quarta-feira, março 14, 2007

A SERRA DA ESTRELA EM PERIGO!
Acabei de ler um livro maravilhoso com o prosaico titulo: “Quatro dias na Serra da Estrela”.
Pergunto-me quantos terão lido este livro? Esta pergunta não tem nenhum cariz de ironia pseudo-intelectual do tipo: “eu cá leio muito mais que vocês, seus incultos!”. Na verdade, há alguns meses que não pegava num livro com a decisão de o consumir até ao fim. Até que me surgiu este, sobre um “passeio” pela nossa serra mais alta.
De banal este livro só tem o titulo. Foi escrito muito antes de eu ter nascido, ou dos meus pais terem nascido. Muito antes das estradas que hoje rasgam, implacáveis, a Serra da Estrela. Antes mesmo da segunda grande guerra, antes até da primeira guerra mundial.
Este documento surgiu numa época de inocência e grandes questões fundamentais.
Data do ano 1884 e, o seu autor foi Emigdio Navarro.

Escrito num português arcaico “Quatro dias na Serra da Estrella” conta a historia de três distintas personagens que resolvem organizar uma “expedição” à serra mais alta do país. Naqueles tempos idos a Serra da Estrela estava pejada de mistérios e lendas. Por exemplo, pensava-se que poderiam existir neves eternas, à semelhança de outras montanhas europeias. De certa forma ainda existiam, uma vez que esta actividade decorreu em finais de Agosto e, na vertente norte do Cântaro Gordo foram estes senhores encontrar alguns neveiros por derreter. A prova de que o clima era bastante mais rigoroso do que nos dias de hoje.
Talvez a lenda mais interessante e inesperada tenha sido a da Lagoa Escura (acima da Lagoa Comprida). Dizia a lenda que, nesta pequena lagoa surgiam destroços flutuantes de navios naufragados no mar e, de quando em vez, corpos de marinheiros afogados. A explicação para estas insólitas aparições provinha da teoria popular (decerto fruto da imaginação de pastores) de que existiria um canal directo entre a Lagoa Escura e o oceano. Esse canal seria habitado por monstros malignos (ao bom estilo do Loch Ness, na Escócia) que se dedicavam a atacar as infelizes almas que, num acto de impensável ousadia, se banhassem nas águas negras da lagoa.
Estas e outras histórias curiosas foram escritas há mais de cem anos. Algumas com uma dose de ingenuidade própria da época, outras com uma clarividência intemporal.
O que mais surpreende talvez seja o respeito e sensibilidade pela montanha, transmitidos pelos intervenientes desta aventura, numa altura em que os valores ecológicos e ambientalistas não existiam, nem sequer como palavras no dicionário.
A leitura deste livro obrigou-me a reflectir, de novo, sobre a Serra da Estrela dos nossos dias. Uma serra avassalada e ameaçada.



Aproveito para dizer que não me considero um ecologista. Não sou santo nem o dono da razão absoluta. No entanto, gostaria de deixar a minha opinião com o texto que se segue, talvez porque dizem que a arma mais poderosa é a das ideias, formuladas através das palavras.

Actualmente a Serra da Estrela está cortada por uma rede de estradas, algumas perfeitamente inúteis, como a ligação Piornos-Unhais da Serra e a recentissima Portela do Arão-Lagoa Comprida.
Para esta ultima dirijo a minha perplexidade. Porquê? Para quê? Em falta de uma justificação coerente diria que esta estrada constitui uma provocação, uma prova asfaltada de prepotência, um estereótipo do “eu quero, posso e mando”.
Arriscaria até dizer que a própria estrada da Torre não fazia ali falta nehuma. Neste caso contra mim falo, porque também a utilizo. Não me excluo de uma certa hipocrisia mas, sinceramente penso que se a estrada da Torre fosse eliminada a qualidade da Estrela como monumento natural subiria em flecha. Muitos dos problemas de impacto que actualmente assolam a serra seriam, muito provavelmente, drásticamente reduzidos.
E, por falar em Torre. No outro dia tive de utilizar uma das suas casas de banho. Já não entrava naquele edifício há muitos anos. Já me tinha esquecido daquela barraca de tijolo, sombria e húmida. É realmente deprimente. É realmente uma grande vergonha das alturas.
Ao ser originário da cidade (embora assíduo da serra) coloco-me numa posição de visitante observador. Não percebo nada de arquitectura paisagística mas, penso que até um cego consegue ver que as construcções da Torre, descabidas no tempo e no espaço, não abonam absolutamente nada em favor da qualidade turística da região. Quem dera que houvesse algum iluminado com o suficiente poder politico para mandar abaixo (literalmente) aquele aldeamento decadente, verdadeiro símbolo “Okupa” deste país de ideias curtas.
Logo temos o “must” do orgulho nacional: a fabulástica “”estância de esqui”” da Turistrela.
Devo dizer que não tenho absolutamente nada contra o esqui. Também já esquiei bastante (e espero vir a esquiar mais), sobretudo quando residi em Benasque, no coração dos Pirinéus e, também ali tive a oportunidade de intervir contra os planos de ampliação da estância de Cerler, ao colocar uns “gatafunhos” a que chamo rubrica, num baixo-assinado que circulou em toda a região.
A descoberta, por mero acaso, de uma revista limitada destinada a agências e a profissionais chamada “Viajar”, fez-me pensar sobre o destino da nossa Serra da Estrela.
Na referida revista de Dezembro passado, vem um artigo sobre os investimentos colossais a serem brevemente aplicados na região da Estrela: “O governo aprovou um pacote de investimentos turísticos da ordem dos cem milhões de euros para a região da Serra da Estrela, englobando um aldeamento de montanha nas Penhas da Saúde com uma telecabina de ligação à Torre, a ampliação da estância de esqui e a construcção de vários hotéis.”. Como se isto não bastasse também vem anunciada, com “pompa e circunstância” a quantia de 75 milhões de euros originários do acordo entre a Vodafone e a Turistrela, para serem gastos, num prazo de dez anos, pela auto-proclamada dona e senhora da nossa serra mais alta, a empresa Turistrela.
Não será preciso ser um físico nuclear para perceber o grande paradoxo que estes negócios de “alto gabarito” representam. Ou seja, numa época de aquecimento global, em que cada vez neva menos, em que ao nível mundial VERDADEIRAS estâncias de esqui já estão a encerrar as suas portas, o governo português (e outras entidades) entregam assim de mão beijada vários milhões de euros a um determinado senhor para que este rasgue (ainda mais) a serra, de forma a criar mais terreno “esquiável”.
O grau de inteligência inerente a este “investimento” é algo que me escapa por completo. A lógica destes actos ultrapassa o absurdo. “Não neva, portanto… vamos ampliar as pistas de esqui… serra abaixo!” – Surrealista!
Seria anedótico se, na verdade, estas atitudes burguesas não tivessem uma conclusão trágica para a nossa querida serra. É que, quando todos finalmente perceberem que a Serra da Estrela não tem quaisquer condições para o esqui alpino, então já será tarde demais. Quando o resto dos “tugas” finalmente entender que a serra é, de facto, uma montanha de pequenas dimensões, sem capacidade espacial para megalomanias de novos-ricos, já existirá a tão apregoada “aldeia de montanha”, já se terá inaugurado o hotel no cimo do “Bunker” actualmente instalado junto aos teleskis e, já terão dilacerado irremediavelmente o granito milenar das encostas. Para quê?! Por um simples capricho!
Em toda a campanha de propaganda que tenho visto sobre o esqui na Estrela a inflação da realidade está sempre presente. Note-se o que afirmam no referido artigo da “Viajar”: “Contado com nove pistas…das quais uma preta, quatro vermelhas, duas azuis e duas verdes, a estância está suportada por cinco meios mecânicos…”.
Para quem já faz (ou fez) esqui (à séria!) isto só pode ser tomado como uma piada (de mau gosto). Pista preta?! Quatro pistas vermelhas?! Num terreno quase horizontal? Como é possível? Será que alguém que realmente esquie e que tenha visitado a serra, acredita na existência destas pistas?
Aparentemente, toda a campanha de publicidade em redor das “pistinhas” da Turistrela visa um publico muito menos especializado mas, com grande poder económico. O grupo de mercado alvo está claramente preenchido pelo turismo “pimba” de pequenos burgueses adinheirados. Gente de bolsos cheios que ainda considera o esqui como um desporto “in” reservado apenas ao “Jet-set”. Pessoas que ignoram (ou fingem ignorar) que no estrangeiro, nas estâncias de verdade, já qualquer um pode esquiar… eu incluído, que não possuo um tostão furado.
No artigo da “Viajar” e, rematando em beleza, ainda podemos ler que “(a estância Vodafone-Turistrela) conta igualmente com excelentes condições para a prática de Mushing, trenós puxados por cães, safaris nocturnos e diurnos em motos de neve…”. SAFARIS NOCTURNOS E DIURNOS EM MOTOS DE NEVE! Que bonito! Imaginemos o cenário: um dia estamos nós a apreciar a bela paisagem, característica aliás de um local classificado como parque natural, quando, de repente… uma fantástica, potente e (sobretudo) radical, moto de neve surge no horizonte acelerando furiosamente e a derrapar por entre as pedras de granito…
Todo o artigo da “Viajar” vem sublimar o ridículo, o espírito pobre, medíocre e desprovido de imaginação.
Não se avizinha um futuro brilhante para a Serra da Estrela.
Na minha ingenuidade de leigo não entendido nem doutorado, eu pergunto: Não seria muito mais lógico e sensato se, em vez de se gastar rios de dinheiro na construcção de raiz de uma absurda “aldeia de montanha” esse mesmo dinheiro fosse aplicado na demolição da favela de Penhas da Saúde e, na conservação das aldeias realmente antigas? Não seria muito mais lógico e sensato canalizar a fortuna (bastava metade) prevista para a ampliação da “” estância””, para a demolição dos “mamarrachos” da Torre e para o desenvolvimento de um turismo de qualidade e bom gosto, mais virado para o ambiente?
A não ser que esperem uma nova glaciação nos anos vindouros (possibilidade um tanto ou quanto remota – creio), a edificação de infra-estruturas imensas em tamanho e idiotice culminará na destruição de uma das serras mais espectaculares deste país.

É com nostalgia que recordo as descrições de Emigdio Navarro que evocam uma época na qual nunca vivi. Uma época em que no cimo da nossa mais alta montanha ainda era possível cheirar o vento.




Paulo Roxo

terça-feira, março 06, 2007

Clássica de 1980

Clássica de 1980

A maré sobe. Tenho de ser rápido para que todos tenhamos tempo de entrar na via.
Mas, como ser rápido neste terreno e com esta exposição?
Consegui colocar dois friends e um entalador. O primeiro friend e o entalador encontram-se juntos e constituem protecções razoáveis. O segundo friend, uns bons três metros mais acima não serve sequer como consolo psicológico.
Agora tenho alguns metros de escalada comprometida e rocha duvidosa, sem possibilidades de proteger.
Olho para baixo e apercebo-me da forte possibilidade de uma queda no caótico chão de blocos.
A maré sobe. Hesito. Tenho de fazer algo.
Minutos antes e alguns metros mais abaixo protegera num piton completamente corroído. Este pequeno artefacto representa uma prova moribunda da primeira ascensão desta via.
Dias antes, a Daniela Teixeira, o Miguel Grillo e eu, resolvemos repetir a “Directa Integral da face leste da Ursa” (Cabo da Roca), aberta no longínquo ano de 1980, por Paulo Alves, Vasco Pedroso e “Faña”.
Agora, à medida que escalava o primeiro largo não parava de pensar na audácia de Paulo Alves, quando se meteu, à vista, nesta mesma linha vertical, há mais de 25 anos, munido apenas com alguns pitons e quatro entaladores bicoins (!).
Nós, estamos munidos com bons pés de gato, vários friends de ultima geração e cordas de resistência mais que comprovada. Ou seja, material recheado de homologações Europeias.
Mesmo assim, não sei bem o que fazer nesta passagem perigosa.
Finalmente, resolvo arriscar dois novos passos. Coloco um piton precário. Iço a máquina e, instantes depois, estava colocado um brilhante e resistente perninho.
Cómoda solução, não disponível na primeira ascensão.
Com a autorização de Paulo Alves a nossa intenção era reequipar apenas as reuniões e alguma passagem mais exposta. A ideia básica era ressuscitar esta via histórica, reactivando-a para futuros pretendentes. No final da nossa escalada ficaram equipados os relés e o referido perne do primeiro lance.

O Paulo Alves iniciou as suas andanças verticais muito antes de 25 de Abril de 1974. Continua hoje um escalador muito activo e no seu curriculum conta com vias abertas nos quatro cantos deste país. É de facto difícil referir uma parede onde este pioneiro não
tenha posto as mãos, em algum momento do seu longo historial de escalador.
No Cabo da Roca inaugurou inúmeras vias.
Foi o primeiro a escalar o emblemático rochedo da Noiva, pela sua via “Normal”, hoje em dia a mais repetida.
No dia 14 de Junho de 1980, Paulo e companhia continuaram a sua aventura na decomposta face leste da Ursa. Os três escaladores lá foram subindo cuidadosamente, aproveitando a linha mais lógica da parede. Terminaram às 19.30, no elegante cimo da torre de calcário, após sete horas de escalada arriscada e comprometida.
No croqui descritivo o Paulo Alves refere a existência de “pedra solta e rocha em pó nalguns locais”. Escreve também: “escalada bastante vertical, exposta e interessante”.
A sua apreciação geral retrata em três simples palavras todas as vivências, emoções e características desta ascensão.
Vivências e emoções garantidas a futuros repetidores.


Nota importante:
Para realizar qualquer das vias na Pedra da Ursa é necessário consultar uma tabela de marés, pois a entrada e saída só serão possíveis com a maré baixa. Durante o período compreendido entre as baixas a Ursa torna-se numa ilha. Mais um atributo de interesse para um aventureiro!

Tabela de marés:

http://www.hidrografico.pt/wwwbd/Mares/MaresPortosPrincipais.asp

Paulo Roxo



Duas fantásticas fotos da abertura da via. Note-se os pés de gato (!) e o equipamento utilizado!:

1980

1980

Repetição e reequipamento (18Fev2007):

A mais bela das praias!

A inevitável fotografia

A Ursa imponente (e a maciça Noiva por detrás)

O nervoso 1º lance

Paulo no 1º lance

Daniela também no 1º lance

Miguel em mais uma prespectiva deste lance



Terceiro largo

Ultimo lance

Sol e muito (e frio) vento no cimo vertiginoso