FANTASMAS
Com o tempo, com as escaladas, com os passeios, acabamos por
nos fundir com a própria serra, passamos a fazer parte das várias paredes de
granito que aqui se erguem.
Durante meses perdemo-nos cada dia mais, descobrimos cada
dia mais, escalámos a cada semana mais e melhor. As nossas mãos, os nossos
corpos, conhecem, adaptam-se cada segundo melhor a cada rugosidade, a cada
buraquinho, a cada fissura.
Naquele dia, as temperaturas mais amenas desviaram-nos das
escaladas mais técnicas do Vale Glaciário do Zêzere e convidaram-nos a
revisitar a primeira via que abrimos na face sul do Cântaro Magro, a Erika.
Face sul do Cântaro Magro
O dia seria mais longo, os 8 largos que se desenham do solo até ao topo da agulha mais bonita da Serra da Estrela iriam tomar-nos várias horas. Ainda assim, algumas menos do que viemos a suportar. A suportar, sim. Suportar parece uma palavra que destoa de um acordar alegre, cheio de energia num perfeito dia em que as nuvens decidiram viajar para terras distantes e o céu se tingiu daquele azul profundo, perfeito, típico das montanhas verdadeiras.
Na “curva do Cântaro” colocámos as mochilas às costas e no meio da tranquilidade que o momento proporcionava, descemos o Corredor dos Mercadores. Cruzámos as obstinadas giestas que teimam em tapar o trilho já de si insipido, até à base da, talvez, a minha parede de eleição na Serra da Estrela.
A chegar à base da via "Erika"
Previa-se um dia perfeito, estávamos motivados, muito
motivados para percorrer a distância que nos separava do topo do Cântaro.
Depois de tantos dias a escalar, sentíamo-nos mais fortes,
mais rápidos, mais graciosos até.
O Paulo tocou o granito do primeiro largo e progrediu com
airosidade até à placa quase lisa que nunca nos foi fácil cruzar. Desta vez,
contrariamente ao que tínhamos desejado, a placa continuou a mostrar-se difícil.
Ainda no chão, deliciei-me com toda aquela paz que os lugares especiais nos
fazem sentir.
O Paulo na sempre difícil placa do primeiro largo
Pouco depois também eu navegava por aquele pequeno mar de
granito, de superfície quase lisa, esse quase que na escalada nos deixa ainda
avançar.
Daniela no mar de granito do primeiro largo
A 50m do chão, na primeira reunião sentia-me confiante.
Confiante o suficiente para desafiar o segundo largo, um 6b+ que se estende por
uma bonita fissura, até que o seu fim antecipa um suavizar das dificuldades.
Armei-me de friends, entaladores, fitas ao peito, esbranquicei
as mãos nervosas com magnésio e avancei na parede vertical. O meu cérebro
atraiçoou-me, a dureza da entrada retirou-me boa parte da confiança que sentia
até então. Avancei atabalhoadamente mais um pouco, até que, na perspetiva de um
passo que me pareceu duro, e sem perspectiva de colocar uma protecção nas
proximidades para ganhar um pouco de confiança, decidi desistir. Tenta, não
tenta, consegues, não consegues, a parte medrosa de mim levou a melhor.
Segundos depois encontrava-me na reunião, a passar toda a parafernália que
tinha pendurada no arnês ao Paulo, que evidentemente iria percorrer aquele
largo com ligeireza e graciosidade.
Daniela no segundo largo, momentos antes de desistir
O ponto onde desisti momentos antes parecia ter-se modificado, mas não. O nervoso que ganhei nos primeiros metros do largo toldaram-me a visão para uma presa de pés que agora, com a passagem do Paulo, se mostrava evidente.
Arrependi-me de ter desistido.
A fissura foi escalada com singeleza e rapidez, como se não houvesse um pedacinho de rocha votado ao esquecimento desde a última vez em que o Paulo escalou aquele largo.
Entrou na última parcela do largo, já bastante mais fácil e
após proteger na única plaquete do largo, o Paulo avançou confiante mais um
pouco. Estabilizou. Os meus olhos deixaram por um momento a parede e percorreram
a pequena plataforma onde estavam os últimos metros de corda. Ouvi um grito.
Enorme. Escalafriante. De terror. Já conheço o tom, já o ouvi no passado.
Segurei a corda com força até sentir a tensão da queda. Olhei para cima. Vi o
Paulo de cabeça para baixo, olhos, face de horror. Gritava. Com o tom que adivinhava
saber que a vida, num só momento, pode mudar. “Parti a perna, oh nãããoooo,
outra vez não!!! Parti a perna…nããooo…”.
O Paulo na fissura do segundo largo
Estávamos ali, alvejados por um universo tremendamente injusto. Alvejados, sim. O pânico subjugou o Paulo que, ainda de cabeça para baixo contorcendo-se de dores, continuava a deixar que os gritos exprimissem a sua dor, tão física como de alma. Essa dor, muito maior que qualquer grito.
Eu, eu. Estava em pânico também, mas nunca o poderia
demostrar naquele momento. Segurei a corda com força e vi o pé esquerdo do
Paulo pendurado, virado, suspenso apenas, agarrado ao resto da perna pelos
músculos, pela pele. Exigi de mim o máximo de concentração, não sei onde fui
buscar a frieza para reagir.
“Paulo, acalma-te” gritei. “Vais ter de te acalmar, vamos
ter de sair daqui”. Sentia-lhe uma dor cada vez maior, uma dor que se misturava
com pânico, ansiedade, tudo o que seria de esperar numa situação como a que se
encontrava.
“Paulo, vais ter de te acalmar e vais ter de te virar! Eu
vou ter de te descer até mim.”. Gritei-lhe com a voz clara de quem dá uma ordem
que não pode deixar de ser cumprida. “ACALMA-TE JÁ! Vais ter de te virar ou vou
ter de te descer assim mesmo, de cabeça para baixo!”. O tom agressivo resultou.
Não sei como conseguiu, mas mesmo a contorcer-se de dores, vi-o virar-se e de
seguida desci-o, devagar até mim.
Adiei todos os pensamentos de um futuro que, num segundo,
passou a ser um futuro diferente. Não sei onde fui buscar forças, menos sei
onde o meu amor foi buscar forças para me ajudar a conseguir ajuda-lo.
Ele, deitado na pequena plataforma da primeira reunião. Eu,
a agarrar no telemóvel desejando ter rede para conseguir pedir ajuda. Teclei o
112, ouvi um “pi” do lado de lá e a chamada caiu. Tentei novamente e percebi
que o número do 112 não funcionava. Liguei para o comandante da GNR de
montanha, não tive sorte, não atendeu. Fiquei sem rede, surpresa! Em poucos
instantes, diferentes futuros invadiram o meu raciocínio. Pensei-os a todos de
uma só vez. Posso ter de o descer…não, não posso correr o risco de que desmaie
enquanto o desço. Mais seguro, por muito que me custe, será descer eu e deixá-lo
aqui o “melhor” possível. Descer eu e tentar chegar à estrada o mais depressa
que consiga para pedir ajuda. Ouço um ruido vindo do telemóvel, volta a ter
rede. Ligo a um casal de amigos que passavam 4 dias de férias na serra. Para
nosso alívio, atendem. Sei que posso ficar sem rede novamente, a qualquer
momento. “Nuno, tenho de ser rápida. Estamos na primeira reunião da Erika, na
face sul do Cântaro. Tivemos um acidente e o Paulo está muito mal, com a perna
esquerda partida. Não conseguimos sair daqui, precisamos de um resgate”. Em
poucas palavras o Nuno disse que iria fazer de imediato os possíveis.
Lembrei-mo de outro amigo escalador da Covilhã, que é PSP. Tentei, atendeu,
passei-lhe a mesma mensagem. Eram as duas da tarde.
Por entre as dores, pensamentos escuros, ansiedade, o meu
amor mantinha uma clareza de raciocínio que até agora não entendo como o
conseguiu. “Daniela, olha que eu posso desmaiar a qualquer momento. Vamos ter
de estabilizar a perna”. Olhei em volta, não havia nada. Nada que tivesse
rigidez suficiente para fazer uma espécie de tala. “Usa os meus ténis, põe um
de cada lado e aperta-os com fitas (fitas de escalada)”. A clareza de
raciocínio impressionou-me. Com um par de ténis ligeiros, improvisámos uma
espécie de tala. Os gritos que invadiam todo o espaço pintavam de negro o meu
coração apertado, que sentia dor, mas não chegava certamente à imensa dor do
Paulo.
O telemóvel tocou, era o comandante da GNR “Daniela, os meus
homens já vão a caminho. O que é que vocês precisam? Onde estão exatamente?”. A
resposta foi perentória, apesar da pouca crença no que ia pedir “Precisamos de
um helicóptero, é a melhor forma de sair daqui. O Paulo tem uma perna partida,
está em muito mau estado. Desçam pelo corredor dos Mercadores e quando chegarem
mais à frente vão ver-nos. Estamos na primeira reunião da Erika.”. O comandante
da GNR iniciou uma sequência de esforços para conseguir que um helicóptero nos
viesse resgatar. Sabendo que os elementos da GNR vinham ao nosso encontro,
preparei as cordas de escalada para que as pudessem utilizar, subindo por elas
para chegar a nós o mais depressa possível. Reforcei a reunião com mais um par
de friends e demorei a desenrolar as cordas que, respeitando a lei de Murphy se
embrulharam num novelo difícil de desfazer, mais ainda com a ansiedade que
qualquer pormenor imperfeito fazia crescer. Pouco depois, dois elementos da GNR
de montanha chegavam ao pé de nós. Os ténis foram finalmente trocados por uma
tala de verdade e o Paulo foi colocado numa maca que se encaixou naquela
minúscula plataforma onde à altura, estávamos quatro.
O tempo nestas situações, teima sempre em passar devagar.
Entre a queda e o resgate de helicóptero passaram quatro horas, quatro longas
horas difíceis de suportar. Apesar das infindáveis dores, a presença de
espírito do Paulo era surpreendente “Verifica se estão todos
autoseguros…equaliza a reunião com os friends de cima…tira daí essa corda que
já não está a fazer nada, só atrapalha…vejam se a maca não está presa a nada
por baixo, para quando vier o helicóptero…”. A experiência do mais experiente
de todos nós era uma constante presença.
Quatro horas em que a minha concentração se tentava sobrepor
a todos os pensamentos obstinados, tristes, negros, que não me queriam largar.
Finalmente, algures pelas seis da tarde, a maca eleva-se no
ar. Senti um misto de alívio e relutância, afinal, a maca estava no ar a
rodopiar, não no chão seguro. Rapelei e corri até à estrada o mais rápido que
as parcas forças o permitiram. Diria que nunca subi daquele ponto até à estrada
em tão poucos minutos. Queria vê-lo, acarinhar-lhe o rosto, o coração, antes
que o levassem para o hospital.
Quando cheguei à “curva do Cântaro” o aparato era
infindável, entre GNR, bombeiros de diferentes corporações, protecção civil, não
sei quantas pessoas se mobilizaram, mas contavam-se dezenas. O helicóptero da
Força Aérea tinha já aterrado nas proximidades da Torre, o Paulo seria mudado
para outro helicóptero do INEM para ser transportado para o hospital de
Coimbra. Cheguei a tempo. A tempo suficiente de trocarmos olhares, de lhe dar
um carinho, afecto, amor. Estávamos os dois destroçados, tínhamos partido uma
perna e quebrado a ligação ao futuro. Eu, com o coração encolhido de tanta dor,
esmagada por não me ser possível fazer mais nada, por ter de aguentar a
separação. O meu amor, para além de todo o sofrimento físico, suportava a dor
de um coração que carrega outra dor, a dor do amor, a dor da preocupação por
quem se ama.
Vi o helicóptero do INEM levantar. O céu continuava azul, o
sol continuava a iluminar os granitos que se perdem de vista nesta serra
bonita. Pela primeira vez, a beleza da serra não me aqueceu, foi como se a
ignorasse, como se nos ignorássemos. O sentir seria igual estando ali, ou
noutra qualquer parte sombria do planeta. E esse foi o momento de chorar, de
quebrar, de deixar que toda a frieza que consegui manter até ali se dissipasse.
Esse foi o primeiro momento em que tive direito a Sentir o que sentia.
Tinha ainda assim que conservar alguma frieza para contar à
mãe do Paulo o que se tinha passado. “Ai meu deus! Outra vez!...”. Fiz o que
pude para manter uma conversa muito menos preocupante do que a situação o
exigia. Acho que consegui.
As horas sem contacto pareceram durar para sempre e os meus
pensamentos nada tinham de positivos. Valeu-me a presença dos amigos Nuno e
Ana, que acionaram o resgate e me acompanharam sempre nas horas, dias que se
seguiram. Acompanharam-me, acarinharam-me, trataram-me.
O meu amor tinha caído, e num largo perfeitamente vertical
bateu com a perna na única pequena plataforma que poderia surgir no caminho.
Que maior azar poderia acontecer?
Olhando de longe, racionalmente, aquela situação não poderia
ter sido pior. A lei das probabilidades ditaria que naquela queda, o Paulo
apenas ficaria pendurado na corda, sacudiria as mãos, recuperava o folego e
seguiria para cima, como em qualquer queda de escalada. O universo não
conspirou a nosso favor.
O que há para aprender?
Nada. Rigorosamente nada. Não há nada a aprender num azar
inverosímil, improvável.
Os “E se’s” ainda percorrem as ruas nocturnas da minha
cidade de pensamentos bafientos, sufocados e sufocantes. E se o medo não se
tivesse apoderado de mim, e se eu não tivesse desistido? E se eu tivesse
continuado a escalar aquele largo?
Este “se”, este medo que nos fez trocar de lugar insiste em
visitar-me. Insiste em espezinhar-me, calcar-me, por vezes com violência.
Não me liberto dos fantasmas. A noite, o silêncio, trazem as
imagens de um passado tremendamente injusto. E se eu não tivesse desistido?
O meu medo mudou o nosso futuro.
O meu medo, o sentimento que, naquele momento, não fiz grande esforço para ultrapassar, não me apeteceu enfrenta-lo. Por vezes, a escalar, esse companheiro maldito visita-me. Por vezes, fecho-lhe a porta e continuo em frente. Por vezes, deixo o cérebro levar a melhor, não me esforço, deixo-me relaxar…porque não me apetece esforçar-me e desço. A lei das probabilidades ditaria que, naquela situação, o meu medo não teria qualquer influência. Mas teve. Mudou o futuro.
Daniela Teixeira