BAÍA DO TERRAMOTO... A AVENTURA.
O Fernando Pereira conta aqui, em primeira mão, a sua aventura pessoal no Cabo da Roca.
Esta história está dividida em duas partes, porque a via também foi aberta em duas incursões. Uma primeira visita em perfeito estilo solitário e uma segunda intentona, com direito a "paparazzis".
O resultado final foi a abertura da...
SOLIDÃO CANINA (Parte um)
A caminho de um recôndito sector, enquadrado nas falésias a sul do Cabo da Roca, passa-se, obrigatoriamente, por um dos barrancos mais profundos desta parte da costa. Trata-se de, como é típico, de uma daquelas pequenas enseadas abruptas a que vamos chamando de “baías”.
Esta baía tem a particularidade de se situar ao fundo de umas respeitáveis arribas que superam a centena de metros de altura, em partes. Está num estado de fragmentação e instabilidade que faz crer que o sismógrafo arranhou com maior amplitude ali, mais do que em qualquer outra baía.
Parece incrivelmente ingrato como é que naquela cratera tão grande, não haveria possibilidades! O que se passa é que o ângulo destas pendentes não se aproxima o suficiente daquela que apreciamos. Os jardins e ravinas terrosas imperam sobre as secções de rocha (quase) inteiriça e não restam dúvidas de que todo o recorte de arriba está em pleno desmoronamento. Sente-se. Por vezes, com o vento, ouve-se. Tudo parece inviável.
Tudo parece inviável!
Tudo não! Um fio de esporão, ainda que mal definido, centraliza os olhares porque persegue um trajecto imaginável naquele granito laranja desarrumado. Uma faixa muito menos entrecortada por chorões ou veios de torrões. Sobe sucessivas e curtas rampas escalonadas, empilhadas umas sobre as outras, de aspecto bastante compacto para garantir uma possível progressão em “rocha-que-é-rocha” e também promissora de grandes apuros, na hora de buscar sítio para as protecções móveis.
A Baía em questão assinalada por cima dos Wind-surfistas e Kite-surfistas.
As fissuras e orifícios escasseiam em boa parte do esporão, que se afia progressivamente, até ao seu culminar, numa pontiaguda agulhinha que teima em não se deixar cair pela arriba abaixo.
Esta agulha recoberta no seu cume com uma camada de líquenes verde-vivo, destaca-se e afasta-se quanto pode da parede principal como para evidenciar que é a única portadora de uma linha contínua desde a praia de calhau, e que mais metros de escalada oferece, contrapondo-se aos restantes escassos segmentos dispersos, seus vizinhos. Este píncaro é o aliciante que faltava para estimular a iniciativa
No meio daquela imensa amalgama de pedra, disposta num raio de 300º, também outro criador-de-sensações (o Roxo) desmascarou um dia, com o afiado lápis do olhar, esta possibilidade, porém, adiando o projecto.
Tantas subidas e descidas pelo estradão não poderiam permitir suportar muito mais tempo a provocação, e chegou o dia, sem mais delongas ou investigações, de carregar uma segunda corda, descer ao fundo do abismo e ver se era verdadeira ou falsa, aquela arriba de pão-de-ló.
Sombras em aproximação.
Quando os companheiros para estas empresas não abundam e quando a vontade cresce até ao ponto certo, o engenho abre as portas e assim se sucede um primeiro lance de escalada em solitário com a técnica das malfadadas voltas fiel e as respectivas laçadas traiçoeiras.
Os metros sucedem-se, o esporão vai-se deixando explorar, não sem resistência e abundantes surpresas. Como aquela em que um friend, colocado como mandam os manuais, começa a escorregar juntamente com os blocos que compunham a sua fissura, ressaltando na corda, por pouco sem a cortar, entre outras peripécias.
Um momento da "Solidão". Note-se o assegurador atento, lá em baixo.
O segundo lance promete novas sensações, afinal o que parecia terreno muito tombado não o é tanto e os ressaltes escalonados são, conforme prometiam, bastante compactos e pobres de possibilidades de proteger. Buscando fraqueza de pendente e solidez de rocha, lá se vão sucedendo vários metros fáceis mas sem qualquer protecção. Estes metros e a falta de confiança no assegurador improvisado mandam avançar o berbeque e algumas técnicas artesanais de fixação. Passada meia corda chega-se à reunião sem bateria suficiente para montar uma coisa de palavra de honra. Dois pitons bem-vindos resolvem o assunto provisoriamente.
O descanso na reunião e uma palavrinha ao assegurador.
A sombra matinal que acompanhou durante o primeiro lance há muito que se mudou para outras paredes e agora o calor do Sol, associado aos morosos minutos de leitura de caminho, avaliação das opções e da colocação das rudimentares protecções, deixam bem claro que estratégia logística desta baía compromete muito a autonomia nestas condições solitárias. As dores nos pés são insuportáveis. Nas panturrilhas idem. O sistema dos nós revela-se um frete muito mais complicado que a própria escalada.
É é altura de fazer uma avaliação: O próximo e último lance aparenta ser mais curto mas não muito mais, uma vez que a parte cimeira da agulha não é visível e as distâncias iludem. Trata-se duns primeiros 10 metros de rampa e superação de blocos que levam a um muro mais vertical. Uma aparente fissura por baixo dum pequeno tecto. Uma secção de extraprumo levará à pirâmide do “cume”. Em alternativa, há as outras duas faces da pirâmide cimeira completamente instáveis e podres, sob os canais de escoamento formados pela sua separação da parede.
Pelo menos a parte da rampa seria possível subir, mas sem a certeza, que se veio a confirmar, de que não ia dispor de protecção fiável para fazer a eventual retirada. Assim sendo, toca para baixo que a vida é a assim mesmo. Já tinha tido muito mais do que esperava duma parede com tão desgraçada aparência.
TO BE CONTINUED...
Fernando Pereira