fernando conseguiu colocar um novo perne, de forma a reduzir o grau de exposição daquele troço.


O João a iniciar o segundo lance, uma placa que prometia.


O Fernando assegura atentamente.


O João a chegar à figueira "salvadora". A segunda reunião viria a ser colocada ao virar da esquina, fora de vista.


Entretanto, algo se passava com o João. Não se sentia bem e, jumarear as cordas de escape, representou um esforço extremo. Mais tarde, em tom de graça o João dizia: “Estivemos para chamar uma equipa de resgate, tão mal me encontrava!” Nessa noite a febre atacou em cheio e o termómetro disparou para uns preocupantes 39º. Pensaram em adiar a aventura mas, o Fernando tinha-se esquecido da sua carteira com toda a documentação, no interior do petate, que se encontrava pendurado na segunda reunião da via. Os caminhos do azar tinham-se encarregado de obrigar os escaladores a retornar no dia seguinte. No mercy!
Felizmente, no dia seguinte, a febre do João tinha baixado e, lançaram-se de novo ao ataque embora a horas mais tardias. Desta feita, adoptaram outra técnica de acesso. Um pequeno bote de borracha, providencialmente deixado junto ao Fojo da Arrábida, serviu como veículo para chegarem à base da parede. Remar até ao grande projecto revelou-se uma alternativa bem mais divertida que a trabalheira de subir e descer as cordas fixas na falésia.


"Isto sim, é um acesso!"


Apesar das intenções iniciais de “ir apenas para recuperar a carteira do Fernando”, quando alcançaram a reunião, não resistiram ao factor: “já que aqui estamos.”
Era a vez do Fernando e calhou-lhe enfrentar o grande tecto que prometia uma dura luta de escalada artificial. Lentamente, laboriosamente, os pequenos friends e entaladores foram sendo instalados, testados e utilizados. Ía nascendo uma bonita costura que atravessava o grande tecto.


O Fernando a atacar o terceiro largo. Logo a seguir: "Artifo by the book!"


De repente: “Um friend solta-se e lá vai um Fernando voador para o vazio! Deu para perceber bem a sua emoção e foi uma bela imagem! Felizmente o entalador seguinte (embora precário!) susteve bem a queda. Depois de respirar um pouco e de se recompor, o rapaz lá voltou à sua tarefa… com vontade!”
Como as “conquistas” em técnica de escalada artificial são morosas, o dia “útil” terminou e, um perne estratégico serviu para fixar a corda, descer e deixar tudo preparado para a seguinte jornada.
Um bom jantar, algumas anedotas e uma noite bem dormida, precederam um novo ataque à parede prometida.


O Fernando, logo após o voo inesperado.


Agora, os escaladores estavam decididos a ultrapassar o grande tecto. As dificuldades mantinham-se austeras e encontrar boas fissuras, buracos e buraquinhos, revelou-se a maior dificuldade da missão. “No segundo dia, a progressão foi bem mais lenta do que no primeiro dia, pois havia partes de rocha bem instáveis e o Fernando demorou a conseguir superar alguns obstáculos difíceis mas, finalmente, conseguiu dobrar o tecto. Nesse ponto não via, nem ouvia o Fernando. Só via chover televisores e outros elctrodomésticos, até que, por fim, lá ouço o grito há muito esperado.” O Fernando tinha conseguido alcançar um nicho adequado para montar a reunião. 


Sessão de "jumareanço" com ambiente.


O Fernando, atarefado com a "conquista" do grande tecto da via.


O João, começou a desmontar as coisas e a preparar-se para iniciar a escalada atrás do seu companheiro. «Por meu lado, pensava que tinha a tarefa facilitada por ir em top mas, foi mais difícil do que esperava. A sujeira continuava a ser muita e o “desplome” era muito pronunciado, pelo que se tornava difícil a recolha do material... fui obrigado a colocar novos pontos várias vezes, para poder recolher os anteriores!»
Vencido o grande tecto, faltava o resto da parede. O dia esgotara-se e já não havia tempo
disponível para mais escaladas, limpezas e emoções verticais variadas. A conclusão do projecto foi adiada por uma semana.


"Aí vai o Petateeee!"


O João em segundo de cordada, a desmontar a duras penas o equipamento de progressão.


O rapel de categoria, desde a ultima reunião do dia.


Como forma de agilizar a logística de acesso, os dois escaladores resolveram aceder à sua última reunião através de um rapel diagonal desde o topo da falésia. A abertura do lance seguinte era da responsabilidade do João. Após uma curta tirada nervosa e algo exposta, que serviu como acesso aos lances seguintes, o João escalou um diedro e continuou por um esporão de presas excelentes que constituíram “momentos de puro prazer!” - apesar da sujidade sob a forma de uma areia fina, tipo farinha, que cobria praticamente todas as presas. A parede mantinha um cariz de extra-prumo e, essa característica não permitia que a água da chuva a lavasse de uma forma natural. Mesmo assim, o João conseguiu encadear devidamente o lance e, algum tempo depois, alcançou a pequena plataforma de reunião que ficou equipada com dois pernes.


O João, a escalar a pequena mas, exposta, travessia de acesso à ultima parte da via.


O João a escalar o belo quinto lance da via.


Uma das reuniões características.


Pouco depois de se juntar ao João, o Fernando começou a organizar o material no arnês, preparando-se para enfrentar o lance seguinte. «Sabe-se lá porquê, ao Fernando saíram sempre os largos em que foi necessário recorrer às “artimanhas” do artificial». Horas depois, estava ultrapassada uma placa bonita… e dura. O João resolveu experimentar “liberar” aquele lance. «Em top-rope, consegui realizar todos os movimentos em livre, embora sem encadear, pois tem um “crux” bastante duro que é preciso ler bem (algo difícil, ao mesmo tempo que recolhia o material). No entanto, deu para entender que nunca será menos de 6c+ ou 7a.»


O Fernando, no penultimo largo. A dificuldade mantinha-se constante.


Com o decorrer das horas, fazia-se tarde e, um último lance bastante mais fácil marcou o final da escalada. O abraço de “cume” assinou o termo daquela aventura vertical. “Neste último largo já não há fotos. Estávamos tão alegres que nem nos lembrámos de fazer uma foto de cume! Mas registamos na memória esses momentos bem passados.
Foi com um belíssimo pôr-do-sol que regressámos a casa!”


Paulo Roxo


Ficha Técnica

PADARIA
João Gaspar e Fernando Pereira entre os dias 26 e 29 de Abril e 5 de Maio de 2015


Como cada um dos lances têm a sua personalidade, resolveu-se atribuir-lhes nomes próprios.

L1. “Broa de Calcite” – 30m, 6c/7a
L2. “Figueirinha Implacável” – 15m, 6b
L3. “Febre Artifóide” – 25m, A2+/A3
L4. “Largo Curto” – 10m, V
L5. “Largo da Farinha” – 40m, 6b+
L6. “Largo Mitrado” – 25m, 6c+/7a
L7. “Sandochas” – 25m, V+/6a


Material:

Dobrar friends até ao nº4, Micro-friends essenciais, Jogo de entaladores, Tricams úteis, Fitas com fartura e estribos.
Não será má ideia levar um pequeno petate e uma “tag-line”.


Notas:

- As distâncias não foram medidas com exactidão mas a via terá aproximadamente 170 metros com as respectivas curvas. Na vertical, a parede tem uns 120 metros.
- Instalou-se 13 pernes no total. 1 na R1, 1 à chegada da R2, 2 na R2, 1 à saída da R2, 1 a meio do tecto, 2 na R3, 2 na R5, 1 a meio do L5, 2 na R6.
- Foram usados alguns pitons no L1 e para reforço da R4, todos foram removidos pelo que será aconselhável (não obrigatório) levar uns “pitonitos”…
- Os aberturistas acreditam que não irão surgir muitos voluntários para repetir a via, no entanto, consideram que a “Padaria” vale a pena pela aventura. Acreditam que pode ser forçada em livre depois de passar muita gente (!) e/ou ser convenientemente limpa.

Pede-se encarecidamente que, se por algum acaso, passar alguém por ali: Feedback, please!


Croquis:




Todas as fotos são da autoria do João Gaspar e Fernando Pereira