INESCALADAS 2018
ACTO DOIS
O campo II foi instalado aos 5550 metros. Conseguimos
encontrar um lugar razoável na moreia do glaciar, aproveitando o pedregal de
xisto desprovido de neve. Pelo menos durante a noite, evitaríamos o frio vindo
do chão de gelo que tantas vezes se entranha nas costas, atravessando
colchonetas e sacos de dormir.
Campo II (5550m). A "Shan-Ri" é a montanha que se avista por cima da cabeça do Pedro Costa, em pé.
Horas antes, tínhamos desmontado o campo I - voltando a
carregar 25kg de equipamento na mochila de cada um - e atravessámos a primeira
parte do glaciar desconhecido, que escorrega desde os picos misteriosos que
cercam o vale. O nosso ritmo lento de ascensão foi por vezes interrompido por
passagens obrigatórias de rios que jorravam impetuosos, para se perderem de
vista, engolidos por algum túnel, escavado pela própria água no gelo do
glaciar.
Rios gelados para saltar.
Desde o campo II já se avistavam todas as montanhas do vale.
Analisando o panorama, a decisão sobre que montanha tentar foi rapidamente
tomada. Ficaram fora da equação dois picos bastante secos e com passagens
rochosas com um aspecto, no mínimo… trabalhoso! Sobrava a penúltima montanha,
com uma aresta convidativa e uma face de neve e gelo que não aparentava grandes
dificuldades.
No dia 31 de Agosto, iniciámos a aproximação às 4.30 da
manhã ainda meio estremunhados pela noite mal dormida.
O glaciar revelou-se bastante ameno, sem qualquer crevasse
que pudesse constituir algum perigo. No entanto, o facto do glaciar ser tão linear
levou a um engano de percepção da distância. “Creio que nos vamos colocar na
base da montanha em uma hora, hora e meia.” Comentara convencido, na tarde
anterior. No final, tardámos três horas a alcançar a base da montanha.
O glaciar muito pacifico não ofereceu qualquer dificuldade.
Ao mesmo tempo que mastigávamos uma barra energética de
gosto duvidoso, observámos a parede de gelo que se erguia por cima das nossas
cabeças. A via que iriamos seguir foi escolhida rapidamente e cruzava a face
norte da montanha.
A primeira rampa de gelo foi escalada em “ensamble”
utilizando uma táctica de alpinismo pouco ortodoxa. Eu liderava a primeira cordada
e ia colocando parafusos de gelo como protecções intermédias, o João Lopes
retirava a corda dos mosquetões mas, não retirava os parafusos que seriam
aproveitados pelo Tiago Faneca que liderava a segunda cordada. O Pedro Costa
estava encarregado de desmontar tudo.
Os primeiros 100m de via foram realizados em "ensamble", com alguns parafusos de gelo intermédios como segurança.
O Pedro Costa, quase a alcançar a reunião.
Após cem metros montei uma reunião num
esporão rochoso com umas plataformas exíguas que pareciam constituir um ponto
de repouso razoável, para duas pessoas! Organizar quatro tipos naquele poleiro
transformou-se numa tarefa de difícil resolução e, claro está, as cordas não
tardaram a ficar enroladas a toda a gente, aumentando assim a confusão. “Epá,
levanta aí essa perna!” Ordenava um. “Passa a corda por cima da cabeça… chiça,
ficou presa na mochila… outra vez!” Dizia outro. “Ei! Não pises a corda com
esses crampons!” Alarmava o terceiro. Assim por diante e no meio do pequeno
caos instalado, perdemos imenso tempo na primeira reunião da via.
O João Lopes num momento de repouso na exígua reunião rochosa.
Finalmente,
saímos do novelo de cordas e reatámos a ascensão. Para tentar ganhar tempo,
resolvi arfar um bocado e acelerar a escalada dentro dos limites físicos do
grupo. Com efeito, a ascensão retomou um ritmo normal e algumas horas depois
erguíamo-nos na aresta leste, após escalar a secção mais técnica da via. A
parede norte já estava no papo e faltava ultrapassar a aresta de neve.
A escalada prosseguia. Aqui numa reunião mais alta, antes de alcançar a aresta leste da montanha.
“Ali, muita atenção! Caso alguém escorregue, deve dar o
alarme com um grito forte para que o companheiro de cordada tenha tempo de
reacção. A reacção é saltar para o outro lado da aresta! Lembrem-se, têm mesmo
que saltar!” Dei um enfase especial à última mensagem, pois em caso de tropeção
a única forma de salvação seria o salto controlado do parceiro para o lado
oposto da aresta. Ao nível técnico, contudo, parecia uma travessia muito fácil.
Uma vez mais, dividimo-nos em duas cordadas e a travessia
realizou-se sem sobressaltos. Todos desfrutámos da beleza e da estética daquela
aresta imaculada.
Após uma última rampa de gelo, atingimos o cume rochoso da
montanha. O GPS marcava a altitude de 6197 metros. O céu estava limpo e não
corria uma brisa. Avistavam-se montanhas a perder de vista e ficámos ali um
bocado a desfrutar o momento. Após aqueles instantes de deleite voltaram os
pensamentos mais práticos. “Foto-cume! Vamos à tradicional foto de família!”
Todos no cume aos 6197m. Da esquerda para a direita: João Lopes, Pedro Costa, Tiago Faneca e eu.
Observámos cuidadosamente o cume e não encontrámos qualquer
vestígio de anteriores ascensões. Não descobrimos nenhuma peça de equipamento
abandonado, ou qualquer mariola de pedras erguida. Aparentemente não existiam
provas de outras visitas.
Solene comuniquei: “Parabéns! Não é todos os dias que se
escala uma montanha virgem!”
Para mim, este não era o primeiro cume virgem mas, para o resto do grupo, esta montanha correspondia a uma estreia.
Representava não apenas uma estreia nos Himalaias como, tinham conseguido
alcançar o cume de uma montanha nunca antes escalada.
A “conquista” foi celebrada com alguma contenção pois todos
sabíamos que ainda faltava sair dali. Por vezes, as descidas são maliciosas!
A estética aresta leste durante a descida, para a direita na foto caía a face norte da "Shan-Ri".
Destrepámos toda a aresta leste até alcançar um colo entre
algumas formações rochosas muito decompostas. Encontrar um bom ponto onde
equipar a primeira reunião de rapel foi um pequeno teste para os nervos. O
relógio não parava de contar e não convinha mesmo nada ser apanhado pela noite
a meio do processo de descida. Finalmente, no meio de um pequeno esporão de
rochas empilhadas, descobri uma pequena fissura onde abandonámos um
micro-friend e um entalador. “Ok! Mais que suficiente para sair daqui!” Algum
tempo depois, aproveitando o lusco-fusco de fim de tarde, após três rapeis,
alcançámos o glaciar e o final das dificuldades. Eram as dez da noite quando
chegámos às duas pequenas tendas do campo II.
Agora sim, podíamos arrastar-nos para dentro dos sacos de
dormir com aquela sensação real de… “Missão cumprida!”
Paulo Roxo
Resumo e croquis da ascensão
Após muita investigação não foi
encontrada qualquer referência à montanha que escalámos. De comum acordo
decidimos baptizar o pico de “Shan-Ri”. Na língua do Ladakh “Shan” significa
Leopardo das Neves e “Ri” significa Pico. À nossa linha de ascensão chamámos
“North Face Indirect (300m)” que, como o próprio nome indica, escala a face
norte, após a qual segue a aresta leste até ao cume com 6197m, anteriormente
virgem.