A LIÇÃO...
Shivling com aspecto Invernal.
Passaram nove meses desde o acidente.
Um pequenino pedaço de rocha sedimentar, formado há muitos
milhares de anos, esperava pacientemente, imóvel, até que, no dia 21 de
Dezembro, a minha mão esquerda resolveu agarrá-lo. Um simples acto, um simples
gesto e… todos os planos mais próximos alteraram-se radicalmente,
violentamente.
As pedras não pensam, simplesmente… estão lá. Volvidos estes
meses, dou por mim a pensar se aquele insignificante pedacinho deste planeta
não estaria destinado a ser arrancado da sua posição, naquele dia, durante um
segundo de desatenção. Um pedacinho que sobreviveu milénios, até finalmente
sair disparado e, com ele, levar-me também no seu inevitável trajecto, até ao
solo. As pedras não pensam, nem sentem, nem sofrem, nem gritam, portanto, para
aquele pedacinho de calcário, cair no chão, num baque seco, não significou
nada. Para a pedra, todo o processo não passou de uma transição entre estados
de equilíbrio, mas para mim…
A queda foi curta, pouco mais de dois metros, mas foi
inesperada. A pancada foi dura. Senti-a com violência e imediatamente me
apercebi que era grave. Gritei, gemi como uma criança. Chorei. Senti-me
desfalecer. Teria chegado a hora? A HORA? A ansiedade deixou-me tonto e, de
repente, a falta de ar…
O equipamento continuava perfeitamente organizado no meu
arnês. Nem tinha tido tempo de colocar uma única protecção entre mim e o chão.
Um metro mais acima e, provavelmente, nada tinha ocorrido. Foi uma queda de
escalada ridícula, curta e sem glória.
O João Gaspar abraçava-me, fazendo tudo por tudo para me
confortar e acalmar. O Fernando Pereira já tinha agarrado o telefone para ligar
para o 112. Entre choro e pânico, enfureci-me comigo próprio. O pensamento
viajava entre várias imagens, nenhuma agradável: “Como foste deixar acontecer
isto? Outra vez…”, “112, Bombeiros, Hospital…”. Pensei na Daniela, no susto que
lhe iria dar… outra vez. Pensei na minha mãe, na tristeza que lhe iria
provocar… outra vez. Pensei, repensei e, ofegante, tentava recompor-me. Ainda
nos braços do João, ouvia-o dizer repetidamente: “Não durmas, não durmas!” -
Agradeci ter ali um amigo, tão perto - Mas eu não dormia. De olhos fechados,
lembrei-me de respirar, profundamente, ritmadamente. Passados longos minutos, o
pânico deu lugar a inspirações profundas, cadenciadas. Por vezes a ansiedade
ganhava terreno e o irracional tomava as rédeas e aí, de novo, sentia-me
desfalecer. Mas pouco a pouco, voltava a mim.
Ouvi a voz da Daniela. Já tinha chorado, eu sabia-o.
Abraçou-me e beijou-me e disse-me algumas palavras para me acalmar. Nessa
altura já tinha feito o “check-up” a mim próprio: mover os dedos dos pés,
sentir as pernas. “Não estão dormentes!”, “Bom sinal, bom sinal!”
Horas no hospital. T.A.C. para verificar as fracturas. O
prognóstico não era totalmente mau. Fracturas em duas vertebras lombares, sem
atingir a medula, uma micro-fractura na bacia e uma (“desdenhável”) fractura do
metatarso do dedo mindinho do pé esquerdo, que mereceu gesso até ao joelho. A
mazela menos grave tornou-se na mais impressionante visualmente. Previsão: três
semanas deitado numa cama, depois, levantamento para cadeira de rodas, depois,
transição para muletas, depois, transição para uma única muleta, depois,
reaprender a andar, depois…
Os pais da Daniela, a Maria da Luz e o António Teixeira, a
quem estarei eternamente grato, cederam o seu quarto e a sua cama e, durante dois meses, transformei-me no hóspede principal.
A Teresa Leal e o João Gaspar tornaram-se nos amigos
incansáveis que ajudavam em tudo ao seu alcance. Temo que nunca irei poder
pagar esta dívida de sangue.
A Daniela transformou-se, de um dia para o outro, numa
profissional de enfermagem dedicada e atenciosa. As suas valências implicavam
todo o tipo de assistência. Os médicos coincidiam na opinião de que devia
manter-me deitado e mover-me o menos possível. O mais dramático de se estar
acamado eram as “não-idas” à casa de banho. Sentia-me a personagem principal de
uma comédia trágica. O problema era que a peça teatral envolvia o ritmo de vida
de toda a gente que me rodeava. E a Daniela, ali estava, sempre comigo, sempre
a acarinhar, sempre presente. Os dias foram passando, longos e intermináveis.
Transformaram-se em semanas.
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A primeira volta de cadeira de rodas foi celebrada na
esplanada do café da esquina. Enquanto a Daniela foi buscar os cafés, eu
apreciava as nuvens que atravessavam o céu. Sempre gostei das nuvens. Apesar de
me encontrar em ambiente urbano, aquele bocadinho de natureza trazia algum
alento. As nuvens constituem excelentes metáforas de liberdade. Formam-se onde
quer que seja, não obedecem a amarras e viajam para onde querem, ao sabor do
vento. Voam livres, sobre todos os países, sobre todos os povos. Aquela
primeira saída à rua, depois do acidente, transportou-me para um desses
momentos fugazes de liberdade. Não deixa de ser irónico serem por vezes as más
experiências da vida que despertam para os pequenos detalhes, aqueles que
realmente importam. Num breve instante, tinha-me juntado àquela nuvem, a
caminho do horizonte incerto.
A primeira voltinha.
As sessões de fisioterapia acompanharam as pequenas
caminhadas e saltitar agarrado a umas titubeantes muletas tornou-se parte da
minha rotina. Os meses iam passando.
Este não foi o meu primeiro acidente de escalada. O primeiro
ocorreu há quase 25 anos. Desse acidente, possuo memórias físicas, mas poucos
traumas psicológicos. Já foi há muito tempo. O tempo possui um mágico condão de
relativizar tudo. Uma dor imensa, transforma-se numa recordação longínqua,
presente, mas digerível. O tempo ensina a conviver com os próprios demónios e
fantasmas.
Daquele acidente, em Fevereiro de 1992, já não me recordo
das dores, essas desvaneceram-se com o correr dos anos. O que retenho é uma
lição e uma decisão. Era jovem e os sonhos fluíam a um ritmo frenético. As
dúvidas existencialistas também. Naquela altura, as duas pernas partidas num
voo de escalada em gelo, nos Pirinéus, obrigaram-me a reflectir sobre as
consequências de perseguir uma quimera. Valeria a pena escalar montanhas?
Segundo o médico-cirurgião - que me operou e atarraxou
alguns dos parafusos que ainda hoje possuo nos tornozelos - eu “jamais iria
voltar às escaladas”. Hoje em dia, estranhamente, esqueci quase por completo as
dores físicas do pós-operatório. O que recordo com clareza, são as lágrimas
vertidas naquela cama de hospital, na noite seguinte à “certeza absoluta”
vaticinada pelo médico.
Uma velha crença dos alpinistas dita que os anos de
afirmação são os primeiros cinco anos de actividade. Ou seja, durante esses
primeiros anos, um tipo anda constantemente a questionar se o esforço, os
sacrifícios e, sobretudo, o risco, valerão mesmo a pena. “É isto que eu quero?”
Segundo a crença, após os cinco anos, ou desistes e partes para outra, ou o
alpinismo entra-te na corrente sanguínea, como uma doença crónica da qual já
não podes escapar.
Em 1992, eu fazia pouco mais de cinco anos de actividade. Encontrava-me
no limiar da decisão suprema. “Continuar ou não?” Amargava-me a ironia de me ter
oferecido uma queda meteórica e aparatosa, em pleno inverno, no célebre corredor
de Gaube, para colocar em causa a minha capacidade de compromisso com o
alpinismo. Contudo, ali estava, deitado, engessado, com muito tempo para pensar
na vida.
Só larguei baba e ranho durante uma noite e a decisão estava
tomada. O médico bem podia ir bugiar e levar com ele as suas opiniões de mau
agouro!
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Agora, via-me confrontado com uma repetição do dilema.
Dispensaria de bom grado esta nova lição. Lição?
Em 1992, aprendi várias lições e tomei decisões cruciais que
decerto mudaram o rumo da minha vida. Mas agora, volvidas mais de duas décadas,
honestamente, custa-me descobrir qual é a lição a aprender. Tenho muito mais
experiência que naqueles anos, já experimentei todos os tipos de terrenos imagináveis,
sinto-me muito mais cauteloso e a minha capacidade de análise do risco nas
montanhas é infinitamente superior. No entanto, o peso de toda uma “escola” não
evitou o acidente. A queda deu-se logo no início da escalada e podia ter
acontecido em qualquer sector de escalada desportiva, imediatamente antes de
alcançar a primeira protecção.
Desta vez não identifiquei qualquer erro, não protegi de
forma deficiente (nem tive tempo), não estava distraído (creio), não escalava
em terreno que não dominava… e aconteceu!
Em jeito de conclusão sou obrigado a citar uma verdade de
“la palice”, bem retratada na terminologia popular, que diz: “Tantas vezes vai
o cântaro à fonte, que acaba por se partir”. Talvez seja isso. Talvez os
grandes desígnios do destino, que sempre buscamos quando acontecem coisas
graves, se resumam a um simples facto, tão insípido, quanto realista. A
verdade, retratada num prosaico ditado popular.
A Daniela Teixeira na face sul do Kapura, em plena abertura da "Sonhos intermináveis". Ao fundo, um mar de montanhas dos Himalaias, tudo por explorar.
Às páginas tantas, a verdade pode muito bem passar por uma
gigantesca roleta universal que vai rodopiando até parar aleatoriamente, num
nome qualquer, sem olhar a experiências, vivências ou credos.
“Escalar é arriscado”. “Escalar é perigoso”. “Ao escalar
podes morrer”. Então porquê continuar? Para quê dedicar-te a uma actividade que
te pode matar?
A verdade é que não tenho uma resposta convincente.
“Convincente?!” Pensando bem, quem quero eu convencer, senão
a mim próprio?
Este novo acidente que me podia ter morto ou (pior) colocado
numa cadeira de rodas para sempre, fez-me reflectir bastante acerca das consequências
de algumas das nossas escolhas e rumos. Por mais que afirmemos que são as
NOSSAS escolhas, que é o NOSSO rumo, a verdade é que as decisões irão implicar
aqueles que nos são mais próximos. Na verdade, quando penso nisso (como agora a
escrever), sinto alguma confusão. Uma espécie de conflito interno, um digladiar
de posições. Neste alvoroço mental, uma coisa parece certa: tentar justificar
as minhas escolhas com argumentos da lógica e da razão, parece-me uma tarefa
impossível. Com o tempo aprendi que é inútil tentar procurar razões para que
pessoas que não se identificam o mais mínimo com estas actividades, compreendam
porque andamos a trepar pedras e montanhas. Na eventualidade extrema de um
acidente, tentar oferecer uma explicação baseada na lógica chega a atingir
contornos ridículos. Tudo o que se consegue balbuciar soa a desculpa
esfarrapada e ficamos sempre com a sensação que o interlocutor vira a esquina
mais próxima a murmurar: “Este tipo é doido!”
Talvez escolha continuar porque, para mim, a escalada e o
alpinismo são os componentes de uma forma de arte. Uma combinação poderosa
entre as maravilhas da natureza, a aventura e a filosofia. Um emaranhado de
conceitos muito difíceis de traduzir. Algo a que me agarro com unhas e dentes,
para apaziguar um certo sentimento de culpa latente, por arrastar outros,
sobretudo os que me são próximos, a viver as consequências das minhas acções. A
aflição na cara da Daniela, quando me encarou prostrado no chão, naquela tarde
de Dezembro, rebota no meu cérebro e acaba por escorregar até ao estomago, onde
se acumulam sempre todas as apreensões. Que fazer então? É um dilema sem
resposta. As palavras não bastam.
Penachos de neve saem
das arestas das montanhas, projectadas pelo vento dos Himalaias. A silhueta
imponente do Shivling domina a paisagem. Ao fundo, ergue-se o pico Meru. Por
detrás do meu ombro esquerdo, não muito longe, ali está, a mole de aspecto
intransponível dos Bhagirathi. O planalto do campo base encontra-se coberto por
um manto de neve recém-caída. A Daniela encontra-se sentada, em posição de
lotus e de costas para mim, em meditação, voltada para a montanha. O silêncio
envolve tudo, quebrado apenas por uma suave brisa que levanta milhares de
cristais de neve, que cintilam ao serem trespassados pela luz de um sol
intenso. Aqui, realmente, é possível cheirar a paz. A mente esvazia-se. A
montanha… fazemos parte dela. Fazemos parte de algo grandioso. Somos mera
poeira das estrelas mas, tal como as montanhas, transformamo-nos no elemento
mais importante de todos. Nós e o mundo. Somos as montanhas! Impossível
explicar estas emoções simples e simultaneamente complexas com palavras. Um
novo olhar para os cumes gelados… uma pequena gralha negra corta o meu campo de
visão, flutua graciosa ao sabor do vento e, de súbito, sem sequer tomar a
consciência, acabo por descobrir aquilo que busco. Em breves instantes, consigo
avistar a razão… a minha razão.
Paz!
Após meses sem escalar uma pedra, a Daniela e eu, retornámos
à nossa querida Serra da Estrela. A pouco e pouco, vai-se retomando o
equilíbrio e o ritmo da vida.
Ainda não me encontro a cem por cento e, honestamente, não
creio que lá consiga chegar. Contentar-me-ei com uns bons noventa por cento. Já
me sentirei nas sete quintas se puder retornar ao mundo das altas montanhas,
com mais ou menos dores.
Entretanto, voltámos à escalada de exploração e já abrimos
algumas vias. Curiosamente, na parede, sinto-me muito estável e tranquilo.
Aparentemente o acidente não criou nenhum impacto na confiança. É possível que
o treino mental a que me obriguei durante a recuperação (“Não ficarás com
trauma! Não ficarás com trauma!”) tenha ajudado a alcançar este estado de
espírito.
Suspeito porém, que a razão fundamental para a aparente
tranquilidade em actividade, seja a aceitação simples de que “isto” é o que me
define. “Aceita e vive bem com a tua decisão!”
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A nuvem desapareceu de vista, escondeu-se por detrás de um
prédio cinzento. A nuvem é livre, não liga a fronteiras, faz parte de um todo
muito mais importante, faz parte do planeta, da natureza e das maravilhas.
Talvez aquela nuvem alcance as montanhas, ou talvez não. A nuvem é livre… a
Daniela chegou com os cafés. Olho para ela e intimamente agradeço conhecer o
amor. Pouco depois, sou de novo empurrado para casa na cadeira de rodas.
Sinto-me tranquilo…
…vi a nuvem.
Paulo Roxo
A lua cheia ilumina o campo base do Shivling. Por detrás, os imponentes Bhagirathi. E as nuvens... essas vão.