segunda-feira, outubro 05, 2015

A lição

A LIÇÃO... 



Shivling com aspecto Invernal.


Passaram nove meses desde o acidente.
Um pequenino pedaço de rocha sedimentar, formado há muitos milhares de anos, esperava pacientemente, imóvel, até que, no dia 21 de Dezembro, a minha mão esquerda resolveu agarrá-lo. Um simples acto, um simples gesto e… todos os planos mais próximos alteraram-se radicalmente, violentamente.
As pedras não pensam, simplesmente… estão lá. Volvidos estes meses, dou por mim a pensar se aquele insignificante pedacinho deste planeta não estaria destinado a ser arrancado da sua posição, naquele dia, durante um segundo de desatenção. Um pedacinho que sobreviveu milénios, até finalmente sair disparado e, com ele, levar-me também no seu inevitável trajecto, até ao solo. As pedras não pensam, nem sentem, nem sofrem, nem gritam, portanto, para aquele pedacinho de calcário, cair no chão, num baque seco, não significou nada. Para a pedra, todo o processo não passou de uma transição entre estados de equilíbrio, mas para mim…
A queda foi curta, pouco mais de dois metros, mas foi inesperada. A pancada foi dura. Senti-a com violência e imediatamente me apercebi que era grave. Gritei, gemi como uma criança. Chorei. Senti-me desfalecer. Teria chegado a hora? A HORA? A ansiedade deixou-me tonto e, de repente, a falta de ar…
O equipamento continuava perfeitamente organizado no meu arnês. Nem tinha tido tempo de colocar uma única protecção entre mim e o chão. Um metro mais acima e, provavelmente, nada tinha ocorrido. Foi uma queda de escalada ridícula, curta e sem glória.
O João Gaspar abraçava-me, fazendo tudo por tudo para me confortar e acalmar. O Fernando Pereira já tinha agarrado o telefone para ligar para o 112. Entre choro e pânico, enfureci-me comigo próprio. O pensamento viajava entre várias imagens, nenhuma agradável: “Como foste deixar acontecer isto? Outra vez…”, “112, Bombeiros, Hospital…”. Pensei na Daniela, no susto que lhe iria dar… outra vez. Pensei na minha mãe, na tristeza que lhe iria provocar… outra vez. Pensei, repensei e, ofegante, tentava recompor-me. Ainda nos braços do João, ouvia-o dizer repetidamente: “Não durmas, não durmas!” - Agradeci ter ali um amigo, tão perto - Mas eu não dormia. De olhos fechados, lembrei-me de respirar, profundamente, ritmadamente. Passados longos minutos, o pânico deu lugar a inspirações profundas, cadenciadas. Por vezes a ansiedade ganhava terreno e o irracional tomava as rédeas e aí, de novo, sentia-me desfalecer. Mas pouco a pouco, voltava a mim.
Ouvi a voz da Daniela. Já tinha chorado, eu sabia-o. Abraçou-me e beijou-me e disse-me algumas palavras para me acalmar. Nessa altura já tinha feito o “check-up” a mim próprio: mover os dedos dos pés, sentir as pernas. “Não estão dormentes!”, “Bom sinal, bom sinal!”
Horas no hospital. T.A.C. para verificar as fracturas. O prognóstico não era totalmente mau. Fracturas em duas vertebras lombares, sem atingir a medula, uma micro-fractura na bacia e uma (“desdenhável”) fractura do metatarso do dedo mindinho do pé esquerdo, que mereceu gesso até ao joelho. A mazela menos grave tornou-se na mais impressionante visualmente. Previsão: três semanas deitado numa cama, depois, levantamento para cadeira de rodas, depois, transição para muletas, depois, transição para uma única muleta, depois, reaprender a andar, depois…
Os pais da Daniela, a Maria da Luz e o António Teixeira, a quem estarei eternamente grato, cederam o seu quarto e a sua cama e, durante dois meses, transformei-me no hóspede principal.
A Teresa Leal e o João Gaspar tornaram-se nos amigos incansáveis que ajudavam em tudo ao seu alcance. Temo que nunca irei poder pagar esta dívida de sangue.
A Daniela transformou-se, de um dia para o outro, numa profissional de enfermagem dedicada e atenciosa. As suas valências implicavam todo o tipo de assistência. Os médicos coincidiam na opinião de que devia manter-me deitado e mover-me o menos possível. O mais dramático de se estar acamado eram as “não-idas” à casa de banho. Sentia-me a personagem principal de uma comédia trágica. O problema era que a peça teatral envolvia o ritmo de vida de toda a gente que me rodeava. E a Daniela, ali estava, sempre comigo, sempre a acarinhar, sempre presente. Os dias foram passando, longos e intermináveis. Transformaram-se em semanas.

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A primeira volta de cadeira de rodas foi celebrada na esplanada do café da esquina. Enquanto a Daniela foi buscar os cafés, eu apreciava as nuvens que atravessavam o céu. Sempre gostei das nuvens. Apesar de me encontrar em ambiente urbano, aquele bocadinho de natureza trazia algum alento. As nuvens constituem excelentes metáforas de liberdade. Formam-se onde quer que seja, não obedecem a amarras e viajam para onde querem, ao sabor do vento. Voam livres, sobre todos os países, sobre todos os povos. Aquela primeira saída à rua, depois do acidente, transportou-me para um desses momentos fugazes de liberdade. Não deixa de ser irónico serem por vezes as más experiências da vida que despertam para os pequenos detalhes, aqueles que realmente importam. Num breve instante, tinha-me juntado àquela nuvem, a caminho do horizonte incerto.


A primeira voltinha.


As sessões de fisioterapia acompanharam as pequenas caminhadas e saltitar agarrado a umas titubeantes muletas tornou-se parte da minha rotina. Os meses iam passando.
Este não foi o meu primeiro acidente de escalada. O primeiro ocorreu há quase 25 anos. Desse acidente, possuo memórias físicas, mas poucos traumas psicológicos. Já foi há muito tempo. O tempo possui um mágico condão de relativizar tudo. Uma dor imensa, transforma-se numa recordação longínqua, presente, mas digerível. O tempo ensina a conviver com os próprios demónios e fantasmas.
Daquele acidente, em Fevereiro de 1992, já não me recordo das dores, essas desvaneceram-se com o correr dos anos. O que retenho é uma lição e uma decisão. Era jovem e os sonhos fluíam a um ritmo frenético. As dúvidas existencialistas também. Naquela altura, as duas pernas partidas num voo de escalada em gelo, nos Pirinéus, obrigaram-me a reflectir sobre as consequências de perseguir uma quimera. Valeria a pena escalar montanhas?
Segundo o médico-cirurgião - que me operou e atarraxou alguns dos parafusos que ainda hoje possuo nos tornozelos - eu “jamais iria voltar às escaladas”. Hoje em dia, estranhamente, esqueci quase por completo as dores físicas do pós-operatório. O que recordo com clareza, são as lágrimas vertidas naquela cama de hospital, na noite seguinte à “certeza absoluta” vaticinada pelo médico.
Uma velha crença dos alpinistas dita que os anos de afirmação são os primeiros cinco anos de actividade. Ou seja, durante esses primeiros anos, um tipo anda constantemente a questionar se o esforço, os sacrifícios e, sobretudo, o risco, valerão mesmo a pena. “É isto que eu quero?” Segundo a crença, após os cinco anos, ou desistes e partes para outra, ou o alpinismo entra-te na corrente sanguínea, como uma doença crónica da qual já não podes escapar.
Em 1992, eu fazia pouco mais de cinco anos de actividade. Encontrava-me no limiar da decisão suprema. “Continuar ou não?” Amargava-me a ironia de me ter oferecido uma queda meteórica e aparatosa, em pleno inverno, no célebre corredor de Gaube, para colocar em causa a minha capacidade de compromisso com o alpinismo. Contudo, ali estava, deitado, engessado, com muito tempo para pensar na vida.
Só larguei baba e ranho durante uma noite e a decisão estava tomada. O médico bem podia ir bugiar e levar com ele as suas opiniões de mau agouro!

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Agora, via-me confrontado com uma repetição do dilema. Dispensaria de bom grado esta nova lição. Lição?
Em 1992, aprendi várias lições e tomei decisões cruciais que decerto mudaram o rumo da minha vida. Mas agora, volvidas mais de duas décadas, honestamente, custa-me descobrir qual é a lição a aprender. Tenho muito mais experiência que naqueles anos, já experimentei todos os tipos de terrenos imagináveis, sinto-me muito mais cauteloso e a minha capacidade de análise do risco nas montanhas é infinitamente superior. No entanto, o peso de toda uma “escola” não evitou o acidente. A queda deu-se logo no início da escalada e podia ter acontecido em qualquer sector de escalada desportiva, imediatamente antes de alcançar a primeira protecção.
Desta vez não identifiquei qualquer erro, não protegi de forma deficiente (nem tive tempo), não estava distraído (creio), não escalava em terreno que não dominava… e aconteceu!
Em jeito de conclusão sou obrigado a citar uma verdade de “la palice”, bem retratada na terminologia popular, que diz: “Tantas vezes vai o cântaro à fonte, que acaba por se partir”. Talvez seja isso. Talvez os grandes desígnios do destino, que sempre buscamos quando acontecem coisas graves, se resumam a um simples facto, tão insípido, quanto realista. A verdade, retratada num prosaico ditado popular.


A Daniela Teixeira na face sul do Kapura, em plena abertura da "Sonhos intermináveis". Ao fundo, um mar de montanhas dos Himalaias, tudo por explorar.


Às páginas tantas, a verdade pode muito bem passar por uma gigantesca roleta universal que vai rodopiando até parar aleatoriamente, num nome qualquer, sem olhar a experiências, vivências ou credos.  
“Escalar é arriscado”. “Escalar é perigoso”. “Ao escalar podes morrer”. Então porquê continuar? Para quê dedicar-te a uma actividade que te pode matar?
A verdade é que não tenho uma resposta convincente.
“Convincente?!” Pensando bem, quem quero eu convencer, senão a mim próprio?
Este novo acidente que me podia ter morto ou (pior) colocado numa cadeira de rodas para sempre, fez-me reflectir bastante acerca das consequências de algumas das nossas escolhas e rumos. Por mais que afirmemos que são as NOSSAS escolhas, que é o NOSSO rumo, a verdade é que as decisões irão implicar aqueles que nos são mais próximos. Na verdade, quando penso nisso (como agora a escrever), sinto alguma confusão. Uma espécie de conflito interno, um digladiar de posições. Neste alvoroço mental, uma coisa parece certa: tentar justificar as minhas escolhas com argumentos da lógica e da razão, parece-me uma tarefa impossível. Com o tempo aprendi que é inútil tentar procurar razões para que pessoas que não se identificam o mais mínimo com estas actividades, compreendam porque andamos a trepar pedras e montanhas. Na eventualidade extrema de um acidente, tentar oferecer uma explicação baseada na lógica chega a atingir contornos ridículos. Tudo o que se consegue balbuciar soa a desculpa esfarrapada e ficamos sempre com a sensação que o interlocutor vira a esquina mais próxima a murmurar: “Este tipo é doido!”
Talvez escolha continuar porque, para mim, a escalada e o alpinismo são os componentes de uma forma de arte. Uma combinação poderosa entre as maravilhas da natureza, a aventura e a filosofia. Um emaranhado de conceitos muito difíceis de traduzir. Algo a que me agarro com unhas e dentes, para apaziguar um certo sentimento de culpa latente, por arrastar outros, sobretudo os que me são próximos, a viver as consequências das minhas acções. A aflição na cara da Daniela, quando me encarou prostrado no chão, naquela tarde de Dezembro, rebota no meu cérebro e acaba por escorregar até ao estomago, onde se acumulam sempre todas as apreensões. Que fazer então? É um dilema sem resposta. As palavras não bastam.

Penachos de neve saem das arestas das montanhas, projectadas pelo vento dos Himalaias. A silhueta imponente do Shivling domina a paisagem. Ao fundo, ergue-se o pico Meru. Por detrás do meu ombro esquerdo, não muito longe, ali está, a mole de aspecto intransponível dos Bhagirathi. O planalto do campo base encontra-se coberto por um manto de neve recém-caída. A Daniela encontra-se sentada, em posição de lotus e de costas para mim, em meditação, voltada para a montanha. O silêncio envolve tudo, quebrado apenas por uma suave brisa que levanta milhares de cristais de neve, que cintilam ao serem trespassados pela luz de um sol intenso. Aqui, realmente, é possível cheirar a paz. A mente esvazia-se. A montanha… fazemos parte dela. Fazemos parte de algo grandioso. Somos mera poeira das estrelas mas, tal como as montanhas, transformamo-nos no elemento mais importante de todos. Nós e o mundo. Somos as montanhas! Impossível explicar estas emoções simples e simultaneamente complexas com palavras. Um novo olhar para os cumes gelados… uma pequena gralha negra corta o meu campo de visão, flutua graciosa ao sabor do vento e, de súbito, sem sequer tomar a consciência, acabo por descobrir aquilo que busco. Em breves instantes, consigo avistar a razão… a minha razão.


Paz!



Após meses sem escalar uma pedra, a Daniela e eu, retornámos à nossa querida Serra da Estrela. A pouco e pouco, vai-se retomando o equilíbrio e o ritmo da vida.
Ainda não me encontro a cem por cento e, honestamente, não creio que lá consiga chegar. Contentar-me-ei com uns bons noventa por cento. Já me sentirei nas sete quintas se puder retornar ao mundo das altas montanhas, com mais ou menos dores.
Entretanto, voltámos à escalada de exploração e já abrimos algumas vias. Curiosamente, na parede, sinto-me muito estável e tranquilo. Aparentemente o acidente não criou nenhum impacto na confiança. É possível que o treino mental a que me obriguei durante a recuperação (“Não ficarás com trauma! Não ficarás com trauma!”) tenha ajudado a alcançar este estado de espírito.
Suspeito porém, que a razão fundamental para a aparente tranquilidade em actividade, seja a aceitação simples de que “isto” é o que me define. “Aceita e vive bem com a tua decisão!”

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A nuvem desapareceu de vista, escondeu-se por detrás de um prédio cinzento. A nuvem é livre, não liga a fronteiras, faz parte de um todo muito mais importante, faz parte do planeta, da natureza e das maravilhas. Talvez aquela nuvem alcance as montanhas, ou talvez não. A nuvem é livre… a Daniela chegou com os cafés. Olho para ela e intimamente agradeço conhecer o amor. Pouco depois, sou de novo empurrado para casa na cadeira de rodas. Sinto-me tranquilo…
…vi a nuvem.


Paulo Roxo



A lua cheia ilumina o campo base do Shivling. Por detrás, os imponentes Bhagirathi. E as nuvens... essas vão.