terça-feira, novembro 27, 2007

O Bigwall dos pobres


Vistas Lusitanas.


- Aaaagh!

O Bruno olhou-me detrás do seu frontal e, com voz pausada disse: -Calma... vamos tentar de novo!

Já déramos voltas e voltas para tentar montar a hamaca. A armação de alumínio recusava encaixar-se devidamente e, passados uns vinte minutos de esforço, suspenso pelo arnés e embrulhado nas ramadas de uma “sabina” ( espécie de arbusto, muito resistente) eu explodia de raiva. –Aaaagh!

De súbito, um ligeiro toque de graça e uma torcida mais suave provocou o “clack!” característico que anunciava, finalmente, o inicio de mais uma noite de descanso, a terceira desde que nos puséramos a escalar.

Adormecemos com as sombras do mar de granito que interrompia, lá em cima, o fluxo de estrelas da Via Láctea.

No dia seguinte: “Cucu!... Toiing!...Cucu!...Toiing!...”, o som do meu telemovel com pretensões a despertador revelou a dura realidade. Eram as cinco da matina!

Esperava-nos duas horas de ocupação, a tomar o pequeno almoço, a desmontar a hamaca e a arrumar tudo nos petates. Tudo, sem deixar cair nada ao vazio.


O nascer do Sol do primeiro dia.


"Carregados como burros!"

Existem vários locais do mundo onde praticar a muito particular disciplina de escalada conhecida como Bigwall: Yosemite, Patagonia, Torres do Trango, Paine, etc. Visitar qualquer um destes locais envolve um considerável volume de euros acumulados nos bolsos mais abastados ou, nas contas de rarissimas entidades patrocinadoras.

Para nós, lusitanos e Europeus de segunda, organizar e financiar uma visita a qualquer um destes sítios, resulta numa empresa com proporções expedicionárias, antes mesmo de pisar o solo do destino sonhado (Ok! Neste ultimo parágrafo é favor substituir parte da frase por: “Para mim, cidadão do sistema solar e europeu de terceira, organizar e... blá, blá, blá!...”).

Mas, eis que surge, mesmo aqui ao lado, um local com as características de Bigwall, em dimensões e emoções. Um local descaradamente escancarado e paradoxalmente esquecido. Um local de beleza e silêncio arrebatadores, pejado de vida e energia.

Pode não ter a qualidade dos seus primos maiores, anteriormente referidos mas, aqui também a palavra Aventura se escreve com um A proporcional ao tamanho.

Claro, um local também sensível, com uma ecologia única que convêm preservar. Mais uma vez, ali está a época de nidificação de aves que se deve respeitar (não escalando, de Janeiro a Agosto), não porque uma qualquer instituição (por vezes dúbia) assim o exija mas sim, porque dentro de nós, sabemos que devemos estimar estes encaixados territórios selvagens.


O rapel de acesso à Floresta!

No interior da Floresta do Bornéu.


Ainda lá dentro!

Desta vez, a aventura tocou-nos ao Bruno Gaspar e a mim.

Em duas horas e meia, carregados como burros, conseguimos realizar a primeira parte da “expedição”... a aproximação.

Constatámos surpreendidos que o acesso se encontra muito mais... humano.

Muitas da Silvas que tanto nos atormentaram ao Miguel Grillo e a mim na altura da exploração em 2004 e, na altura da abertura da “Terra de ninguém” (dois anos depois), tinham quase desaparecido.

Já na base da via pretendida pensava no porreiro que tinha sido reduzir a quantidade de aí`s, ui`s (!) e variado praguejar, durante a descida da luxuriante “Floresta do Bornéu”.


O primeiro lance vislumbra-se por entre o bosque.


A primeira noite ao nível do solo.

Na terceira reunião, o “relé dos bafos” (não me perguntem a origem do nome mas, acho que teve algo que ver com o facto do urinol ter ficado demasiado próximo da hamaca!), reorganizámos o material nos petates e arneses.

Eram as seis da manhã.

De súbito, um ruído grave e arrastado interrompeu o idílico silêncio habitual: “VruumMM!”. Olhámos para trás, ainda a tempo de avistar uma grande nuvem negra que, num segundo, emergiu de um pequeno bosque suspenso na vertente oposta. – Uau! Morcegos!- gritou o Bruno. – Morcegos?! A estas horas?! Não... são pássaros!

Um gigantesco bando de Estorninhos formava uma coluna negra que bailava graciosamente a escassas dezenas de metros da nossa posição. O espectáculo era magnifico e ficámos para ali boquiabertos, a observar o inédito fenómeno ondulante. A nuvem virou e rodopiou como um lenço ao vento e, tão rápido como emergiu, afundou-se com grande estrondo num novo manto de árvores.

O silêncio retornou ao local.

- Já temos nome para a via! A dança dos Estorninhos!


Uma feliz descoberta no terceiro lance: Fissura perfeita!


No mesmo lance.

Petates sobre o vazio.

Bruno na "Reunião dos bafos".

Calhou ao Bruno a abertura do sétimo lance.

- Já estou muito pesado. Chega de material. Tá a andar!

Meti a corda no Gri-gri e dei-lhe uma palmada nas costas.

Sem hesitar, o Bruno começou a escalar em livre as duas fissuras paralelas verticais. Quanto a mim, restava-me dar corda e observar, comodamente instalado na melhor reunião de toda a via. Uma pequena mas perfeita plataforma horizontal, com uma cadeira de encosto constituída por uma pequena árvore.

O Bruno colocou um friend, deu-lhe um esticão de confirmação e continuou a escalar. Pouco depois, um novo friend protegeu os passos seguintes... os muitos passos seguintes! As duas fissuras terminaram para dar lugar a uma pequena travessia que, visto desde baixo, parecia permitir aceder a um diedro evidente. Vi o Bruno a ignorar o “run-out” e a lançar-se decidido à travessia. As mãos agarraram umas presas mais ou menos francas e os pés descolaram da rocha para, num “swing”a 180 graus, voltar a “colar” muito mais à direita. Reposição e... imediata constatação que a parede era bem mais vertical que o calculado antes do movimento. Pequenas armadilhas de se escalar em livre e à vista. – Ei Roxo, atenção aí!- sempre que alguém me faz este pedido (ou quando sou eu a pedir!) vem-me à memória a célebre figura do Paulo Gorjão, com a voz irritantemente pausada e desde o solo a contestar a um determinado escalador mais apurado: -Tu é que tens de ter atenção!

Optei por não atirar com esta frase emblemática ao Bruno. Talvez não viesse muito a propósito, especialmente perante a interessante perspectiva de um vôo com mais de dez metros.

A única fissura da placa nem sequer era uma fissura. Tratava-se do intervalo produzido por uma pequena lastra “amovível” que aceitou um pequeno alien (o verde do “semáforo”).

Com a cara colada à rocha para se equilibrar, o Bruno decidiu por fim, agarrar-se ao friend duvidoso. Tentei adivinhar a trajectória da queda. A antevisão não foi das melhores. Seria um belo vôo em pêndulo que o colocaria seguramente abaixo da minha posição. Preparei-me para puxar corda no Gri.

O friend lá aguentou com o peso do Bruno. Foi a sua oportunidade para martelar um bom piton numa fissurinha que espreitava trocista.

Espirito renovado para continuar!


Ligeiro toque solar no terceiro lance.


Quinto lance de protecções "arbustivas" mas, de progressão razoável.


Em BigWal vale (quase) tudo!

"O que me espera?"

Situação peculiar.

O diedro era muito atractivo... não fosse a fissura estar completamente coberta por uma grossa camada de ervas agarradas por terra endurecida, resultado de anos e anos de acumulação de poeiras trazidas pelo vento. De “escavador” em riste (uma velha escova transformada em espigão) ia conquistando cada centímetro do diedro.

Verdadeiras cascatas de terra e erva ião caindo ao vazio... sobre o Bruno! O pobre do meu companheiro encontrava-se directamente por baixo, amarrado à reunião, apoiado nos petates e, sem possibilidade de se desviar. – Ei, Bruno. Não olhes agora para cima!

Uma nova enxurrada de detritos precipitou-se em sua direcção. – Desculpa, não dá para evitar!- disse eu, com voz sentida.

- Ok! É na boa!...- respondeu, ao mesmo tempo que fechava a gola do casaco de penas, numa tentativa de selar as possíveis entradas de terra.

Os momentos “retro-escavadora” sucederam-se.

Pensava na sorte dos possíveis repetidores: encontrar o largo todo limpinho.

Mais acima encontrei umas regletes perfeitas. Afastei-me do alinhamento lógico do diedro e coloquei-me em cheio na placa. Para grande alívio do meu assegurador constatei não necessitar de escavar mais. Á minha frente erguia-se uma placa lisa. Burilador! Duas plaquetes depois, a coisa parecia conduzir a mais um pêndulo (o segundo da via).

O Bruno desceu-me alguns metros. Suspenso na ultima plaquete comecei a iniciar o baloiço horizontal. Corri uma, duas vezes e, lá me agarrei a umas presas arredondadas e musgosas. Subi para cima das presas e voltei a respirar. “Mmmm...” analisei a minha situação. A corda encontrava-se agora numa linha perfeitamente horizontal a uns sete metros da ultima protecção. Para cima revelava-se um passo de aspecto difícil e desequilibrante, impossível de proteger.

Na eventualidade de falhar seria uma valente queda em pêndulo perfeito. Em principio não me iria matar mas, o cenário potencial não era propriamente apelativo.

Realizei dois curtos passos. A mão direita descobriu uma presa lateral razoável. O pé direito subiu para uma micro-reglete duvidosa. “Só tenho de realizar um pé/mão à esquerda e...”. Hesitei... hesitei... desisti! Voltei a destrepar. Voltei a olhar para a distância que me separava da ultima protecção. Lá embaixo, o Bruno incitava-me: - Vai lá!

Tentei duas vezes mais mas, o receio apoderou-se e não consegui realizar o passo que (ainda por cima!), calculei não passar do quinto grau. A mente tinha bloqueado.

Descobri uma pequena reglete horizontal. “E se?...” Para meu espanto o pequeno gancho agarrou-se à saliência. “Merda, isto aguenta! Agora tenho mesmo de subir. Que chatice!” Muito cautelosamente subi ao primeiro degrau do estribo. Mais uma vez observei o mega-pêndulo que me esperava se... –Ai que medo!- solucei ao vento, sem me atrever a respirar. Subi ao segundo degrau do estribo. – Ai que medo!- o gancho mantinha-se na posição e, lá consegui saltar para as presas avidamente desejadas.

O resto da escalada sem historia depositou-me no topo da via.

Dei um grito de satisfação.

Na reunião suspensa o Bruno batia palmas.

Finalmente, podíamos tomar um banho... na fonte publica do parque de merendas!


Paulo Roxo


A tranquilidade...

Bruno no rapel pêndular.

Ping! Ping! Ping!


"Vai lá Brunex! Vai lá!..."


Jumareando o ultimo lance.


É o fim!... Por fim!

Por ali anda a "Piu?!"


Adeus!

Até à vista!



terça-feira, novembro 20, 2007

Encontro dos Entalados. O Rescaldo!
Lá fora chove. Um convite à melancolia. Ver a água a escorrer nos vidros da janela. Observar as folhas das árvores que se dobram e crepitam sob o peso das gotas. As pessoas que andam dobradas na vã tentativa de se protegerem da chuva... mas... que importam estas lamechices?
Ainda no Domingo o tempo estava perfeito. Frio, mas perfeito.
A aderência do melhor e a malta satisfeita, a subir às pedras.
No Domingo decorria o segundo dia do “Encontro dos Entalados” na barragem de Santa Luzia.

No Sábado, às oito da manhã, o termómetro marcava os zero graus.
No paredão da barragem uma ligeira brisa acentuava um pouco mais a sensação de frio. No entanto, apesar das condições adversas, o pessoal lá foi aparecendo para realizar as inscrições no auto-intitulado “melhor encontro de escalada do fim-de-semana” (era o único!).
Foi curioso observar a variedade de “vário-pintas” que, vindos de diversos locais do País, foram chegando à mesa de inscrições (genialmente organizada pela Natália e Daniela). A maioria, afundados nos gorros e nos casacos de penas, ostentando os friends e entaladores e com as cordas ao ombro. Dava a impressão que o que estava afinal a ser organizado era um encontro Invernal na Escócia.
Contudo, o frio não foi suficiente para demover os corajosos escaladores, que após degustarem um troço de bolo (patrocínio da Natália e da minha mãezinha) ou um troço de salame (patrocínio da mãezinha do Miguel), se dirigiram às paredes para degustarem algo mais duro, como as fissuras de Stª Luzia.
Ao longo do dia eram muitas as cordadas espalhadas pelos cinco sectores. O paredão da barragem oferecia o “spot” perfeito para observar a acção desenvolvida. Desde esse ponto o Miguel dedicou-se a realizar a reportagem fotográfica do evento.
Montes de “clássicos sem futuro” disseminados pelas vias “mais, mais” da Luzia.
A super clássica “Canto do Cuco” foi uma das vias preferidas tendo sido assediada várias vezes pelos friends e entaladores dos participantes.
Uma das mais duras vias abertas até à data, a “Fissura dos Mclouds”, também foi frequentemente visitada, tendo sido encadeada e inclusivamente realizada “à vista” pela primeira vez. Consta que também foi imediatamente decotada (adivinhem lá por quem)!
Na parede do Manómetro, as ascensões realizadas surpreenderam. Afoitos escaladores atreveram-se a enfrentar a sombria parede, repetindo linhas como a “Blood Runner”, a “Bela flor cimentada” e a “Manómetro 08-006, S3”.
Claro que, numa actividade em terreno de aventura que se preze não poderá faltar o incidente de taquicardia da praxe. No caso do encontro em questão, o incidente eleito ao primeiro prémio, ocorreu na intimidante parede do Falcão e foi protagonizado por um dos ilustres participantes quando escalava o segundo largo da via “Falco”. Este, escalando em segundo de cordada, inadvertidamente provocou um desprendimento de pedras que o lançou numa mega queda em pêndulo, com o fino cordel de 8,5 mm ao qual estava atado, a roçar em todas rochas e mais algumas. Felizmente, o único acidentado foi o relógio do escalador, no qual ficou para sempre registada a hora do crime.
O Sol escondeu-se atrás do horizonte e o frio da noite obrigou a recolher às box`s, excepto alguns resistentes (cinco cordadas!) que resolveram enfrentar os últimos lances das respectivas vias envoltos na escuridão e... sem frontal! Tudo correu pelo melhor e, algum tempo depois já todos desfrutavam do calor aconchegante do restaurante da aldeia de Casal da Lapa.
Três representantes da Câmara Municipal de Pampilhosa da Serra deram o ar de sua graça e em breve todos os presentes mastigavam o excelente jantar providenciado pela cozinha do Café das Beiras.
Após a sobremesa e cafés, o João (Irmandade da Topalhada) foi raptado para realizar o inevitável discurso de agradecimentos, uma vez que a organização do evento estava demasiado ocupada (leia-se envergonhada) para falar aos presentes.
Não fugindo à tradição e com o já habitual apoio da loja Espaços Naturais, foi sorteada uma corda de escalada novinha em folha (e ainda sem pêlos levantados ou mazelas várias, fruto de “coquinadas” de pedras rolantes) pelos aventureiros, agora transformados em Jantaristas. Para grande inveja de muitos, a contemplada foi a jovem Romana, que ainda por cima se estreava nestas lides da escalada de auto-protecção. Uma feliz coincidência que (creio eu) acabou por deixar todos satisfeitos.
A noite terminou com um fado verdadeiramente genial, escrito e cantado pelo João, num acto de inspiração e improviso, empurrados pelo vinho da casa. Por falar no vinho, este foi para muitos, o catalizador do sono que enviou cada um para o seu canto (uns para as tendas, outros para as carrinhas modificadas) a fim de passar uma noite descansada sob o céu fantasticamente estrelado.
Os zero graus do termómetro despertaram os resistentes que, após o pequeno-almoço, se lançaram de novo às paredes.
O inconfundível tilintar dos friends e demais quinquilharia fez-se ouvir uma vez mais e, embora em menor numero que no dia anterior, vários escaladores coloriram as vias da barragem.
Podemos afirmar com segurança que, graças ao entusiasmo e boa disposição dos participantes, o “Encontro dos Entalados” foi um sucesso.
Assim, talvez a “Clássica” tenha afinal algum futuro!

A organização gostaria de agradecer ás seguinte entidades e pessoas:

À Câmara Municipal de Pampilhosa da Serra por ter autorizado o encontro, limpo alguns dos acessos a vias de escalada e toda a disponibilidade prestada.


Aos Abismados, nas pessoas de Natália e Sergio que, gentilmente trataram da edição dos croquis, ajudaram na organização e patrocinaram um bolo em forma de coração que rapidamente foi despedaçado!

À Loja Espaços Naturais, por ter oferecido as cordeletas (que decerto irão tirar alguém de algum apuro, no futuro!), os pequenos mosquetões e a valiosa corda de escalada sorteada no jantar.

À Irmandade da Topalhada, mais concretamente na pessoa do Bruno Gaspar que ajudou bastante na organização e ao João por ter realizado o discurso da ordem e ter cantado o genial “Faduncho Classiqueiro”.

A todos vocês que estiveram presentes e que deram o real sentido ao encontro.

Obrigado

Paulo Roxo
Daniela Teixeira
Miguel Grillo