domingo, setembro 12, 2021

FANTASMAS

FANTASMAS


Com o tempo, com as escaladas, com os passeios, acabamos por nos fundir com a própria serra, passamos a fazer parte das várias paredes de granito que aqui se erguem.

Durante meses perdemo-nos cada dia mais, descobrimos cada dia mais, escalámos a cada semana mais e melhor. As nossas mãos, os nossos corpos, conhecem, adaptam-se cada segundo melhor a cada rugosidade, a cada buraquinho, a cada fissura.

Naquele dia, as temperaturas mais amenas desviaram-nos das escaladas mais técnicas do Vale Glaciário do Zêzere e convidaram-nos a revisitar a primeira via que abrimos na face sul do Cântaro Magro, a Erika.

Face sul do Cântaro Magro

O dia seria mais longo, os 8 largos que se desenham do solo até ao topo da agulha mais bonita da Serra da Estrela iriam tomar-nos várias horas. Ainda assim, algumas menos do que viemos a suportar. A suportar, sim. Suportar parece uma palavra que destoa de um acordar alegre, cheio de energia num perfeito dia em que as nuvens decidiram viajar para terras distantes e o céu se tingiu daquele azul profundo, perfeito, típico das montanhas verdadeiras.

Na “curva do Cântaro” colocámos as mochilas às costas e no meio da tranquilidade que o momento proporcionava, descemos o Corredor dos Mercadores. Cruzámos as obstinadas giestas que teimam em tapar o trilho já de si insipido, até à base da, talvez, a minha parede de eleição na Serra da Estrela.

A chegar à base da via "Erika"

Previa-se um dia perfeito, estávamos motivados, muito motivados para percorrer a distância que nos separava do topo do Cântaro.

Depois de tantos dias a escalar, sentíamo-nos mais fortes, mais rápidos, mais graciosos até.

O Paulo tocou o granito do primeiro largo e progrediu com airosidade até à placa quase lisa que nunca nos foi fácil cruzar. Desta vez, contrariamente ao que tínhamos desejado, a placa continuou a mostrar-se difícil. Ainda no chão, deliciei-me com toda aquela paz que os lugares especiais nos fazem sentir.

O Paulo na sempre difícil placa do primeiro largo

Pouco depois também eu navegava por aquele pequeno mar de granito, de superfície quase lisa, esse quase que na escalada nos deixa ainda avançar.

Daniela no mar de granito do primeiro largo

A 50m do chão, na primeira reunião sentia-me confiante. Confiante o suficiente para desafiar o segundo largo, um 6b+ que se estende por uma bonita fissura, até que o seu fim antecipa um suavizar das dificuldades.

Armei-me de friends, entaladores, fitas ao peito, esbranquicei as mãos nervosas com magnésio e avancei na parede vertical. O meu cérebro atraiçoou-me, a dureza da entrada retirou-me boa parte da confiança que sentia até então. Avancei atabalhoadamente mais um pouco, até que, na perspetiva de um passo que me pareceu duro, e sem perspectiva de colocar uma protecção nas proximidades para ganhar um pouco de confiança, decidi desistir. Tenta, não tenta, consegues, não consegues, a parte medrosa de mim levou a melhor. Segundos depois encontrava-me na reunião, a passar toda a parafernália que tinha pendurada no arnês ao Paulo, que evidentemente iria percorrer aquele largo com ligeireza e graciosidade.

Daniela no segundo largo, momentos antes de desistir

O ponto onde desisti momentos antes parecia ter-se modificado, mas não. O nervoso que ganhei nos primeiros metros do largo toldaram-me a visão para uma presa de pés que agora, com a passagem do Paulo, se mostrava evidente.

Arrependi-me de ter desistido.

A fissura foi escalada com singeleza e rapidez, como se não houvesse um pedacinho de rocha votado ao esquecimento desde a última vez em que o Paulo escalou aquele largo.

Entrou na última parcela do largo, já bastante mais fácil e após proteger na única plaquete do largo, o Paulo avançou confiante mais um pouco. Estabilizou. Os meus olhos deixaram por um momento a parede e percorreram a pequena plataforma onde estavam os últimos metros de corda. Ouvi um grito. Enorme. Escalafriante. De terror. Já conheço o tom, já o ouvi no passado. Segurei a corda com força até sentir a tensão da queda. Olhei para cima. Vi o Paulo de cabeça para baixo, olhos, face de horror. Gritava. Com o tom que adivinhava saber que a vida, num só momento, pode mudar. “Parti a perna, oh nãããoooo, outra vez não!!! Parti a perna…nããooo…”.

O Paulo na fissura do segundo largo

Estávamos ali, alvejados por um universo tremendamente injusto. Alvejados, sim. O pânico subjugou o Paulo que, ainda de cabeça para baixo contorcendo-se de dores, continuava a deixar que os gritos exprimissem a sua dor, tão física como de alma. Essa dor, muito maior que qualquer grito.

Eu, eu. Estava em pânico também, mas nunca o poderia demostrar naquele momento. Segurei a corda com força e vi o pé esquerdo do Paulo pendurado, virado, suspenso apenas, agarrado ao resto da perna pelos músculos, pela pele. Exigi de mim o máximo de concentração, não sei onde fui buscar a frieza para reagir.

“Paulo, acalma-te” gritei. “Vais ter de te acalmar, vamos ter de sair daqui”. Sentia-lhe uma dor cada vez maior, uma dor que se misturava com pânico, ansiedade, tudo o que seria de esperar numa situação como a que se encontrava.

“Paulo, vais ter de te acalmar e vais ter de te virar! Eu vou ter de te descer até mim.”. Gritei-lhe com a voz clara de quem dá uma ordem que não pode deixar de ser cumprida. “ACALMA-TE JÁ! Vais ter de te virar ou vou ter de te descer assim mesmo, de cabeça para baixo!”. O tom agressivo resultou. Não sei como conseguiu, mas mesmo a contorcer-se de dores, vi-o virar-se e de seguida desci-o, devagar até mim.

Adiei todos os pensamentos de um futuro que, num segundo, passou a ser um futuro diferente. Não sei onde fui buscar forças, menos sei onde o meu amor foi buscar forças para me ajudar a conseguir ajuda-lo.

Ele, deitado na pequena plataforma da primeira reunião. Eu, a agarrar no telemóvel desejando ter rede para conseguir pedir ajuda. Teclei o 112, ouvi um “pi” do lado de lá e a chamada caiu. Tentei novamente e percebi que o número do 112 não funcionava. Liguei para o comandante da GNR de montanha, não tive sorte, não atendeu. Fiquei sem rede, surpresa! Em poucos instantes, diferentes futuros invadiram o meu raciocínio. Pensei-os a todos de uma só vez. Posso ter de o descer…não, não posso correr o risco de que desmaie enquanto o desço. Mais seguro, por muito que me custe, será descer eu e deixá-lo aqui o “melhor” possível. Descer eu e tentar chegar à estrada o mais depressa que consiga para pedir ajuda. Ouço um ruido vindo do telemóvel, volta a ter rede. Ligo a um casal de amigos que passavam 4 dias de férias na serra. Para nosso alívio, atendem. Sei que posso ficar sem rede novamente, a qualquer momento. “Nuno, tenho de ser rápida. Estamos na primeira reunião da Erika, na face sul do Cântaro. Tivemos um acidente e o Paulo está muito mal, com a perna esquerda partida. Não conseguimos sair daqui, precisamos de um resgate”. Em poucas palavras o Nuno disse que iria fazer de imediato os possíveis. Lembrei-mo de outro amigo escalador da Covilhã, que é PSP. Tentei, atendeu, passei-lhe a mesma mensagem. Eram as duas da tarde.

Por entre as dores, pensamentos escuros, ansiedade, o meu amor mantinha uma clareza de raciocínio que até agora não entendo como o conseguiu. “Daniela, olha que eu posso desmaiar a qualquer momento. Vamos ter de estabilizar a perna”. Olhei em volta, não havia nada. Nada que tivesse rigidez suficiente para fazer uma espécie de tala. “Usa os meus ténis, põe um de cada lado e aperta-os com fitas (fitas de escalada)”. A clareza de raciocínio impressionou-me. Com um par de ténis ligeiros, improvisámos uma espécie de tala. Os gritos que invadiam todo o espaço pintavam de negro o meu coração apertado, que sentia dor, mas não chegava certamente à imensa dor do Paulo.

O telemóvel tocou, era o comandante da GNR “Daniela, os meus homens já vão a caminho. O que é que vocês precisam? Onde estão exatamente?”. A resposta foi perentória, apesar da pouca crença no que ia pedir “Precisamos de um helicóptero, é a melhor forma de sair daqui. O Paulo tem uma perna partida, está em muito mau estado. Desçam pelo corredor dos Mercadores e quando chegarem mais à frente vão ver-nos. Estamos na primeira reunião da Erika.”. O comandante da GNR iniciou uma sequência de esforços para conseguir que um helicóptero nos viesse resgatar. Sabendo que os elementos da GNR vinham ao nosso encontro, preparei as cordas de escalada para que as pudessem utilizar, subindo por elas para chegar a nós o mais depressa possível. Reforcei a reunião com mais um par de friends e demorei a desenrolar as cordas que, respeitando a lei de Murphy se embrulharam num novelo difícil de desfazer, mais ainda com a ansiedade que qualquer pormenor imperfeito fazia crescer. Pouco depois, dois elementos da GNR de montanha chegavam ao pé de nós. Os ténis foram finalmente trocados por uma tala de verdade e o Paulo foi colocado numa maca que se encaixou naquela minúscula plataforma onde à altura, estávamos quatro.

O tempo nestas situações, teima sempre em passar devagar. Entre a queda e o resgate de helicóptero passaram quatro horas, quatro longas horas difíceis de suportar. Apesar das infindáveis dores, a presença de espírito do Paulo era surpreendente “Verifica se estão todos autoseguros…equaliza a reunião com os friends de cima…tira daí essa corda que já não está a fazer nada, só atrapalha…vejam se a maca não está presa a nada por baixo, para quando vier o helicóptero…”. A experiência do mais experiente de todos nós era uma constante presença.

Quatro horas em que a minha concentração se tentava sobrepor a todos os pensamentos obstinados, tristes, negros, que não me queriam largar.

Finalmente, algures pelas seis da tarde, a maca eleva-se no ar. Senti um misto de alívio e relutância, afinal, a maca estava no ar a rodopiar, não no chão seguro. Rapelei e corri até à estrada o mais rápido que as parcas forças o permitiram. Diria que nunca subi daquele ponto até à estrada em tão poucos minutos. Queria vê-lo, acarinhar-lhe o rosto, o coração, antes que o levassem para o hospital.

Quando cheguei à “curva do Cântaro” o aparato era infindável, entre GNR, bombeiros de diferentes corporações, protecção civil, não sei quantas pessoas se mobilizaram, mas contavam-se dezenas. O helicóptero da Força Aérea tinha já aterrado nas proximidades da Torre, o Paulo seria mudado para outro helicóptero do INEM para ser transportado para o hospital de Coimbra. Cheguei a tempo. A tempo suficiente de trocarmos olhares, de lhe dar um carinho, afecto, amor. Estávamos os dois destroçados, tínhamos partido uma perna e quebrado a ligação ao futuro. Eu, com o coração encolhido de tanta dor, esmagada por não me ser possível fazer mais nada, por ter de aguentar a separação. O meu amor, para além de todo o sofrimento físico, suportava a dor de um coração que carrega outra dor, a dor do amor, a dor da preocupação por quem se ama.

Vi o helicóptero do INEM levantar. O céu continuava azul, o sol continuava a iluminar os granitos que se perdem de vista nesta serra bonita. Pela primeira vez, a beleza da serra não me aqueceu, foi como se a ignorasse, como se nos ignorássemos. O sentir seria igual estando ali, ou noutra qualquer parte sombria do planeta. E esse foi o momento de chorar, de quebrar, de deixar que toda a frieza que consegui manter até ali se dissipasse. Esse foi o primeiro momento em que tive direito a Sentir o que sentia.

Tinha ainda assim que conservar alguma frieza para contar à mãe do Paulo o que se tinha passado. “Ai meu deus! Outra vez!...”. Fiz o que pude para manter uma conversa muito menos preocupante do que a situação o exigia. Acho que consegui.

As horas sem contacto pareceram durar para sempre e os meus pensamentos nada tinham de positivos. Valeu-me a presença dos amigos Nuno e Ana, que acionaram o resgate e me acompanharam sempre nas horas, dias que se seguiram. Acompanharam-me, acarinharam-me, trataram-me.

O meu amor tinha caído, e num largo perfeitamente vertical bateu com a perna na única pequena plataforma que poderia surgir no caminho. Que maior azar poderia acontecer?

Olhando de longe, racionalmente, aquela situação não poderia ter sido pior. A lei das probabilidades ditaria que naquela queda, o Paulo apenas ficaria pendurado na corda, sacudiria as mãos, recuperava o folego e seguiria para cima, como em qualquer queda de escalada. O universo não conspirou a nosso favor.

O que há para aprender?

Nada. Rigorosamente nada. Não há nada a aprender num azar inverosímil, improvável.

Os “E se’s” ainda percorrem as ruas nocturnas da minha cidade de pensamentos bafientos, sufocados e sufocantes. E se o medo não se tivesse apoderado de mim, e se eu não tivesse desistido? E se eu tivesse continuado a escalar aquele largo?

Este “se”, este medo que nos fez trocar de lugar insiste em visitar-me. Insiste em espezinhar-me, calcar-me, por vezes com violência.

Não me liberto dos fantasmas. A noite, o silêncio, trazem as imagens de um passado tremendamente injusto. E se eu não tivesse desistido?

O meu medo mudou o nosso futuro.

O meu medo, o sentimento que, naquele momento, não fiz grande esforço para ultrapassar, não me apeteceu enfrenta-lo. Por vezes, a escalar, esse companheiro maldito visita-me. Por vezes, fecho-lhe a porta e continuo em frente. Por vezes, deixo o cérebro levar a melhor, não me esforço, deixo-me relaxar…porque não me apetece esforçar-me e desço. A lei das probabilidades ditaria que, naquela situação, o meu medo não teria qualquer influência. Mas teve. Mudou o futuro.


Daniela Teixeira