quinta-feira, setembro 23, 2010

EXPLORAR

(Voltei. Não me é fácil sentir novamente o coração da cidade a bater. Desejo que a minha mente permaneça lá por mais algum tempo, por todo o tempo, mas os dentes da vida comum tragam-me a toda a velocidade.

Forço-me de tempos a tempos e por alguns instantes a respirar e nesses pequenos ápices, deixo-me sentir a realidade que ainda há bem pouco vivi.)


EXPLORAR

Cheirava a verde no campo base.

O corpo acordava pelas 6:30 da manhã porque queria que a mente vivesse aquele sonho. A tenda aquecia e os pássaros coloridos chilreavam e desenhavam já trilhos no céu. Dirigia-me à tenda cozinha, sorria um delicioso “Namasté” e bebia um café quente ao mesmo tempo que me deixava deslumbrar pela paisagem. Pouco depois, o delicioso cheiro a panquecas convidava-me a entrar na “tenda mess” para o pequeno-almoço. Depois de nós comiam os pássaros, que quase se atreviam a entrar na cozinha em busca de migalhas. Eu olhava-os e eles denunciavam felicidade. Os meus favoritos? Não sei se os azulões ou os mais ariscos multicores, com um chapéu branco na cabeça, como se lhes tivessem acertado com um pouco de neve.

À minha volta, circundando a verdura fresca do vale recortado por um límpido riacho, as montanhas, gigantescos castelos de rocha sarapintados pela brancura da neve. Aqueles enormes contrafortes pareciam mexer-se, ou seriam as nuvens que escoavam pela paisagem demasiado depressa.

Aqueles enormes contrafortes não serviam de abrigo quando soavam os violentos trovões. Ainda assim, no meio dos raios, recolhida no calor do saco-cama sentia-me no meu lugar, sentia conforto, paz. Sentia-me parte daquele imenso cenário vivo.

Quando deixava o aconchego do vale, movia-me de noite. O silêncio era tão profundo que só percebia o meu respirar, o ruído da neve por baixo das minhas botas, o som do piolet a perfurar o gelo. Quando as montanhas não eram iluminadas pela lua, a opacidade da paisagem era bonita só por se deixar adivinhar. Abarcava-me a vontade de chegar àquele ponto mais alto, invadia-me a ansiedade de ver o dia surgir, de ver o sol nascer, de ver as montanhas nascer, e de me ver renascer com elas.

Cada passo partilhava-o com ele, unia-nos uma linha (in)visível. Sentia-lhe o sentir, não precisávamos de trocar palavras, nem olhares. Ali, onde nunca existiu ninguém existíamos nós. Experimentávamos o sentimento de pertencer àquela montanha, como cada troço de neve que naquele lugar deixava passar o tempo, para voltar ao céu, e deixar-se cair sobre outra montanha qualquer.

Estávamos exactamente onde queríamos estar, a viver o que sempre quisemos viver. O não poder prever, pressagiar naquele lugar que os nossos olhos viam pela primeira vez na vida de todos os seres humanos, era o que sentíamos ser o expoente da palavra EXPLORAR. Explorávamos a montanha, a paisagem e a nós próprios. E a montanha deixava-nos conhecer o seu espaço mais privado, só a nós e a mais ninguém. Revelava-nos que os seus cantos mais robustos estavam por baixo daquele manto inconsistente que se desfazia a cada passo. Ao mesmo tempo que nos alertava, punha-nos à prova, como se quisesse saber se éramos dignos de estar ali, como se quisesse saber se podia confiar-nos os seus mais íntimos segredos. Aos poucos, ao percorrermos o seu espaço, escutávamos as narrações dos sigilos resguardados durante toda a sua longa existência. O júbilo de ter podido desfrutar de tão intensa partilha a três, eu, ele e a montanha, posso hoje transmitir-vos. Apenas o estar, é a forma mais pura da felicidade. Os segredos, esses, vão para sempre permanecer guardados por mim, por ele e por aquela montanha que senti mais casa, que a minha morada.



Daniela Teixeira

quinta-feira, setembro 09, 2010

SERRA DA ESTRELA REPORT

SERRA DA ESTRELA REPORT
E A ROCKTRIP...ZINHA.




Serra da Estrela. Julho/Agosto de 2010.

SHAKTIS AUSENTES

A corda corre no reverso. Lá em cima, o estalido do mosquetão anuncia uma nova protecção colocada. O meu pescoço tem de se dobrar bastante para trás, de forma a poder seguir a escalada.

De repente, um pé escorrega e vejo um vulto a cair desamparado. Um som seco inunda o ar e o vulto continua a cair. Não é normal. No segundo seguinte, tudo termina.

“Parece que te saltou um friend!”

Suspenso na corda, o surpreendido Bruno Gaspar, olha para cima, dando-se conta do sucedido. “Partiu-se a rocha!” Diz. “Devo ter metido o friend numa lastra e essa partiu-se!” Repete desalentado.

Esta nova tentativa de encadear a “Shaktis Ausentes”, terminou num voo… maior que o esperado.

A “Shaktis Ausentes” foi a primeira via completa na face nordeste do Cântaro Magro. Possui quatro lances. Normalmente, o primeiro largo realiza-se integralmente em escalada artificial. O segundo largo consiste numa primeira pança equipada que se ultrapassa em artificial e a continuação é feita já em livre, incluindo os dois seguintes lances. O destaque vai para o terceiro largo, de qualidade excepcional.


Timoteo a resolver o segundo lance em artificial.


Muito embora o primeiro lance tenha já sido encadeado por alguns escaladores da nossa praça (e arredores), faltava uma realização integral da via em livre. O Bruno sonhava com o projecto.

Imediatamente antes de partir para o Paquistão, o Bruno retornou com o Nuno “Larau” à Serra da Estrela.

De forma brilhante encadeou o primeiro largo, colocando os friends desde baixo mas, no segundo lance sofreu uma queda. Uns poucos passos extremos que incluíam um calcanhar elevado em equilíbrio critico e uma tracção em micro-presas (muito micro!) levaram a melhor sobre o escalador. O Bruno desceu à reunião e, de novo, lançou-se à acção conseguindo o encadeamento à segunda tentativa. Quanto a números, temos um 7c+ no primeiro lance e uma proposta de 7b no segundo.

Sem novidades, os escaladores terminaram os dois últimos lances e o Bruno protagonizou o FFA da época, na Serra da Estrela.




Duas fotos mais ou menos no mesmo passo. O Bruno Gaspar em cima e eu em baixo. Descubra as diferenças!


Em Agosto, eu e o Timóteo Mendes, partilhámos os largos da “Shaktis…”. A via foi realizada seguindo o bom, velho estilo original ou seja, em escalada artificial e escalada livre, q.b. A nossa recente repetição da via não constituí nenhuma noticia de relevo. Apenas para dizer que aproveitámos a escalada para reequipar as reuniões com pernos e plaquetes inox.

A “Shaktis Ausentes” serve também como linha de rapel da parede nordeste. As suas antigas reuniões já apresentavam alguma degradação, por isso, fica o up-date.


Os topos:



SECTOR SUPERIOR

Antes destes acontecimentos, um pouco mais acima, no sector Superior da face oeste do Cântaro, onde se podem escalar algumas das vias mais clássicas da Serra da Estrela, com um pouco de imaginação, ainda é possível vislumbrar umas linhas lógicas apetecíveis.

No dia 17 de Julho, o Paulo Alves, a Daniela e eu abrimos a “Os bons velhos”. O nome tem a ver com o facto de esta linha se encontrar entre a “Via dos bons” e a “Cunha velha”. Sendo mais honesto e preciso, a “Os Bons velhos” trata-se mais de uma variante a uma via clássica esquecida (que segue um diedro musgoso à direita da “Via dos bons” e cruza um tecto em artificial utilizando uns pitons caseiros). Desconheço os autores desta via. A “Os Bons velhos” não chegou a ser encadeada mas, o seu grau deverá rondar o 6c/c+. É uma linha directa que vale a pena.

No dia do mega-incêndio que incinerou toda a vertente norte da serra, estávamos o Timóteo e eu a abrir uma nova via situada à esquerda da arqui-clássica “Luso-Galaica”.


No terceiro largo da "Chuva de cinzas".


A coluna de fumo que se erguia por trás da Torre era impressionante e a sensação de apocalipse encobria todos os outros sentimentos, excepto talvez o sentimento de revolta. Enquanto escalávamos na parede superior do Cântaro, um numeroso grupo de malta do norte (Cardinal, Magno, Sérgio Martins, Zé Abreu, Natália, Sérgio, etc.) encontravam-se a abrir uns blocos, no amontoado de boulders que caracterizam a base entre o Cântaro Magro e a Placa Verde. Entre nós, uma nuvem cinzenta de fuligem envenenava a atmosfera. Era o dia da Volta a Portugal e, realmente ainda estou para compreender como podiam os ciclistas pedalar naquele ar quase irrespirável.


A névoa do apocalipse.


Apesar do ambiente deprimente, continuámos a actividade.

Empurrada pelo vento, uma chuva miudinha de cinzas começou a polvilhar as mochilas. A tragédia inspirou o nome desta nova via.

A “Chuva de cinzas”, segue uma linha lógica de fissuras, placa e diedro que passaram despercebidas até hoje, apesar da sua localização: mesmo ao lado da “Luso-Galaica”. Entre esta ultima e a “Via Nossa”, a “Chuva de cinzas” trata-se de uma proposta significativamente mais difícil que atinge o 6b+ no exigente terceiro largo.


Os topos:









NAVE DA MESTRA

No dia 13 de Agosto, o Timóteo e eu resolvemos explorar a Nave da Mestra, por cima das Cortes da A.S.E., no Vale de Manteigas.

Há uns anos, um passeio pela área revelou uma parede de quase 40 metros que prometia umas vias interessantes de bom granito e… sem musgo!

Nave da mestra com a "Parede branca" lá ao fundo.


Desta, resolvemos investigar mais a fundo. A aproximação revelou-se penosa e morosa. Aparentemente, as abundantes chuvas do passado Inverno resultaram num crescimento extraordinário da vegetação da serra, por isso, para aceder à base da parede tivemos de abrir caminho, estilo javali, por entre arbustos densos que ultrapassavam a nossa estatura.


Grrruuuunhik!!!


Persistimos. O longo dia terminou com um banho retemperador nas frias águas do rio, no Vale de Manteigas, depois de inaugurar duas belas vias ultra-óbvias na “Parede Branca”. Um diedro evidentíssimo que batizámos de “Diedro Cromagnon” e a “Carvalhinho”, que possui uns passos finais delicados, em placa, convenientemente protegida por uma plaquete.


Timoteo na bela fenda da "Carvalhinho".


Os topos:



HELENA

O ex-libris das novas aberturas é, pela sua morfologia, a magnifica “Helena”, com 285 metros, escalada na face sul do Cântaro Magro.

No dia 14 de Agosto, a Daniela, o Timoteo e eu iniciámos a aventura, ultrapassando uma lastra enorme, aparentemente fácil (não o é!), que marca o inicio da via e conduz a uma placa vertical onde foram colocadas duas plaquetes obrigatórias, utilizando uma máquina muito leve do Timoteo, uma Bosh com uma capacidade de bateria que permite colocar 4 ou 5 pernos. O ideal para aberturas rápidas.


O Timoteo e a Daniela a degustar uma maçã.


A ultrapassar a lastra caracteristica do primeiro lance.


A “conquista” da placa foi realizada em artificial, com o Timoteo a tentar “liberar” em segundo de cordada. O grau poderá rondar o 7a.

Os seguintes largos seguiram uma linha lógica de ascensão. Esta parte toca a clássica “Via do nascente” aberta por Paulo Alves há muitos anos.

Mais acima, depois de um lance dificil habilmente aberto pelo Timoteo, encontrámos uma fenda larga, muito larga. O primeiro “off-widht” da via. A entrada nesta fenda requereu alguns truques de perfil grotesco e esfoliante e foi realizado em livre, salvo um único passo... o primeiro, ao tirar o pé da reunião e com a cabeça enfiada na dita fissura.


A Daniela a chegar à quarta reunião.


Timoteo a abrir o quarto lance.


A abertura deste largo tardou bastante e, a desistência foi eminente. Já com os pés feitos em palha e em escalada livre... livre de preconceitos, ou seja, agarrado a tudo, logrei terminar e montar a reunião.

De cabeça enfiada na escalada!


Um inspirado Timoteo realizou em livre quase todo o lance e abriu o ultimo largo fácil até à plataforma que permite aceder à via normal do Cântaro: a “Via das escadas”.

Desde aqui retiramos pela escapatória lógica, prometendo retornar no dia seguinte, para terminar a nova via no cimo do Cântaro.

No dia seguinte, já sem a Daniela que teve de rumar para sul, escalámos os dois últimos lances.

O penúltimo largo foi um dos mais bonitos que escalei na Serra da Estrela. O largo é simplesmente excelente, de rocha inquestionável, limpo de musgo e com um crux em 6b+, constituído por uma placa de pequenas regletes com uma protecção natural “à bomba” situada no posicionamento perfeito.


Dois momentos do penultimo e excelente largo.


A via termina em beleza (sendo que o conceito de beleza difere bastante, segundo as opiniões!), com um “off-widht” do tipo: “E agora, como é que saio daqui?”

Uns passos finais extra-duros, desta protegidos com uma oportuna chapa providenciam provavelmente o grau mais elevado de toda a via, mesmo a chegar ao topo.


Na entrada do ultimo lance. Aqui ainda em chaminé: o "off-widht" vem a seguir!


Timoteo a ser devorado pela fenda.


Está previsto o retorno para escovar as secções mais sujas da “Helena” e acrescentar alguma que outra plaquete, sobretudo em reuniões.

O nome escolhido segue a tradição de nomes femininos com que batizámos as outras duas vias grandes que abrimos na face sul do Cântaro, a “Érika” e a “Lucrécia” e, ao mesmo tempo, está inspirado na letra de uma musica do genial grupo que canta em Mirandês, os Galandum Galundaina.


Os topos:


Paulo Roxo