quarta-feira, julho 28, 2010

E agora...

E agora...



quarta-feira, julho 21, 2010

KARTIK 5115 m.

KARTIK 5115 m.


Momento Yoga. Afinal estamos na India!


Desde que montámos o nosso campo base e que iniciámos as primeiras caminhadas de aclimatação que aquele pico elegante nos olhava de soslaio. No entanto, as montanhas circundantes exerciam uma maior atracção. As suas altitudes superiores tornavam-nas mais apetecíveis.

Após a ascensão do Ekdant o tempo anunciava-se instável. As nuvens negras surgiam de uma forma constante, normalmente vindas de oeste, carregadas de ameaça e duvidas. De vez em quando estalava uma tempestade de neve, sempre acompanhada de um temível aparato eléctrico.


Nuvens ameaçadoras chocam na face sul do Neelkanth.


Tenda messe colapsada após tempestade.


A desenterrar a tenda messe.


Após a tempestade, novos amigos!

Com dois dias previstos de bom tempo tentámos escalar uma nova via mesmo pelo meio da face norte do Parvati Parvat. Ainda não nos tínhamos dado por vencidos.

Seria a primeira via tentada naquela face entrecortada por enormes barreiras de seracs.

Á primeira vista, parecia uma parede impossível mas, uma observação mais detalhada revelou uma possibilidade sinuosa que evitava os seracs mais perigosos. Desde a base da parede, utilizando o lápis da imaginação, traçámos uma linha invisível que contornava as ameaçadoras barreiras de gelo.


Face norte do Parvati Parvat. À esquerda está o Ekdant, no extremo direito temos o cume do Parvati Parvat.


A beleza de se escalar em terrenos nunca antes pisados é dar-nos conta da importância do processo criativo envolvido. Deste modo, o alpinismo ganha uma dimensão muito real. De certa forma, completa-se.


O nosso campo antes da nova tentativa ao Parvati. O Kartik em evidencia.


Confiantes, iniciamos a ascensão no dia 1 de Junho por volta da uma da manhã com um plano ajustado. A ideia consistia em escalar no primeiro dia até um determinado ponto de altitude desconhecida, plantar a tenda - desde baixo, tínhamos avistado um pequeno serac que poderia servir como abrigo para passar a noite, situado a quase três quartos da altura da face -, no dia seguinte tentar o cume e… descer tudo até à base da montanha.


Noite da madrugada.


Este plano cheio de pontos duvidosos, tinha no entanto, uma certeza absoluta: não iríamos estar no meio da montanha ao terceiro dia. Já tínhamos a suficiente dose de tempestade eléctrica nesta expedição.

A neve, variava entre o aceitável e o detestável, ainda assim a escalada decorria a um ritmo relativamente rápido.

A pendente, com inclinações entre os 50º e os 60º aceitava de quando em vez uma estaca de neve entre os dois, fornecendo algum conforto psicológico.


A Daniela ao amanhecer, na face norte do Parvati.


Ás quatro da manhã, o arco do sol ainda frio, surgia no horizonte de montanhas e o céu iluminava-se. Os frontais foram desligados.

Ás quatro e meia, aos 5100 metros, uma travessia quase vertical de neve completamente apodrecida fez-nos reconsiderar a nossa tentativa. Após alguns minutos de reflexão chegámos à inteligente conclusão que a retirada tardia prevista para o dia seguinte iria, no mínimo, raiar a loucura. Se, ás quatro da manhã, a neve já se encontrava naquele estado degradado nem queríamos imaginar como estaria depois do meio dia.

Descer foi a palavra de ordem.


A descer da vertente norte do Parvati.


Uma reunião! Bloco "à bomba!"


Na descida, já em terreno fácil.


Pouco depois, uma grande avalanche varreu toda a vertente numa tangente à nossa pretendida linha de ascensão. Encontrávamo-nos fora da área de perigo mas, enquanto assegurava a Daniela que destrepava as rampas inclinadas do esporão, ainda tive tempo de esticar o pescoço para ver uma série de grandes blocos de gelo a rolar descontroladamente, em alta velocidade e em todas as direcções.

Fora apenas uma pequena sacudidela da montanha, quiçá para nos incitar a não mudar de ideias relativamente à decisão.


Uma avalanche que se soltou dos seracs do Parvati.


Os destroços da avalanche que presenciámos.

Nesse mesmo dia descemos ao campo base.

O mau tempo previsto atrasou um dia e, o clima estável iria afinal persistir até ao dia seguinte.

Depois de um belo almoço providenciado pelo Indira e, com o dissipar do cansaço da madrugada anterior, começamos a arquitectar o plano seguinte.


Descanso...


Relax...


...e mais relax!


“E que tal uma tentativa fugaz ao pico isolado por cima do lago Sathopanth?”

“É uma ideia. Mas, vamos numa de ultra-light! Levamos apenas o essencial para um dia de escalada.”

Ficou combinado regular o despertador para as 2.30 da madrugada e, caso nos sentíssemos inspirados, faríamos uma tentativa.

Acordámos à hora prevista. O corpo pedia mais horas de sono mas, a perspectiva de um novo período de inércia, debaixo do mau tempo, a comer saladas no campo base, incentivou-nos a sair do conforto dos sacos-cama.

Com as mochilas anormalmente ligeiras sentíamo-nos a voar. Era uma sensação nova.

Íamos prevenidos apenas com o material necessário para um dia.

Na mochila iam água, alguns chocolates e bolachas. O equipamento técnico estava composto por duas estacas de neve, três parafusos de gelo e quatro pitons de rocha. Desta vez juntámos a cordeleta de apoio com 50 metros à corda principal. Desta, iríamos usufruir de 50 metros disponíveis para os rapeis, em lugar dos 25 metros, do Ekdant. Todo um luxo!

A lua, em fase de crescimento, iluminava as montanhas. Os seracs e as vertentes nevadas omnipresentes, contrastavam com as estrelas mais brilhantes que cintilavam no céu nocturno, alheias à paisagem dramática da qual fazíamos agora parte.

As sombras dos blocos maiores, errantes eternos do glaciar, remexiam a imaginação, criando uma sugestiva aura de mistério.

Caminhávamos em silêncio e os ruídos daquela noite sem vento resumiam-se ás pedras que rolavam, por vezes deslocadas pelas nossas botas.

O amanhecer surpreendeu-nos na base “oficial” da montanha. Uns duzentos metros mais abaixo, sobressaía o verde do lago sagrado de Sathopanth.


O lago sagrado de Sathopanth.


Relativamente ao lago, o glaciar homónimo estendia-se para baixo, passando ao largo do nosso campo base até se perder de vista. Para cima, depois do lago, o glaciar chocava com o espectacular circo de montanhas dominado pelo Chaukamba.


Picos fantásticos à espera dos primeiros.


Desencordados, escalamos um corredor inicial de neve até alcançar uma extensa plataforma. Uma mesa característica aos 4700 metros de altitude.

A parede norte do “Pico pequeno”, como inicialmente baptizámos o nosso objectivo, erguia-se agora em toda a sua plenitude. Desde a plataforma parecia evidente que este pico tinha mais de 5000 metros. Apenas adivinhávamos a sua altitude uma vez que a montanha nem sequer figurava no mapa, apesar de constituir claramente um pico destacado do resto do maciço. Com efeito, a única informação disponível acerca desta montanha era a imagem que agora nos surgia em frente dos olhos. Passou-nos pela cabeça a ideia de que escalar mais “à vista” do que isto era impossível.

O sol rolava e os seus primeiros raios tocavam já a parede de neve.

Com o comutador dos ânimos regulado no nível máximo, reiniciámos a ascensão.

A Daniela concluiu rapidamente metade da face em primeiro de cordada. A neve encontrava-se em boas condições e a corda que nos unia revelou-se inútil. Ao menos aliviava-nos as costas do seu peso.


A Daniela nas pendentes do Kartik.


E eu, de segundo.


A segunda metade da parede tocou-me a mim liderar e, no preciso momento em que trocámos de papeis, a qualidade da neve caiu a pique provocando um abrandamento radical no ritmo de escalada. A partir daí, a neve foi variando entre o medíocre e o ridiculamente podre mas, alguns truques simbióticos entre um réptil e uma retroescavadora foram solucionando as situações e vagarosamente fomos ganhando altitude.


Face norte do Kartik. "Directa Lusitana".


Devido ao razoável risco de deslizamento, reactivámos a segurança efectiva e algumas protecções foram sendo colocadas entre nós. A norma geral das protecções ditou que os pitons de rocha constituíam elementos de segurança à “prova de bomba”, os parafusos de gelo ofereciam uma segurança psicológica importante e as estacas de neve eram perfeitamente inúteis e tinham o mau hábito de se encaixarem entre as pernas de quem as transportava.


No final da "Directa Lusitana".


Apesar das dificuldades, os espíritos continuavam em alta. Eu até conseguia desfrutar dos fatigantes troços de trincheira de neve, sempre que pudesse conquistar mais dois metros, à razão de sete ou oito passos.

Um ultimo e esbelto esporão de neve relativamente aceitável (nível mediocre!) com uma inclinação e exposição inspiradores, colocou-nos na aresta final, a tão somente 20 metros do cume.


Esporão final da "Directa Lusitana".


Uma foto do esporão final e cume, tomada durante a descida.


Esta simpática montanha virgem reservara-nos uma ultima surpresa, uma espécie de cereja no topo do bolo: um cimo rochoso, com uma passagem de sete metros ligeiramente apimentada, que a Daniela negociou afoita, num misto entre as técnicas de “dry-tooling” e “repto-tooling”, até ser barrada por um pequeno tecto... a três metros do cimo! Uma passagem de rocha um pouco mais exposta constituia o problema mas, o cume de uma montanha está situado no seu ponto mais alto e não nos arredores, por isso...


Os curiosos passinhos finais.


“Ei, que bela reunião tens aqui montada!” Observei espirituoso ao chegar junto da Daniela.

Dois parafusos, artisticamente enroscados num troço de gelo protegido pelo tecto de rocha, exibiam mais de metade do seu comprimento do lado de fora. Estavam, ao menos, perfeitamente equalizados!

Minutos depois, abraçamo-nos felizes.


A Daniela no cume do Kartik.


Pela primeira vez na historia, seres humanos pisavam este troço do nosso planeta, uma cúspide mineral de um pico elegante e isolado.

Não experimentámos sensações esotéricas no cume, este não era um pico principal, nem a nossa ascensão constituía um feito de relevância extraordinária mas, ao nível pessoal, sentíamos ter concretizado algo.


Eu, no cume do Kartik.


A aventura ainda não tinha terminado. Faltava-nos ultrapassar aquele lugar comum proferido pela boca de todo o alpinista: a descida.

Agora, a neve encontrava-se nas piores condições possíveis e imaginárias.

As estacas eram inúteis e o único recurso de segurança consistia nas “ilhas” de rocha que afloravam ocasionalmente. Evidentemente, esses pequenos oásis de rocha raramente se encontravam nos locais ideais da vertente, ou seja, ao fim de cada 50 metros de corda. Resolvemos unir a cordeleta de apoio à corda principal. Desta forma, um de nós podia destrepar cerca de 100 metros com segurança de cima e assim aumentavam-se as hipóteses de encontrar um pedaço de rocha passível de aceitar um sólido piton de rocha. De seguida, o segundo de cordada destrepava “a pêlo” seguindo cuidadosamente “as escadas” abertas pelo predecessor.


100 metros de destrepe!


Entre destrepes e ocasionais rapeis lá fomos perdendo altura.

“Humm, talvez nesta fissura consiga colocar um bom piton!” No final de um rapel, examinava o seguinte local de reunião quando, de repente, por cima da minha cabeça ouvi um ruído assustadoramente familiar. Levanto a vista para ver uma torrente de neve húmida a deslizar exactamente em minha direcção. Sentia-me como um animal encurralado, sem lugar para fugir. Agarrei-me o melhor que pude ao pedaço de rocha disponível, enquanto a neve jorrava para cima de mim querendo empurrar-me ao vazio. A Daniela, um pouco mais acima e desviada do curso da torrente, gritava-me qualquer coisa que naquele momento não ouvia. Estava demasiado ocupado a entrar em pânico para entender o que me queria comunicar.

Tão depressa tudo começou como terminou.

Ainda a recompor-me do golpe de adrenalina provocado pela pequena avalanche, lá percebi o que a Daniela me estava a querer dizer. É que eu estava atado à ponta da corda! Mesmo que a força da neve me tivesse arrastado, não iria muito longe, de facto, nem sequer sairia do lugar. Naquele momento senti-me ridículo.

Com todos os sentidos em alerta máximo continuamos a nossa descida e a aventura terminou sem mais percalços.


De volta ao campo base.


Na caminhada de regresso ao campo base discutíamos o nome com que iríamos baptizar o pico.

No dia seguinte, a mastigar qualquer coisa, fruto da arte de cozinha de Indira, surgiu uma ideia…


KARTIK.


Os nomes:


A tradução literal do nome EKDANT é : “Um dente” ou “Dente singular”.

Este nome retrata um acontecimento da mitologia Hindu que conta como Ganesha, um deus com a cabeça de elefante, perdeu um dos seus dentes passando, a partir desse momento, a ser também conhecido como Ekdant.

O deus Shiva e a deusa Parvati, tinham dois filhos: Ekdant e Kartik, este ultimo, mais jovem que o seu irmão, tratava-se de um semi-deus guerreiro.

No vale que visitámos, já estavam representados três membros da familia de deuses: Neelkanth (outro nome de Shiva, que também representa um acontecimento lendário) com 6596 m, Parvati Parvat (a mulher de Shiva) - O nome Parvat, significa: montanha – com 6257 m e Ekdant com 6100 m.

Faltava o irmão mais novo para reunir toda a familia na mesma área. Assim, surgiu a inspiração para baptizar o pico virgem que acabáramos de escalar de KARTIK com 5115 m.

Desta forma, respeitávamos também a tradição local.


Paulo Roxo


Os topos:










terça-feira, julho 13, 2010

EKDANT 6100 m

EKDANT 6100 m.

O Ekdant é o pico da esquerda. Á direita está o Nelkant com 6500 metros.


Instalámos o campo base no dia 16 de Maio.

Tudo em nosso redor representava uma novidade. Os boulders dispersos, os prados, as montanhas altivas, as numerosas espécies de pássaros, todos conspiravam para formar um quadro de beleza extraordinária.


Vistas sobre o vale de Sathopanth. O campo base está lá embaixo!


Narayan Parbat com 5900 metros... talvez virgem.


Um momento de descanso no campo base, com os belos dos sacos cama gentilmente cedidos pela Deuter.


Gaju, o nosso oficial de enlace, não deixava de nos surpreender. Este sargento da policia de uma zona conturbada da India, magro como um pau, para além de uma vasta cultura sobre a mitologia local – para encanto da Daniela que o bombardeava com perguntas sempre que pousávamos no campo base – revelou uma percepção ecológica e ambiental fora do comum. Reconhecemos tratar-se de um sentimento genuíno, inocente, de uma lógica simples, longe da nossa consciência ocidentalizada e fabricada pelas modas actuais, longe das hipocrisias de auto-proclamados ambientalistas mais interessados em dizer que protegem a natureza do que em actuar no sentido de, efectivamente, a proteger.


Gaju, o nosso simpático oficial de enlace. Aqui em Haridwar.


Gaju costumava dizer: “Não compreendo como podem as pessoas visitar as montanhas, adorar as montanhas e, ao mesmo tempo, abandonar o seu lixo nas montanhas.”

Durante a sua permanência no campo base, Gaju (na companhia de Indira, o cozinheiro) passou muitas horas a recolher o pouco lixo que ia encontrando aqui e ali.


Indira. O nosso espectacular cozinheiro. Num momento de relax no campo base.


Apesar de virtualmente esquecido pelos alpinistas, o vale de Sathopanth era visitado por trekkers peregrinos Indianos que subiam de quando em vez, para visitar o lago sagrado de Sathopanth, localizado aos 4400 metros de altitude e a um par de horas do campo base.

Estes trekkers abandonavam por vezes algum lixo, na maioria envoltórios de chocolates, papéis, etc. Realmente era lixo muito ocasional, quase desdenhável relativamente ao que já tínhamos visto noutras montanhas.

Quando contámos a Gaju algumas das historias que testemunhamos nas temporadas anteriores no Paquistão, acerca do abandono intencional de lixo por parte de alpinistas supostamente “esclarecidos”, acerca do abandono planeado das cordas fixas que, todos os anos, são instaladas nas vias normais das montanhas com 8000 m. e acerca de um longo e triste etc, Gaju, olhou-nos perplexo. Na sua lógica simples e despretensiosa rapidamente concluiu: “That people are not climbers!”


Esmagando latas para as transportar, vale abaixo.


No dia seguinte ao da nossa chegada ao campo base realizámos a primeira caminhada de reconhecimento e aclimatação. Queríamos pôr-nos a mexer o quanto antes e era nossa intenção nunca permanecer muito tempo inactivos.

Não tardamos em encontrar a nossa linha de ascensão ao Parvati Parvat com 6257 m. e todavia por escalar. Tratava-se de uma afiada aresta de aparência acessível que conduzia a um elegante esporão de gelo de aspecto mais técnico. A via era ultra-lógica e parecia bastante segura de perigos objectivos. Na verdade, como parte integrante da face norte do Parvati, aquela era… “A LINHA”.

Que surpresas nos iria revelar?

A linha!


Ventos de oeste empurravam massas enormes de nuvens turbulentas, carregadas de humidade que chocavam contra a grande mole do Chaukamba. Eventualmente conseguiam ultrapassar a barreira de montanhas e prosseguiam o seu caminho deslizando o seu corpo fluido e negro através das vertentes nevadas e dos seracs suspensos. Nessas alturas os relâmpagos não se faziam esperar.

Aos 4750 metros tínhamos instalado o nosso primeiro campo, na esperança de, no dia seguinte, subir um pouco mais, para aclimatar, mesmo com o tempo instável, até o limite de segurança o permitir. Ás três da manhã, com o incremento da tempestade, dissiparam-se as nossas intenções. Durante um segundo, os clarões iluminavam o interior da tenda e os trovões tardavam anoréxicos segundos até se fazerem ouvir.


"Buga, que vem aí a tempestade!"


“Vamos embora! Temos de descer!”

Em poucos minutos calçámos as botas e, de frontal na cabeça, abandonamos o local, enfrentando os elementos que naquele momento exibiam uma demonstração de pujança.

O rasto do dia anterior há muito que tinha desaparecido e descíamos por azimute no meio do nevoeiro e de um nevão, iluminados pela luz fugaz dos relâmpagos. Em pouco tempo estávamos perdidos.

“Merda! Isto não se parece nada com o terreno de subida!”

Realizámos duas ou três novas tentativas de busca mas, nada nos surgia familiar.

Após algum tempo, optámos pela regra numero um dos manuais de sobrevivência: “Quando perdidos, retornar pelos mesmos passos até um ponto do terreno conhecido.”

Voltámos a subir. A copiosa nevada tentava apagar o nosso trilho dos últimos minutos. No momento exacto em que perdemos finalmente o rasto, deparámo-nos com a vertente de contornos familiares.

“Ok, agora já estamos no bom caminho!”

“Vamos para baixooo!”

“Espera, Daniela! Sabes o que me vai apetecer quando chegarmos ao campo base?”

“Não!?”

“Batatas fritas!”


O campo base pós-nevão.


Uma solitária tenda casa-de-banho após a tempestade.


Seguiu-se mais um dia de tempo instável.

O “ruidinho” electrónico característico do telefone satélite anunciava uma nova mensagem do “weatherman”. O Vítor Baia informava-nos que os dois dias seguintes seriam de muito bom tempo mas, que o mau tempo chegaria de novo, na tarde do terceiro dia.

No dia 21 de Maio voltámos a subir a suave pendente inicial que conduzia ao nosso campo 1. Sentiamo-nos em forma e isso deu-nos confiança para tentar o Parvati Parvat com apenas dois dias disponíveis.

Desta vez não parámos no “Buda camp” (nome com que carinhosamente baptizámos o campo 1) mas continuámos em direcção à aresta.




Três momentos durante a primeira parte da via.

Inicialmente a neve encontrava-se mais ou menos em condições mas, à medida que as horas passavam a consistência ia-se alterando, para pior. Tecnicamente, o terreno era fácil, entrecortado por ocasionais passos mais inclinados de neve e algumas curtas secções de rocha. No final da aresta, quando já suspirávamos por um local minimamente plano para montar a tenda, ergueu-se uma crista de rocha de aspecto complicado. Entre trepadas e destrepes lá fomos avançando em ziguezague através de blocos equilibrados. A corda servia como segurança efectiva. Se um de nós desse um escorregão, seria travado pelo segundo que, decerto estaria do lado oposto da aresta.


Tramos "misticos".


Antes da aresta rochosa.


Um rapel aos 5450 m, antes do "Budi col".


Um “dead-end” bloqueou-nos a passagem. Nada que um curto rapel não pudesse resolver. Ao meio dia chegámos ao colo, onde descobrimos o lugar perfeito para plantar a tenda. Baptizámos o campo de “Budi col” e, imediatamente começamos a derreter neve para hidratar.

Estávamos aos 5450 metros de altitude. Tínhamos realizado quase 1300 metros de desnível e explorado novo terreno, com algumas secções divertidas.

Tinha sido um bom dia.




"Budi camp" e hidratação.


Tenho de curvar bastante o pescoço para ver a Daniela que, por cima de mim, continua a avançar num terreno já bastante inclinado. O céu limpo mas sem lua tornam a noite muito escura. No meio da penumbra, o mundo resume-se ao arco de alcance da luz do frontal. Tudo o que fica para lá desse arco de luz, faz parte de um limbo desconhecido. Num dos momentos em que desliguei o frontal e após a vista se acostumar à escuridão, voltei a ter acesso à dimensão exterior. Nesse momento apercebi-me da nossa situação. “Olha! Não queres que te substitua?” Durante a escalada do esporão de gelo íamo-nos revezando na função de líder da cordada. Agora, a inclinação incrementava, a Daniela estava acima de mim e, todo o material de segurança disponível era eu quem o tinha. Unia-nos uma corda passada... em nada!

Corrigimos a situação e continuamos a ascensão.


Um aspecto diurno do esporão, com o nosso rasto.


A consistência da neve e do gelo ditavam as técnicas a utilizar, por vezes em piolet tracção, outras vezes a “quatro patas”.

Alcançámos o final do esporão ao amanhecer. Agora tínhamos uma visão periférica sobre a cordilheira de Garwhal e colossos como o Kamet, Nanda Devi e o Chaukamba, sobressaíam, exibindo o seu brilho matinal, orgulhosos da sua supremacia.


Vistas magnificas para o vale de Panpatia. Este é um dos picos virgens do outro lado.


O terreno parecia mais fácil mas, as atenções redobraram uma vez que à nossa esquerda e para sul precipitava-se uma grande vertente de neve de aspecto instável.

Lá embaixo, um vale verde e luxuriante marcava a entrada do vale do glaciar de Panpatia.

Era uma visão tranquilizadora, apesar da distância a que nos encontrávamos.


A aresta que conduz ao Ekdant.


Estamos metidos num planalto, a mais de 6000 metros de altitude.

As botas enterram-se quase por completo, mas não é difícil andar, desde que consigamos manter o ritmo lento e a neve não mude para pior.

Passou mais uma hora e agora estamos bem perto do cume... de um cume. Ainda não se trata do cume do Parvati Parvat. Chegámos ao cimo do chamado ante-cume, um “mamelão” situado aos 6150 metros mas, longe do cume verdadeiro.


No cimo do "Mamelão" aos 6150 m. O braço da Daniela tapa o cume real do Parvati Parvat e à esquerda... um ante-cume misterioso!



Entre nós e o cimo real da montanha ergue-se uma afiada aresta que se dirige a um novo ante-cume e só depois, uma nova aresta, protegida por algumas cornijas instáveis, conduz ao topo do Parvati. É uma estranha e desconcertante descoberta. Uma súbita formação geológica erguia-se, assim de repente, ante os nossos olhos. “Isto não vêm no mapa!” Nem sequer em nenhuma referência nos obsessivos estudos anteriores à expedição.

Afinal, o ante-cume verdadeiro encontrava-se ainda mais acima.

Era evidente que as anteriores tentativas não tinham passado deste mesmo ponto onde agora nos encontrávamos. Confirmámos isso dias depois, já no campo base.

Há alguns anos, uma equipa de militares Indianos alegou ter alcançado o cume do Parvati Parvat. Mais tarde descobriu-se que tinham mentido e a sua ascensão foi desconsiderada. Na verdade, haviam chegado a este mesmo ponto que apelidámos de “mamelão”.

Em 2008, Raja, o dono da agência que contratámos fez uma tentativa ligeira ao Parvati, alcançando, também ele o “mamelão”. Na altura considerou que tinha alcançado o “fore-summit” (ante-cume) da montanha.

Agora, descobrimos que afinal, o “mamelão” nem sequer constituia o “fore-summit”. Este cume secundário constituia uma protuberância anterior ao ante-cume.


Chaukamba ao amanhecer.


O pior não foi descobrir esta verdade absoluta. O pior foi descobrir que também nós, teriamos de renunciar e voltar para trás. Eram as oito da manhâ. Na cordilheira de Garwhal oito da manhâ corresponde a uma hora tardia, como viemos a constatar posteriormente, a duras penas.

Se decidíssemos continuar para cima iríamos arriscar-nos a realizar uma descida tarde e a más horas, exponencialmente perigosa.

Na nossa mente antecipavam-se imagens de uma descida épica, com dezenas de rapeis, num esporão de neve apodrecida pelo sol da tarde.

A prudência ordenou a retirada.

A poucos minutos de iniciar a descida, seguindo os nossos próprios passos veio-nos à memória aquele cume ligeiramente mais baixo, pelo qual passáramos na subida.

Horas antes, ultrapassadas as maiores dificuldades técnicas da via recém inaugurada, passáramos a uns trinta metros daquele cimo, contornando a sua vertente sul e descendo mais de uma centena de metros até alcançar o planalto superior que conduz ao Parvati Parvat.

As nossas energias estavam canalizadas para o Parvati e, nem sequer considerámos a hipótese de escalar aquela montanha esquecida.

Mas agora... e se?...

Após descansar para beber e comer algo, voltámos a colocar as mochilas ás costas.

Passo a passo, piolet a piolet, escalámos a vertente em direcção ao pico desconhecido.

O novo objectivo iluminou-nos o espirito e um renovado alento conduzia-nos até ao cume daquela montanha que julgávamos virgem.

Ultrapassamos os últimos metros imaculados e, pouco depois, ali estávamos num “cucuruto” de neve, isolado, selvagem e esquecido do mundo, a mais de 6000 metros de altitude.

Detivemo-nos um pouco naquele ponto, para saborear o momento.

“Será virgem? Seremos os primeiros seres humanos a pisar este cume?”

A própria pergunta conduzia a conceitos semânticos que conferiam um significado especial à própria aventura. Fosse ou não fosse um pico virgem (mais tarde descobrimos que a nossa, fora afinal a segunda ascensão da montanha), a sua condição queria dizer que esta parte dos Himalaias se encontrava reconhecidamente inexplorada.

Para nós, era o realizar de um sonho. Uma ascensão remota, numa região isolada. O Parvati não se tinha deixado vencer mas, o Ekdant com os seus nobres 6100 metros era “nosso”. Com o acréscimo de termos aberto uma via elegante e lógica.

Sim, estavamos contentes!


A Daniela no cume do Ekdant.

Eu, no cume do Ekdant.


Felizmente, a descida não teve uns contornos tão épicos como imagináramos.

A secção mais apreensiva, o final do esporão norte, mais técnico, tinha-se despojado de muita da neve acumulada e revelava um gelo azul e de alta qualidade.

Com uma única corda de 50 metros apenas podíamos realizar rapeis com 25 metros cada. No entanto, o percalço da “corda curta” foi compensado com instalações de rapel “à bomba” através de pontes de gelo (“Abalakov”).


Vivam os "Abalakovs"!


Descemos a um ritmo lento mas, sempre atentos a cada uma das acções: reunião instalada, auto-segurança, corda colocada no descensor, nós de segurança nas pontas das corda, descida. Sequências que se repetiam uma e outra vez. O clima ajudava e não iríamos precipitar nada. Cada manobra era concretizada com uma concentração hipnotizante.

Passámos o seguinte dia a destrepar a nossa via, a abrir uma trincheira colossal na neve e comigo a blasfemar violentamente de cada vez que me enterrava até ao peito (literalmente!).


Alguns troços de misto ao retroceder a "Portuguese route".


Eventualmente, chegámos ao campo base, onde nos esperavam sorridentes Gaju e Indira que nos cumprimentaram de uma forma casual, como se entretanto nada se tivesse passado.

Ainda a atirar as botas mal cheirosas para longe, só me ocorreu dizer:


Gaju corta-nos os pés no campo base!

“Indira! Potato French chips!”



Paulo Roxo


Os croquis





CONTINUA (3ª parte) COM A AVENTURA DO KARTIK...