quarta-feira, outubro 21, 2020

Zé do Desterro

ZÉ DO DESTERRO


A Daniela Teixeira na "Variante dos enganados". Uma via variante mais dificil da "Zé do Desterro".



Há mais de 100 anos, não se concebia uma “visita” à Serra da Estrela sem a contratação de um guia de montanha (por vezes mais do que um). Geralmente, esses guias, eram pastores ou caçadores, conhecedores profundos de um território selvagem e desconhecido. Os seus “clientes” provinham quase sempre de um extrato social elevado, erudito e privilegiado. Muitos eram médicos, políticos ou pessoas de grande influência. Na verdade, naqueles tempos, só as pessoas abastadas possuíam a disponibilidade financeira (e tempo) para investir em “proezas” de logística morosa e complicada, como uma travessia na Serra da Estrela. No entanto, apesar de fazerem parte de uma certa burguesia, não deixavam de possuir um forte espírito de aventura e sacrifício, aceitando, sempre que necessário, as agruras de uma tempestade ou de um bivaque debaixo de um qualquer bloco de granito, como um qualquer pastor serrano.

Estas “expedições” envolviam sempre a contratação de cozinheiros, ajudantes, aluguer de cavalos e de equipamento para acampar. Inevitavelmente, a contratação de guias fazia sempre parte do orçamento imprescindível.


"Exploradores" de 1912. Foto retirada do livro "Aos Montes Hermínios" de Duarte Rodrigues.


Um desses guias foi José Paschoa (nome original), mais conhecido como “Zé do Desterro”.

Zé do Desterro foi um dos primeiros empregados da central de electricidade, inaugurada em Dezembro de 1909, na Sra do Desterro (São Romão) e daí proveio a sua alcunha. Zé do Desterro dividia o seu tempo como fiscal na “Fábrica Eléctrica” (como era referida a central nos primeiros anos do séc. XX) e em explorações de caça (mas, também lúdicas) no território bravio da Serra da Estrela, calcorreando a pé muitos quilómetros, durante as quatro estações do ano, incluindo a das neves.


O guia José Paschoa. Esta será quiçá, a única foto conhecida de Zé do Desterro.


Foi um dos guias de montanha contratados pelo célebre Dr. Sousa Martins, Emygdio Navarro e Carlos Tavares, durante a sua travessia na Serra da Estrela em 1883, celebrizada no livro “Quatro dias na Serra da Estrella”.

Zé do Desterro constituiu também, muito provavelmente, o corpo de guias contratados para a famosa Expedição Científica à Serra da Estrela de 1881.


Dr. Sousa Martins, Emygdio Navarro e Carlos Tavares, aquando da sua travessia da Serra da Estrela em 1883.


Existem também algumas referências a José Paschoa no pequeno livro de nome sugestivo: “Impressões de uma excursão, Serra da Estrella (Subsidios para o desenvolvimento do alpinismo)”. Esta foi uma actividade liderada por Evaristo Faure em Agosto de 1911, que contou com a presença de Zé do Desterro, como guia oficial da “expedição”. 

Os guias da Serra da Estrela existiram há muitas décadas e fizeram parte de um legado histórico, de certa forma, perdido no tempo. Eram pessoas que serviam como apoio imprescindível a todos quantos desejassem conhecer a serra de uma forma mais profunda e aventureira. A simbiose entre o guia montanheiro e o cliente erudito forjou o espírito precursor do montanhismo actual, contemporâneo da realidade vivida em outras montanhas europeias, onde o Alpinismo respirava a sua época de ouro.


Capa do livro "Aos Montes Hermínios" de 1912. Obra pioneira que celebra o "Alpinismo" na Serra da Estrela.


 ZÉ DO DESTERRO (245m, V/V+)


Em técnica de escalada em solitário, aquando da "rectificação" e finalização da via "Zé do Desterro".


A via de escalada aqui apresentada é mais uma singela homenagem a estes guias de montanha que, em tempos idos, cruzaram a Serra da Estrela, na companhia dos seus clientes “da cidade” de espírito aventureiro, encantados com as terras altas de granito e neves sazonais.

É uma via relativamente longa e de dificuldade “moderada”.

Sob o ponto de vista da escalada pura, esta pode decepcionar um pouco quem procura a verticalidade e a continuidade, no entanto, a via apresentada pode constituir uma escalada adequada para os iniciantes nas técnicas de escalada tradicional, dita “clássica” ou, para quem deseje passar umas horas bem-dispostas de aventura amena, em equilíbrio com a natureza.

 

Durante a abertura da "Variante dos enganados". Variante mais dificil da "Zé do Desterro".


COMBINADO DOS GUIAS

 

Os escaladores mais famintos podem combinar a “Zé do Desterro” com a via “Guia Lau” (http://rppd.blogspot.com/2020/09/guia-lau.html), no mesmo sector e de características semelhantes. Para esta proposta sugere-se a seguinte estratégia:

- Escalar a “Guia Lau”, deixando as mochilas ou excedente na plataforma da segunda reunião.

- Descer em rapel pela própria via até à plataforma da segunda reunião. Atravessar as plataformas até alcançar a base da “Zé do Desterro”.

- Escalar a “Zé do Desterro” até ao cimo, saindo pela estrada.


O Guia Lau em 1934. 


Realizar o encadeamento baptizado como “Combinado dos Guias” pode traduzir-se numa boa proposta para um dia de aventura “alpina” e, ao mesmo tempo, constituir uma excelente homenagem às personagens que ajudaram a enobrecer a história do montanhismo e da escalada na Serra da Estrela e no nosso país.

 

Paulo Roxo


Topos







quarta-feira, outubro 07, 2020

Cho-Oyu 2006, 14 anos depois

 CHO-OYU (8201m) - 2006

14 ANOS DEPOIS...


A Daniela Teixeira, no cume do Cho-Oyu, às 8h00 da manhã do dia 7 de Outubro de 2006.



Texto publicado a 10 de Outubro de 2006


No passado Sábado 7 de Outubro a Daniela Teixeira conseguiu alcançar o cume do Cho Oyu com 8201 metros de altitude realizando assim, o seu sonho de escalar uma montanha com mais de 8000 metros.

Contudo, a tarefa não foi fácil.
Em primeiro lugar, a logística do Campo base esteve muito longe do razoável. Tendas de péssima qualidade e cadeirinhas da “pré-primária” impediram uma estância cómoda nos vários dias passados no Campo base. A alimentação também se tornou num grande problema. Não variava muito das batatas e massa, ou massa com batatas, enquanto as expedições vizinhas se deliciavam com variados menus.
O mau tempo que se abateu sobre a montanha durante vários dias encheu o Campo base de neve transformando o cenário numa autentica paisagem invernal. Bonito espectáculo para as fotografias mas, absolutamente impeditivo no que tocou a ascensões alpinas.
Várias foram as vezes necessárias para escavar a neve acumulada sobre as tendas.
Foi durante esses dias de intensas nevadas que a Daniela se sentiu mais desmotivada e deprimida.
As más condições do seu acampamento e o mau tempo perigaram a sua ascensão, inclusive a própria aclimatação.

Com o retorno do bom tempo muitas equipas iniciam a subida.
A Daniela decide tentar a ascensão ao campo 1 (6400 mts) e ao campo 2 (7200 mts), de forma a realizar um mínimo de aclimatação.
Para ela era o “agora ou nunca”, confessando não sentir possuir energia (e tempo) para realizar uma segunda tentativa.
No dia 27 de Setembro, sem companheiro de cordada, subiu ao campo 1. Determinada a não utilizar o apoio de um Sherpa carregador (ao contrário da maioria das expedições que contratam Sherpas até ao campo 1) carregou a sua “mochilinha” de 20 quilos, chegando ao local de acampamento bastante cansada. Decidiu então repousar um dia nesse local.
No dia seguinte, igualmente só (sem companheiro de cordada) cruzou a barreira de seracs (considerada como um dos “crux´s” da via) e alcançou o campo 2, ultrapassando os 7100 metros, o seu limite pessoal de altitude (Korjeneveskaya 7105 mts, em 2004). Aí dormiu para, no dia seguinte, retornar ao campo 1 e, posteriormente ao campo base.
Desta forma e rapidamente, a Daniela resolveu o seu processo de aclimatação.

Entretanto os dois Gregos com quem partilhava o campo base decidem desistir da montanha e voltar para Katmandu. Após desagradável discussão e partindo do principio simplista (e pouco cavalheiresca!) de que a maioria vence, os dois Gregos retiram e com eles foi também toda a logística, as tendas, o cozinheiro e o ajudante.
Por sorte a Daniela recebe o convite da simpática equipa Filipina para que se una a eles. A partir desse momento decide abandonar a sua tentativa em solitário juntando-se aos Filipinos na sua ascensão.
Os Filipinos possuem carregadores e utilizam oxigénio artificial. A Daniela não recorre a nenhum destes apoios.


Um dos muitos dias de tempestade no campo base do Cho-Oyu.


No dia 4 de Outubro reiniciam a ascensão.
No dia 5 encontram-se no campo 2. A Daniela reporta: “Ontem subimos ao campo 1 com muito mau tempo. Hoje atingi o campo 2. Estou exausta. Não sei como vou conseguir fazer cume!”
O Vitor Baía, com o seu valioso apoio desde Portugal, informa através de mensagens para o telefone satélite que a zona do Cho Oyu vai estar sujeita a ventos fortes da ordem dos 40 a 50 km e, “talvez mais”, acrescentando: “não subir no dia 7!”
A Daniela viu-se confrontada com uma decisão crucial. Subir ou... descer abandonando a montanha.
Apesar das adversidades e, sentindo ser a sua ultima oportunidade, decidiu por fim realizar uma derradeira tentativa.
Acompanhando os Filipinos (ou acompanhada pelos Filipinos) na madrugada do dia 7, iniciou a penosa ascensão desde os 7200 metros.
Após a banda rochosa que constitui a ultima barreira de dificuldades, o Cho Oyu perde inclinação apresentando uma enorme extensão até ao cume, técnicamente fácil mas, psicológicamente arrasadora. É nesta fase que muitas equipas desistem. A elevada altitude (superior aos 8000 metros) e a grande distância a percorrer minam a moral e energia dos alpinistas. Aqui, a força de vontade é crucial jogando a cartada fundamental. Foi aqui que os Filipinos decidiram desistir e voltar para baixo (nota: imprecisão corrigida pela Daniela no texto seguinte).
Após dificeis momentos de dúvida e, a partir dessa altura sem companhia, a Daniela resolveu continuar.
Pensando ainda faltar duas horas para alcançar o cume sente que se encontra muito perto do seu limite de resistência.


A tenda de campo base da Daniela, que foi várias vezes parcialmente soterrada pela neve, durante tempestades.


Vagarosamente, passo a passo, respirando profundamente, tentando inspirar o máximo do rarefeito ar, sobe um pouco mais e... ainda mais um pouco. Passam trinta minutos até que a inclinação positiva se transforma em negativa. Encontra-se no cume do Cho Oyu. Ás oito horas da manhâ de Portugal chegara ao cimo da Deusa Turquesa e, ao culminar do seu sonho.

Após dois anos de treino intenso e de uma tentativa fracassada (Shisha Pangma em 2005) a Daniela subiu o seu “8000” tornando-se, por acrescento, na primeira Portuguesa a escalar uma montanha com mais de 8000 metros.

Esta foi, sem dúvida, uma vitória pessoal bem merecida.
Para os que, de longe, acompanhámos assiduamente a sua aventura esta foi uma ascensão inspiradora. Uma história de determinação que decerto teremos a oportunidade de ouvir em primeira mão pela sua protagonista, quando pisar o solo Lusitâno.

Quanto à escalada em si, passo a citar uma mensagem publicada no site da expedição, que permite, em poucas palavras, explicar o destino desta realização:

“Momento histórico! Muitos parabéns!”

 

Nota: este foi o texto escrito antes da Daniela voltar ao contacto com o “mundo exterior”. Por isso saiu com algumas imprecisões. No dia 20 de Outubro (texto seguinte), a Daniela descreveu o que aconteceu no dia de cume, corrigindo as gafes anteriores.


Paulo Roxo

 

 

Texto publicado a 20 de Outubro de 2006

 

Dia de cume, 7 de Outubro de 2006


Pela meia-noite e meia, quando meti a cabeça fora da tenda, já 6 luzinhas tomavam a direcção do campo 3 enquanto a lua iluminava o caminho.
Os 2 rapazes filipinos estavam já também de saída.
A ideia do sherpa Lakpa, era dar a esta expedição oxigénio desde o campo 3.
Eu e as duas raparigas, acabamos por sair tardiamente, cerca das 2:30.
Preocupava-me já o atraso e o vento gélido que soprava não era um bom pressagio. Acelerei o passo e uma hora depois percebi que os dois rapazes filipinos estavam demasiado lentos para fazer cume. Cerca de 15 min. depois, 3 italianos baixavam demovidos pelo frio e pelo vento. Diziam que não se queriam meter em ventos de 70km/h que se faziam sentir acima do campo 3. 70km/h era exagerado, pois as previsões que tinha eram de cerca de 40 para o cume, pelo que decidi continuar. Perguntei-lhes por Julia, uma alpinista do grupo, disseram-me que teria decidido continuar com outros 2 italianos.


Campo 1.



Cheguei ao campo 3 cerca de três horas depois e decidi parar meia-hora para recupar, comer e beber algo. Aí, dois Espanhóis exclamaram: "Hola Portuguesa, vienes del campo 2?"
Respondi afirmativamente. Disse-lhes que queria descansar um pouco, mas ao ver que se estavam a preparar para subir resolvi aproveitar a "boleia". Não queria continuar sozinha.
O dia começou a clarear e acabei por sair do campo 3 com Rafael, que se viria a tornar em "São Rafael" pelo que se passou a seguir. Subíamos ao mesmo ritmo. Após uma vertente, chegamos a uma banda de rocha (a Yellow Band) que é necessário transpor.
Está tudo equipado com cordas fixas. No entanto, àquela altitude, cerca de 15 ou 20 metros de uma fácil escalada em rocha tornam-se num verdadeiro desafio, especialmente porque, para além do arfar, é necessário mexer em material, o Jumar (ascensor), com umas enormes e desajeitadas luvas de penas sem dedos e, no meu caso, com um bastão em punho. Vagarosa e desajeitadamente, lá transponho este obstáculo. No final, há que remover o Jumar, passando-o para a corda seguinte. Neste processo, sou obrigada a tirar uma luva, ficando só com uma fina luva interior. De repente, deixo cair a luva. Gelasse-me o coração, pois sei que sem a luva não posso continuar. Se o fizesse, iria congelar os dedos. Olho para baixo e vejo Rafael a apanhar a minha luva. Espero um pouco até que este me alcança, com a luva entre os dentes. Agradeço emocionada, sem ele nunca poderia continuar.
Depois deste incidente, apesar do frio intenso, a minha motivação parece ter-se renovado. À medida que subo, as pendentes parecem multiplicar-se. Avanço e distancio-me de Rafael e dou por mim novamente sozinha, a pensar se será ou não possível alcançar o cume desta montanha, com o vento forte que se faz sentir. Quantos irão à minha frente?
Tenho a certeza que pelo menos 3 italianos, que saíram bastante antes, já que não passaram por mim a descer. Isso dá-me forças para continuar. Um pouco mais à frente, vejo mais duas pessoas, que, como eu se movimentam vagarosamente.


Um aspecto da ascensão numa secção de cordas fixas.


De repente, vejo o fim das cordas fixas e o sol começa a iluminar-me. Penso que me irá aquecer, mas engano-me, pois o fim das cordas fixas significa a diminuição de pendente e logo uma maior exposição ao vento.
Paro para beber um pouco de sumo e tentar engolir alguma coisa. O sumo está já bastante frio e quase intragável, apesar de muito protegido. De comer, apenas consigo espremer um gel meio energético, tudo o resto congelou. Por esta altura, perdi já a sensibilidade nas pontas dos dedos de uma mão, mas não me preocupo muito porque percebo que as mexo bastante bem.
Quero acreditar que no fim da vertente vai surgir o que dizem ser o longo planalto do cume, mas quanto mais subo, mais a montanha insiste em esconder-me o dito planalto. Não faço ideia das horas, não posso retirar a luva para ver o relógio, o intenso vento tenta demover-me, mas penso "já que cheguei até aqui, continuo um pouco mais! Pelo menos até que os italianos que estão à frente se cruzem comigo ao descer”.
Nisto alcanço outro alpinista espanhol e pouco depois entramos os 2 no tal planalto do cume. As nuvens à minha frente movem-se depressa e a visibilidade não é perfeita. Os 40km/h que o Vitor Baía previa, eram ali cerca de 50 ou 60, duros de enfrentar. Penso que já deve faltar pouco, quando vejo um vulto a caminhar em minha direcção. Quando nos cruzamos, reconheço um dos espanhóis e pergunto "quanto tempo para o cume?" ao que me responde "2 a 3 horas". Surpreendo-me com a resposta e fico ali parada a pensar que, com aquele vento não vou conseguir. Faço um esforço para ver as horas e reparo que são cerca das 12:30 (hora nepalesa). Penso que se demorar 2 a 3 horas poderei ter sérios problemas. Pegadas apagadas pelo vento naquele imenso planalto com fraca visibilidade, podem significar perder-me por ali. Fico ali parada, durante o que penso serem 1 ou 2 minutos, a pensar o quão larga é a distância e tão curta a altitude. Desisto, volto as costas e penso que não vale a pena arriscar. Minutos depois, cruzo-me com um espanhol que vinha a subir e que me diz "Não, não! Daqui é no máximo uma hora. Vamos! Tenho um amigo mais à frente!". Isso dá-me novo animo e decido arriscar. O tipo parecia confiante. Novamente me ponho a caminho e, passado pouco tempo surge, vindo do cimo, o tal amigo feliz, dizendo "são mais 10 min!". Esses 10 minutos pareceram-me 5 e, de repente, estava ali, um cume que não parecia cume, de tal forma se encontra dissipado no meio de um planalto com nuvens que se movimentam rápido e com a neve que um intenso vento levanta.
Eram as 13:00. Sentados no chão, estavam Simone e Julia (italianos).
Felicitamo-nos. Olho em volta e avisto umas velhas bandeirinhas de oração. Atrás de mim, jaz no caminho uma garrafa de oxigénio laranja e um cantil azul. Há algum lixo no cume.
O Everest que era suposto ver, estava tapado pelas nuvens.
Faço de imediato uso do meu telefone satélite. Primeiro tenho a sorte de falar com o meu pai: "Pai, estou no cume! Consegui!" grito eufórica. Depois envio uma mensagem ao Pedro Cuiça para colocar no site da expedição. De seguida, peço aos italianos que me filmem um pouco, enquanto balbucio algumas coisas que me vêm à cabeça. Filmo um pouco o envolvente e quando peço que me tirem umas fotos, a minha máquina recusa-se a funcionar, acusando falta de bateria. Não posso acreditar. Nisto chega o espanhol que estava mesmo atrás de mim e peço-lhe para tirar umas fotos com a sua câmara, "Claro!" responde. Pouco depois vejo Rafael. Os dois espanhóis conhecem-se. Peço também que me tire umas fotos, ao que este acede. Pouco depois inspeciono o meu cantil. Tal como temia, descubro meio litro de líquido congelado. Até a comida que trazia junto ao corpo congelou! Resta-me voltar para baixo rapidamente e fugir ao intenso mau tempo. Penso apenas que o Vítor Baía tinha razão, não era dia de fazer cume... apesar de já estar feito!
O meu primeiro 8000... em tão duras condições!


A Daniela, de volta ao campo base, depois de alcançar o cume do Cho-Oyu.


Não duvido que baixarei bem e depressa ao campo 2, pois sinto uma enorme energia interior e uma intensa satisfação. Chego a esquecer que apenas ingeri meio litro de sumo e um pacotinho de gel, surpreendo-me como me sinto tão bem.
Vejo os restantes a descer devagar e extenuados, eu estranhamente, pareço agora ligada à corrente eléctrica!"
Rapidamente me ponho no campo 2 e, na ultima vertente, cruzo-me com 2 filipinos. Como os vejo exaustos, percebo que algo correu mal.
No campo 2, Noell (uma das filipinas) recebe-me de braços abertos e felicita-me. Estranhamente, o efusivo Lakpa mal põe a cabeça fora da tenda. Com Pasang passa-se mesmo. Dizem-me pouco depois que Regie, o líder da expedição, ficou com cegueira das neves e os 2 sherpas tiveram de o descer amarrado a cordas, pelo que ambos estavam extenuados.
O ambiente estava pesado.
Como o cansaço foi contagiante nessa noite, apenas eu e Noell cozinhamos umas massas para o jantar, mas já não houve paciência para fundir gelo para fazer água. Assim, fiquei-me com pouco mais de meio litro nesse dia. A consequência foi uma enorme dor de cabeça nocturna! Karina demorou uma eternidade para descer a ultima vertente, sentando-se de 5 em 5 passos. O que se desce em cerca de 15 ou 20 minutos, deve ter-lhe custado umas 2h.
Pela noite, ainda tive o enorme prazer de falar com os meus pais e com Ivan Vallejo que, do outro lado do telefone, estava tão contente com a noticia, que parecia ter sido ele a fazer cume.


Daniela Teixeira