segunda-feira, outubro 05, 2015

A lição

A LIÇÃO... 



Shivling com aspecto Invernal.


Passaram nove meses desde o acidente.
Um pequenino pedaço de rocha sedimentar, formado há muitos milhares de anos, esperava pacientemente, imóvel, até que, no dia 21 de Dezembro, a minha mão esquerda resolveu agarrá-lo. Um simples acto, um simples gesto e… todos os planos mais próximos alteraram-se radicalmente, violentamente.
As pedras não pensam, simplesmente… estão lá. Volvidos estes meses, dou por mim a pensar se aquele insignificante pedacinho deste planeta não estaria destinado a ser arrancado da sua posição, naquele dia, durante um segundo de desatenção. Um pedacinho que sobreviveu milénios, até finalmente sair disparado e, com ele, levar-me também no seu inevitável trajecto, até ao solo. As pedras não pensam, nem sentem, nem sofrem, nem gritam, portanto, para aquele pedacinho de calcário, cair no chão, num baque seco, não significou nada. Para a pedra, todo o processo não passou de uma transição entre estados de equilíbrio, mas para mim…
A queda foi curta, pouco mais de dois metros, mas foi inesperada. A pancada foi dura. Senti-a com violência e imediatamente me apercebi que era grave. Gritei, gemi como uma criança. Chorei. Senti-me desfalecer. Teria chegado a hora? A HORA? A ansiedade deixou-me tonto e, de repente, a falta de ar…
O equipamento continuava perfeitamente organizado no meu arnês. Nem tinha tido tempo de colocar uma única protecção entre mim e o chão. Um metro mais acima e, provavelmente, nada tinha ocorrido. Foi uma queda de escalada ridícula, curta e sem glória.
O João Gaspar abraçava-me, fazendo tudo por tudo para me confortar e acalmar. O Fernando Pereira já tinha agarrado o telefone para ligar para o 112. Entre choro e pânico, enfureci-me comigo próprio. O pensamento viajava entre várias imagens, nenhuma agradável: “Como foste deixar acontecer isto? Outra vez…”, “112, Bombeiros, Hospital…”. Pensei na Daniela, no susto que lhe iria dar… outra vez. Pensei na minha mãe, na tristeza que lhe iria provocar… outra vez. Pensei, repensei e, ofegante, tentava recompor-me. Ainda nos braços do João, ouvia-o dizer repetidamente: “Não durmas, não durmas!” - Agradeci ter ali um amigo, tão perto - Mas eu não dormia. De olhos fechados, lembrei-me de respirar, profundamente, ritmadamente. Passados longos minutos, o pânico deu lugar a inspirações profundas, cadenciadas. Por vezes a ansiedade ganhava terreno e o irracional tomava as rédeas e aí, de novo, sentia-me desfalecer. Mas pouco a pouco, voltava a mim.
Ouvi a voz da Daniela. Já tinha chorado, eu sabia-o. Abraçou-me e beijou-me e disse-me algumas palavras para me acalmar. Nessa altura já tinha feito o “check-up” a mim próprio: mover os dedos dos pés, sentir as pernas. “Não estão dormentes!”, “Bom sinal, bom sinal!”
Horas no hospital. T.A.C. para verificar as fracturas. O prognóstico não era totalmente mau. Fracturas em duas vertebras lombares, sem atingir a medula, uma micro-fractura na bacia e uma (“desdenhável”) fractura do metatarso do dedo mindinho do pé esquerdo, que mereceu gesso até ao joelho. A mazela menos grave tornou-se na mais impressionante visualmente. Previsão: três semanas deitado numa cama, depois, levantamento para cadeira de rodas, depois, transição para muletas, depois, transição para uma única muleta, depois, reaprender a andar, depois…
Os pais da Daniela, a Maria da Luz e o António Teixeira, a quem estarei eternamente grato, cederam o seu quarto e a sua cama e, durante dois meses, transformei-me no hóspede principal.
A Teresa Leal e o João Gaspar tornaram-se nos amigos incansáveis que ajudavam em tudo ao seu alcance. Temo que nunca irei poder pagar esta dívida de sangue.
A Daniela transformou-se, de um dia para o outro, numa profissional de enfermagem dedicada e atenciosa. As suas valências implicavam todo o tipo de assistência. Os médicos coincidiam na opinião de que devia manter-me deitado e mover-me o menos possível. O mais dramático de se estar acamado eram as “não-idas” à casa de banho. Sentia-me a personagem principal de uma comédia trágica. O problema era que a peça teatral envolvia o ritmo de vida de toda a gente que me rodeava. E a Daniela, ali estava, sempre comigo, sempre a acarinhar, sempre presente. Os dias foram passando, longos e intermináveis. Transformaram-se em semanas.

-----

A primeira volta de cadeira de rodas foi celebrada na esplanada do café da esquina. Enquanto a Daniela foi buscar os cafés, eu apreciava as nuvens que atravessavam o céu. Sempre gostei das nuvens. Apesar de me encontrar em ambiente urbano, aquele bocadinho de natureza trazia algum alento. As nuvens constituem excelentes metáforas de liberdade. Formam-se onde quer que seja, não obedecem a amarras e viajam para onde querem, ao sabor do vento. Voam livres, sobre todos os países, sobre todos os povos. Aquela primeira saída à rua, depois do acidente, transportou-me para um desses momentos fugazes de liberdade. Não deixa de ser irónico serem por vezes as más experiências da vida que despertam para os pequenos detalhes, aqueles que realmente importam. Num breve instante, tinha-me juntado àquela nuvem, a caminho do horizonte incerto.


A primeira voltinha.


As sessões de fisioterapia acompanharam as pequenas caminhadas e saltitar agarrado a umas titubeantes muletas tornou-se parte da minha rotina. Os meses iam passando.
Este não foi o meu primeiro acidente de escalada. O primeiro ocorreu há quase 25 anos. Desse acidente, possuo memórias físicas, mas poucos traumas psicológicos. Já foi há muito tempo. O tempo possui um mágico condão de relativizar tudo. Uma dor imensa, transforma-se numa recordação longínqua, presente, mas digerível. O tempo ensina a conviver com os próprios demónios e fantasmas.
Daquele acidente, em Fevereiro de 1992, já não me recordo das dores, essas desvaneceram-se com o correr dos anos. O que retenho é uma lição e uma decisão. Era jovem e os sonhos fluíam a um ritmo frenético. As dúvidas existencialistas também. Naquela altura, as duas pernas partidas num voo de escalada em gelo, nos Pirinéus, obrigaram-me a reflectir sobre as consequências de perseguir uma quimera. Valeria a pena escalar montanhas?
Segundo o médico-cirurgião - que me operou e atarraxou alguns dos parafusos que ainda hoje possuo nos tornozelos - eu “jamais iria voltar às escaladas”. Hoje em dia, estranhamente, esqueci quase por completo as dores físicas do pós-operatório. O que recordo com clareza, são as lágrimas vertidas naquela cama de hospital, na noite seguinte à “certeza absoluta” vaticinada pelo médico.
Uma velha crença dos alpinistas dita que os anos de afirmação são os primeiros cinco anos de actividade. Ou seja, durante esses primeiros anos, um tipo anda constantemente a questionar se o esforço, os sacrifícios e, sobretudo, o risco, valerão mesmo a pena. “É isto que eu quero?” Segundo a crença, após os cinco anos, ou desistes e partes para outra, ou o alpinismo entra-te na corrente sanguínea, como uma doença crónica da qual já não podes escapar.
Em 1992, eu fazia pouco mais de cinco anos de actividade. Encontrava-me no limiar da decisão suprema. “Continuar ou não?” Amargava-me a ironia de me ter oferecido uma queda meteórica e aparatosa, em pleno inverno, no célebre corredor de Gaube, para colocar em causa a minha capacidade de compromisso com o alpinismo. Contudo, ali estava, deitado, engessado, com muito tempo para pensar na vida.
Só larguei baba e ranho durante uma noite e a decisão estava tomada. O médico bem podia ir bugiar e levar com ele as suas opiniões de mau agouro!

------

Agora, via-me confrontado com uma repetição do dilema. Dispensaria de bom grado esta nova lição. Lição?
Em 1992, aprendi várias lições e tomei decisões cruciais que decerto mudaram o rumo da minha vida. Mas agora, volvidas mais de duas décadas, honestamente, custa-me descobrir qual é a lição a aprender. Tenho muito mais experiência que naqueles anos, já experimentei todos os tipos de terrenos imagináveis, sinto-me muito mais cauteloso e a minha capacidade de análise do risco nas montanhas é infinitamente superior. No entanto, o peso de toda uma “escola” não evitou o acidente. A queda deu-se logo no início da escalada e podia ter acontecido em qualquer sector de escalada desportiva, imediatamente antes de alcançar a primeira protecção.
Desta vez não identifiquei qualquer erro, não protegi de forma deficiente (nem tive tempo), não estava distraído (creio), não escalava em terreno que não dominava… e aconteceu!
Em jeito de conclusão sou obrigado a citar uma verdade de “la palice”, bem retratada na terminologia popular, que diz: “Tantas vezes vai o cântaro à fonte, que acaba por se partir”. Talvez seja isso. Talvez os grandes desígnios do destino, que sempre buscamos quando acontecem coisas graves, se resumam a um simples facto, tão insípido, quanto realista. A verdade, retratada num prosaico ditado popular.


A Daniela Teixeira na face sul do Kapura, em plena abertura da "Sonhos intermináveis". Ao fundo, um mar de montanhas dos Himalaias, tudo por explorar.


Às páginas tantas, a verdade pode muito bem passar por uma gigantesca roleta universal que vai rodopiando até parar aleatoriamente, num nome qualquer, sem olhar a experiências, vivências ou credos.  
“Escalar é arriscado”. “Escalar é perigoso”. “Ao escalar podes morrer”. Então porquê continuar? Para quê dedicar-te a uma actividade que te pode matar?
A verdade é que não tenho uma resposta convincente.
“Convincente?!” Pensando bem, quem quero eu convencer, senão a mim próprio?
Este novo acidente que me podia ter morto ou (pior) colocado numa cadeira de rodas para sempre, fez-me reflectir bastante acerca das consequências de algumas das nossas escolhas e rumos. Por mais que afirmemos que são as NOSSAS escolhas, que é o NOSSO rumo, a verdade é que as decisões irão implicar aqueles que nos são mais próximos. Na verdade, quando penso nisso (como agora a escrever), sinto alguma confusão. Uma espécie de conflito interno, um digladiar de posições. Neste alvoroço mental, uma coisa parece certa: tentar justificar as minhas escolhas com argumentos da lógica e da razão, parece-me uma tarefa impossível. Com o tempo aprendi que é inútil tentar procurar razões para que pessoas que não se identificam o mais mínimo com estas actividades, compreendam porque andamos a trepar pedras e montanhas. Na eventualidade extrema de um acidente, tentar oferecer uma explicação baseada na lógica chega a atingir contornos ridículos. Tudo o que se consegue balbuciar soa a desculpa esfarrapada e ficamos sempre com a sensação que o interlocutor vira a esquina mais próxima a murmurar: “Este tipo é doido!”
Talvez escolha continuar porque, para mim, a escalada e o alpinismo são os componentes de uma forma de arte. Uma combinação poderosa entre as maravilhas da natureza, a aventura e a filosofia. Um emaranhado de conceitos muito difíceis de traduzir. Algo a que me agarro com unhas e dentes, para apaziguar um certo sentimento de culpa latente, por arrastar outros, sobretudo os que me são próximos, a viver as consequências das minhas acções. A aflição na cara da Daniela, quando me encarou prostrado no chão, naquela tarde de Dezembro, rebota no meu cérebro e acaba por escorregar até ao estomago, onde se acumulam sempre todas as apreensões. Que fazer então? É um dilema sem resposta. As palavras não bastam.

Penachos de neve saem das arestas das montanhas, projectadas pelo vento dos Himalaias. A silhueta imponente do Shivling domina a paisagem. Ao fundo, ergue-se o pico Meru. Por detrás do meu ombro esquerdo, não muito longe, ali está, a mole de aspecto intransponível dos Bhagirathi. O planalto do campo base encontra-se coberto por um manto de neve recém-caída. A Daniela encontra-se sentada, em posição de lotus e de costas para mim, em meditação, voltada para a montanha. O silêncio envolve tudo, quebrado apenas por uma suave brisa que levanta milhares de cristais de neve, que cintilam ao serem trespassados pela luz de um sol intenso. Aqui, realmente, é possível cheirar a paz. A mente esvazia-se. A montanha… fazemos parte dela. Fazemos parte de algo grandioso. Somos mera poeira das estrelas mas, tal como as montanhas, transformamo-nos no elemento mais importante de todos. Nós e o mundo. Somos as montanhas! Impossível explicar estas emoções simples e simultaneamente complexas com palavras. Um novo olhar para os cumes gelados… uma pequena gralha negra corta o meu campo de visão, flutua graciosa ao sabor do vento e, de súbito, sem sequer tomar a consciência, acabo por descobrir aquilo que busco. Em breves instantes, consigo avistar a razão… a minha razão.


Paz!



Após meses sem escalar uma pedra, a Daniela e eu, retornámos à nossa querida Serra da Estrela. A pouco e pouco, vai-se retomando o equilíbrio e o ritmo da vida.
Ainda não me encontro a cem por cento e, honestamente, não creio que lá consiga chegar. Contentar-me-ei com uns bons noventa por cento. Já me sentirei nas sete quintas se puder retornar ao mundo das altas montanhas, com mais ou menos dores.
Entretanto, voltámos à escalada de exploração e já abrimos algumas vias. Curiosamente, na parede, sinto-me muito estável e tranquilo. Aparentemente o acidente não criou nenhum impacto na confiança. É possível que o treino mental a que me obriguei durante a recuperação (“Não ficarás com trauma! Não ficarás com trauma!”) tenha ajudado a alcançar este estado de espírito.
Suspeito porém, que a razão fundamental para a aparente tranquilidade em actividade, seja a aceitação simples de que “isto” é o que me define. “Aceita e vive bem com a tua decisão!”

------

A nuvem desapareceu de vista, escondeu-se por detrás de um prédio cinzento. A nuvem é livre, não liga a fronteiras, faz parte de um todo muito mais importante, faz parte do planeta, da natureza e das maravilhas. Talvez aquela nuvem alcance as montanhas, ou talvez não. A nuvem é livre… a Daniela chegou com os cafés. Olho para ela e intimamente agradeço conhecer o amor. Pouco depois, sou de novo empurrado para casa na cadeira de rodas. Sinto-me tranquilo…
…vi a nuvem.


Paulo Roxo



A lua cheia ilumina o campo base do Shivling. Por detrás, os imponentes Bhagirathi. E as nuvens... essas vão.

quinta-feira, agosto 06, 2015

Livro

SERRA DA ESTRELA, MONTANHISMO E ESCALADA INVERNAL. 
O LIVRO





O livro “Serra da Estrela, Montanhismo e Escalada Invernal”, é o primeiro guia que documenta em detalhe todos os Corredores de neve, Cascatas de gelo e vias de Escalada Mista existentes na Serra da Estrela.
Este é um trabalho único que abrange todo o espectro das dificuldades técnicas, desde simples ascensões de montanhismo para desfrutar de um belo dia em terreno nevado, passando pelas singulares e verticais escaladas em gelo, até às mais difíceis vias que combinam a neve, o gelo e a rocha.
Distribuídas por mais de 180 páginas, encontram-se as descrições dos itinerários com croquis desenhados sobre fotografias, descrições dos acessos, informações acerca do equipamento necessário e muitos outros conselhos úteis.
Várias fotografias de “acção” ilustram bem todo o contexto.
Para além dos aspectos técnicos para consulta e utilização no terreno, o livro inclui vários textos sobre escaladas Invernais vividas pelo autor e outros protagonistas, assim como histórias de acontecimentos caricatos, lendas fantásticas e curiosidades do imaginário de gerações de pastores e aventureiros.





FORMA DE APOIAR


Neste momento o guia “Serra da Estrela, Montanhismo e Escalada Invernal” está terminado e pronto para imprimir.
Falta no entanto o financiamento necessário para a sua publicação. Foi criada uma campanha para esse fim.
Para apoiar este projecto compre antecipadamente o livro (com uma dedicatória personalizada do autor) – 25 euros (incluí portes).
A aquisição do guia deverá ser realizada por transferência bancária para o NIB 003 508 480 000 666 316 102, e o comprovativo deverá ser enviado para o email: paulo.alpinismo@gmail.com, indicando o nome  e a morada. Confirmação da recepção garantida pelo autor.
O objectivo é publicar o livro até ao dia 30 de Outubro, para poder ser desfrutado e utilizado já no próximo Inverno. O dia exacto da publicação dependerá do montante conseguido durante a campanha de angariação de fundos. Estando reunidas as condições financeiras necessárias, a edição será efectuada antes da data mencionada.



PUBLICIDADE


Publicite a sua marca ou empresa nas páginas do livro destinadas para tal. Para preçário e mais informações contactar directamente o autor através do email: paulo.alpinismo@gmail.com





MEMÓRIA HISTÓRICA


A Serra da Estrela é a única que possui condições para o Montanhismo e Escalada Invernal no território Português. Trata-se de um diamante raro que merece ser considerado e respeitado.
Existem relatos escritos de actividades de montanhismo na Serra da Estrela desde finais do século XIX. Ao longo das décadas e atravessando vários estágios políticos e sociais, o montanhismo nos “Montes Hermínios” foi criando as suas raízes e a sua própria biografia. As gentes locais, as lendas, o montanhismo, a escalada e a Natureza, interligam-se de uma forma notável, criando uma narrativa única que associa em muitos aspectos o mundo real com o imaginário.
Este guia constitui uma singela homenagem aos que, ao longo dos tempos, se dedicaram a explorar as paisagens agrestes e selvagens desta montanha, ficando como um testemunho do que existiu e existe na “nossa” Serra da Estrela.
Quem adquirir este livro estará também a contribuir para o resgate e conservação da memória histórica de uma actividade profundamente enriquecedora.


Paulo Roxo





segunda-feira, maio 25, 2015

Padaria


A GRANDE AVENTURA FARINHENTA DA ARRÁBIDA. A "PADARIA"



- Epá! Ando mesmo a precisar de uma daquelas aventuras “à séria!” - desabafou o João, interrompendo a nossa conversa aborrecida acerca de acidentes, incidentes e mazelas várias.
- E já tens ideia da parede? - perguntei-lhe, enquanto tentava equilibrar-me nas “muletas”. Já estava num estágio mais avançado de recuperação do acidente mas, as aventuras verticais ainda não se vislumbravam no meu horizonte. - O Fernando é a pessoa ideal para te acompanhar!
- Sim, estava a pensar nele. Estás a ver aquela parede do Fojo, mesmo à direita da “Figos prós amigos?” – com o dedo, o João aponta a palma da mão direita, voltada para baixo – “Imagina uma via a atravessar aquele tecto gigante. Seria espectacular!”


A bela falésia!


A Parede dos Figos, na Serra da Arrábida, constitui uma das paredes mais remotas da nossa geografia. O que não quer dizer que esteja muito distante da civilização. Sem utilizar cordas, o único acesso existente para alcançar a base daquele pilar de calcário, é pelo mar. Adoptar o acesso por cordas requer algum planeamento e uma certa logística. Não existe propriamente uma linha de rapel que permita aceder comodamente à base da parede. Consequentemente, escapar dali também pode ser bastante complicado. Perante estas dificuldades, não se torna difícil compreender o considerável grau de compromisso envolvido. Mesmo assim, curiosamente, a “Parede dos Figos” já possui um bom número de vias de escalada. No entanto, todas elas foram equipadas desde o cimo e são vias “desportivas”.
Agora, a intenção era abrir uma nova via, desde baixo e, recorrendo o mínimo possível aos expansivos. Seria a primeira via do género, naquela parede, embora tenha havido uma anterior tentativa protagonizada pelo Ricardo Nogueira e por mim em 1998, que fracassou logo no segundo lance.


Fantásticas brumas matinais, num lugar mágico.


No dia 26 de Abril, o João Gaspar e o Fernando Pereira, iniciaram o trilho que se dirige para o topo da falésia, carregados com pesadas mochilas. Após alguma deliberação, a sua decisão foi a de instalar duas cordas fixas, entre a “Parede dos Figos” e a “Parede Branca”, como forma de ter uma linha de acesso e retirada – a jumarear! – durante o assédio.


A iniciar os rapeis de acesso à baía isolada. O plano "B" de acesso ou retirada às costas.


O Fernando iniciou as hostilidades e o que se seguiu foi um lance de escalada nervosa com um crux um pouco exposto, que foi resolvido em artificial.
Sem tempo para mais nesse dia, o Fernando desceu e tratou de sanear os blocos e pedras maiores, de forma a tornar a escalada mais “humana”.
Inicialmente, existiam duas estratégias possíveis para realizar a aventura. Uma das formas seria dormir junto à parede, desfrutando de umas noites bucólicas embaladas pelo “chap, chap” do mar tranquilo. Outra das hipóteses seria, no final de cada jornada, jumarear as cordas fixas e ir dormir a casa. A primeira hipótese seria a mais romântica e a segunda a que envolvia menos dores de cabeça em planeamentos. «Não nos apeteceu muito carregar o fogão, comida, sacos de dormir, colchonetes e demais parafernália para ir “viver” na parede. Por outro lado, a ideia de um jantarito como deve ser, acompanhado de uma “jola” fresquinha ou um vinho bem servido, também nos atraía bastante!» Se dúvidas houvessem, a ultima ilustração encarregava-se de as fazer cair por terra.


O Fernando a iniciar o primeiro lance.


O João a terminar de escalar o primeiro lance.


No dia seguinte, após “rapelar” as cordas estáticas, fixas para o acesso e, jumarear a corda de escalada, fixa na via até à primeira reunião, cabia ao João a responsabilidade de abrir o lance seguinte. O que encontrou foi uma rocha muito boa mas, de protecção precária. Felizmente, os micro-entaladores fizeram a sua função principal que consiste em providenciar alguma paz de espírito, animando o escalador a continuar, esperançado que o material aguente “o tranco”, produzido por uma hipotética queda. Nessa altura, os dois escaladores já tinham desistido da ideia de enfrentar o grande tecto “mesmo em frente” pois, obrigaria a gastar ali, todas as reservas de pernes e plaquetes disponíveis, o que entraria certamente em conflito com um dos objectivos almejados que consistia, precisamente, em furar a rocha o mínimo possível. 


O aspecto da primeira reunião.


De forma a alcançar um troço do tecto que permitisse a colocação de protecções naturais, o João realizou uma travessia, alcançou uma figueira característica e, pouco depois, concluiu o lance com um destrepe delicado em diagonal. Suspenso num gancho, o João içou a máquina e colocou os dois pernes que correspondem à segunda reunião da via. Quem não gostou muito da travessia final foi o Fernando que, ao retirar todo o equipamento, deparou-se com um destrepe desprotegido de arrepiar todos os cabelinhos. A duras penas e meio equilibrado em nada, o Fernando conseguiu colocar um novo perne, de forma a reduzir o grau de exposição daquele troço.


O João a iniciar o segundo lance, uma placa que prometia.


O Fernando assegura atentamente.


O João a chegar à figueira "salvadora". A segunda reunião viria a ser colocada ao virar da esquina, fora de vista.


Entretanto, algo se passava com o João. Não se sentia bem e, jumarear as cordas de escape, representou um esforço extremo. Mais tarde, em tom de graça o João dizia: “Estivemos para chamar uma equipa de resgate, tão mal me encontrava!” Nessa noite a febre atacou em cheio e o termómetro disparou para uns preocupantes 39º. Pensaram em adiar a aventura mas, o Fernando tinha-se esquecido da sua carteira com toda a documentação, no interior do petate, que se encontrava pendurado na segunda reunião da via. Os caminhos do azar tinham-se encarregado de obrigar os escaladores a retornar no dia seguinte. No mercy!
Felizmente, no dia seguinte, a febre do João tinha baixado e, lançaram-se de novo ao ataque embora a horas mais tardias. Desta feita, adoptaram outra técnica de acesso. Um pequeno bote de borracha, providencialmente deixado junto ao Fojo da Arrábida, serviu como veículo para chegarem à base da parede. Remar até ao grande projecto revelou-se uma alternativa bem mais divertida que a trabalheira de subir e descer as cordas fixas na falésia.


"Isto sim, é um acesso!"


Apesar das intenções iniciais de “ir apenas para recuperar a carteira do Fernando”, quando alcançaram a reunião, não resistiram ao factor: “já que aqui estamos.”
Era a vez do Fernando e calhou-lhe enfrentar o grande tecto que prometia uma dura luta de escalada artificial. Lentamente, laboriosamente, os pequenos friends e entaladores foram sendo instalados, testados e utilizados. Ía nascendo uma bonita costura que atravessava o grande tecto.


O Fernando a atacar o terceiro largo. Logo a seguir: "Artifo by the book!"


De repente: “Um friend solta-se e lá vai um Fernando voador para o vazio! Deu para perceber bem a sua emoção e foi uma bela imagem! Felizmente o entalador seguinte (embora precário!) susteve bem a queda. Depois de respirar um pouco e de se recompor, o rapaz lá voltou à sua tarefa… com vontade!”
Como as “conquistas” em técnica de escalada artificial são morosas, o dia “útil” terminou e, um perne estratégico serviu para fixar a corda, descer e deixar tudo preparado para a seguinte jornada.
Um bom jantar, algumas anedotas e uma noite bem dormida, precederam um novo ataque à parede prometida.


O Fernando, logo após o voo inesperado.


Agora, os escaladores estavam decididos a ultrapassar o grande tecto. As dificuldades mantinham-se austeras e encontrar boas fissuras, buracos e buraquinhos, revelou-se a maior dificuldade da missão. “No segundo dia, a progressão foi bem mais lenta do que no primeiro dia, pois havia partes de rocha bem instáveis e o Fernando demorou a conseguir superar alguns obstáculos difíceis mas, finalmente, conseguiu dobrar o tecto. Nesse ponto não via, nem ouvia o Fernando. Só via chover televisores e outros elctrodomésticos, até que, por fim, lá ouço o grito há muito esperado.” O Fernando tinha conseguido alcançar um nicho adequado para montar a reunião. 


Sessão de "jumareanço" com ambiente.


O Fernando, atarefado com a "conquista" do grande tecto da via.


O João, começou a desmontar as coisas e a preparar-se para iniciar a escalada atrás do seu companheiro. «Por meu lado, pensava que tinha a tarefa facilitada por ir em top mas, foi mais difícil do que esperava. A sujeira continuava a ser muita e o “desplome” era muito pronunciado, pelo que se tornava difícil a recolha do material... fui obrigado a colocar novos pontos várias vezes, para poder recolher os anteriores!»
Vencido o grande tecto, faltava o resto da parede. O dia esgotara-se e já não havia tempo
disponível para mais escaladas, limpezas e emoções verticais variadas. A conclusão do projecto foi adiada por uma semana.


"Aí vai o Petateeee!"


O João em segundo de cordada, a desmontar a duras penas o equipamento de progressão.


O rapel de categoria, desde a ultima reunião do dia.


Como forma de agilizar a logística de acesso, os dois escaladores resolveram aceder à sua última reunião através de um rapel diagonal desde o topo da falésia. A abertura do lance seguinte era da responsabilidade do João. Após uma curta tirada nervosa e algo exposta, que serviu como acesso aos lances seguintes, o João escalou um diedro e continuou por um esporão de presas excelentes que constituíram “momentos de puro prazer!” - apesar da sujidade sob a forma de uma areia fina, tipo farinha, que cobria praticamente todas as presas. A parede mantinha um cariz de extra-prumo e, essa característica não permitia que a água da chuva a lavasse de uma forma natural. Mesmo assim, o João conseguiu encadear devidamente o lance e, algum tempo depois, alcançou a pequena plataforma de reunião que ficou equipada com dois pernes.


O João, a escalar a pequena mas, exposta, travessia de acesso à ultima parte da via.


O João a escalar o belo quinto lance da via.


Uma das reuniões características.


Pouco depois de se juntar ao João, o Fernando começou a organizar o material no arnês, preparando-se para enfrentar o lance seguinte. «Sabe-se lá porquê, ao Fernando saíram sempre os largos em que foi necessário recorrer às “artimanhas” do artificial». Horas depois, estava ultrapassada uma placa bonita… e dura. O João resolveu experimentar “liberar” aquele lance. «Em top-rope, consegui realizar todos os movimentos em livre, embora sem encadear, pois tem um “crux” bastante duro que é preciso ler bem (algo difícil, ao mesmo tempo que recolhia o material). No entanto, deu para entender que nunca será menos de 6c+ ou 7a.»


O Fernando, no penultimo largo. A dificuldade mantinha-se constante.


Com o decorrer das horas, fazia-se tarde e, um último lance bastante mais fácil marcou o final da escalada. O abraço de “cume” assinou o termo daquela aventura vertical. “Neste último largo já não há fotos. Estávamos tão alegres que nem nos lembrámos de fazer uma foto de cume! Mas registamos na memória esses momentos bem passados.
Foi com um belíssimo pôr-do-sol que regressámos a casa!”


Paulo Roxo


Ficha Técnica

PADARIA
João Gaspar e Fernando Pereira entre os dias 26 e 29 de Abril e 5 de Maio de 2015


Como cada um dos lances têm a sua personalidade, resolveu-se atribuir-lhes nomes próprios.

L1. “Broa de Calcite” – 30m, 6c/7a
L2. “Figueirinha Implacável” – 15m, 6b
L3. “Febre Artifóide” – 25m, A2+/A3
L4. “Largo Curto” – 10m, V
L5. “Largo da Farinha” – 40m, 6b+
L6. “Largo Mitrado” – 25m, 6c+/7a
L7. “Sandochas” – 25m, V+/6a


Material:

Dobrar friends até ao nº4, Micro-friends essenciais, Jogo de entaladores, Tricams úteis, Fitas com fartura e estribos.
Não será má ideia levar um pequeno petate e uma “tag-line”.


Notas:

- As distâncias não foram medidas com exactidão mas a via terá aproximadamente 170 metros com as respectivas curvas. Na vertical, a parede tem uns 120 metros.
- Instalou-se 13 pernes no total. 1 na R1, 1 à chegada da R2, 2 na R2, 1 à saída da R2, 1 a meio do tecto, 2 na R3, 2 na R5, 1 a meio do L5, 2 na R6.
- Foram usados alguns pitons no L1 e para reforço da R4, todos foram removidos pelo que será aconselhável (não obrigatório) levar uns “pitonitos”…
- Os aberturistas acreditam que não irão surgir muitos voluntários para repetir a via, no entanto, consideram que a “Padaria” vale a pena pela aventura. Acreditam que pode ser forçada em livre depois de passar muita gente (!) e/ou ser convenientemente limpa.

Pede-se encarecidamente que, se por algum acaso, passar alguém por ali: Feedback, please!


Croquis:




Todas as fotos são da autoria do João Gaspar e Fernando Pereira

quarta-feira, janeiro 28, 2015

Um dia que não vou esquecer

UM DIA QUE NÃO VOU ESQUECER


"Teresa, como é? Vamos a Sesimbra beber uma caipirinha e trincar uma tosta mista? Epá está um sol que não podemos desaproveitar! E esperamos lá por eles (os nossos maridos, Paulo Roxo e João Gaspar), se calhar até de despacham cedo!”
Era o último Domingo antes do Natal, um dia pleno de Inverno com um céu azul de meter inveja a qualquer dia de verão. Nessa manhã, o sol aqueceu-me durante duas prazenteiras horas de corrida bem acompanhada por uma amiga do coração. O treino dessa manhã tinha-me saído melhor do que o imaginado, sentia-me feliz e cheia de energia, mesmo depois de mais de 20km percorridos.
Com o meu polegar esquerdo ainda a recuperar de uma cirurgia, as escaladas estavam adiadas ainda por muitos dias. O Paulo decidiu aproveitar a companhia do João Gaspar e do Fernando Pereira e juntos lançaram-se à abertura de novas vias numa pequena falésia nas proximidades de Sesimbra.


João Gaspar a realizar a primeira ascensão da "Torre do sino", alguns momentos antes do acidente (21/12/2014).


Com o “sim” da Teresa, quase voei até sua casa para juntas irmos desfrutar de uma bela tarde de sol.
O meu telemóvel toca mal estaciono o carro e no visor surge o nome do João Gaspar. Imediatamente pensei que os rapazes já poderiam estar despachados e veio-me à ideia uma caipirinha a 4.
À primeira palavra que proferiu, logo percebi pelo tom de voz que algo de muito mau tinha acontecido. “ Daniela, vais ter de ter muita calma”, “Estás sentada?” Não me recordo das palavras exactas com que começou a conversa, mas algumas fixaram-se no meu cérebro: “O Paulo caiu ao chão!” Recordo-me do medo que aquele tom de voz me incutiu. “O Paulo vai falar contigo.” Imediatamente, percebi-lhe as dores, o medo, e a vontade de me tranquilizar, algo que inevitavelmente já não era possível.
A Teresa apareceu logo de seguida, estava ainda a falar para o 112, o alarme estava dado, os bombeiros seguiam para o lugar ao mesmo tempo que nós. As lágrimas molhavam-me já a face. Tinha medo, muito medo do que iria encontrar. Percebi que havia o receio de um dano permanente na coluna, estava assustada, muito assustada. Num segundo, aquele dia de sol, toda aquela felicidade se transformou em algo que ainda hoje não consigo descrever com precisão. A mistura entre o medo do que iria encontrar, o medo do futuro, do futuro do Paulo, do meu futuro, uma profunda tristeza e um amor gigante que nada consegue derrubar e que me fazia conduzir depressa e focada.
Chegadas ao local onde se inicia o carreiro que acede à dita falésia, encontrámos o Fernando, que veio à estrada esperar os bombeiros, e estes, que tinham acabado de chegar.
Segui o mais depressa que pude até ao local onde estava o Paulo e o João, a cerca de 300m do lugar onde estacionei o carro. “Joããããoooo! Grita para eu perceber onde estão!”.
Quando acedi à base da parede e os vi no chão inclinado de pedra irregular, o meu coração tornou-se numa frágil peça de cristal que se partiu... numa infinidade de estilhaços. Mordi os lábios de dor ao aproximar-me, tentando controlar as emoções para não piorar uma situação que de imediato percebi ser muito grave. O Paulo estava ali, deitado de lado, pernas semi-encolhidas a tremer, e a gemer. O João, de tronco nu, abraçava-o com um tremendo carinho, amizade... transpirava emoção. Tinha-lhe colocado em cima toda a roupa disponível, inclusivamente a sua t-shirt. Estava ali em pleno dia de Inverno em tronco nu, dando tudo de si ao Paulo.
Não me recordo das palavras, apenas das emoções. Cheguei perto dos dois, beijei o Paulo com cuidado tentei dar-lhe uma força que não tinha. O João tentou transmitir-me alguma calma... tentaram os dois, mas o visualizar da situação apenas veio avivar os meus medos. Ainda assim, tentei não vacilar, tinha de manter a calma. O Paulo tremia, cada vez com mais frio. Tirei o casaco e a camisola que coloquei por cima das suas pernas e pés. Os bombeiros tardavam em chegar ao local e se pelo meu lado irracional não percebia porque – porque o carreiro era mesmo fácil de percorrer – os seus quilos extra trouxeram-me à realidade.
“Como é que o vamos tirar daqui?” Não me espantou a pergunta, mas frustrou-me e por dentro feriu-me, arranhou-me, cortou-me... dilacerou-me. Ele ali deitado, a escutar cada palavra, “Como é que o vamos tirar daqui?”. Estávamos num local de muito fácil acesso, no que respeita a locais de escalada. Um simples carreiro de 300m levava à estrada.
Pediram reforços a uma equipa de resgate “que tem mais de 30 anos de experiência”. Confesso, o primeiro pensamento que me assaltou foi: “Merda, queres ver que agora vem a brigada de terceira idade? Estamos fodidos!”. O tempo passava como imagino que se passe sempre nestas situações, lento, muito lento, com os minutos a quererem possuir muito mais que 60 segundos.
Chega a brigada de resgate, os quilos a menos que tinham em relação aos primeiros bombeiros estavam transformados em mais anos de vida. Os meus anseios, a minha angústia não diminuiu. Era notório que tudo iria ainda demorar. Liguei para uma médica amiga do Paulo que trabalha no Hospital de Setúbal, imaginando que quando saíssemos dali, seria para esse que o levariam. “Diz-lhes que a máquina de fazer TAC’s aqui está avariada! Que o levem directamente para o Garcia da Horta (Almada)”. Confirmada pelo INEM a avaria, o plano passou de imediato para o transporte até ao Garcia da Horta. Mas primeiro tinham de o tirar dali.
Após as avaliações de rotina nestes casos (“sente formigueiro...”, “dói-lhe onde...”), o Paulo foi transferido para a maca rígida e imobilizado. Cada gemido, cada grito de dor gelava-me por dentro e transferia todo o meu pensar para um futuro negro. Tinha deixado algures no tempo toda a minha capacidade de ser positiva. Por dentro o negativismo era total, por fora, não o transmitia em frente ao Paulo. Toda eu era naquele momento uma edificação do sentimento medo. Era tudo realidade e se nos filmes o terror vem acompanhado da noite e mau tempo, na vida real pode acompanhar um dia de sol e de perfeito céu azul.
Duas horas depois conduzia de Sesimbra para o Hospital de Almada. A Teresa ao meu lado a dar-me força, conforto, carinho. A escutar-me dizer vezes sem conta “...tenho tanto medo...”. Não imagino todo este pesadelo sem o apoio dela e do João Gaspar, chamar-lhes amigos soa-me agora a muito pouco.




Os amigos João Gaspar e Teresa Leal sempre presentes. Assim foi a passagem de ano (31/12/2014 – 01/01/2015)


Do hospital lembro-o ali, deitado numa maca num corredor cheio de gente, alheia ao sofrimento de outros, de todos. O Paulo era o centro do meu universo. Sabia que não lhe conseguia evitar toda aquela dor que lhe saía do corpo, do olhar. Por breves instantes, quase desfaleci. Senti o meu corpo a abandonar-me, fui forçada a afastar-me para não cair no chão frio das urgências. Busquei algo com açúcar para me recuperar, enfiei umas moedas numa máquina e engoli um sumo. Para que o Paulo não se apercebesse, levei uma água para ele. Apesar de não lhe poder dar de beber, podia molhar-lhe os lábios que estavam secos e dar-lhe a chupar uma compressa embebida em água.
A ansiedade consumia-me, quebrava-me. Aquela espera pelos resultados do TAC, dos raios X era infindável. As primeiras notícias fizeram-me chorar por dentro, dilaceraram-me. Ao Paulo, não queria mostrar uma lágrima “...duas vértebras lombares fracturadas, uma fissura na anca, metatarso do dedo mindinho do pé esquerdo...”, e a única coisa que se fixou no meu cérebro foi: “duas vértebras lombares fracturadas”. Todo o meu mundo desabou. A ansiedade que pensei estar no auge aumentou ainda mais. Saía e entrava nas Urgências para dar as notícias à Teresa, ao João e aos meus pais que entretanto tinham chegado. Aproveitava as saídas para deixar escorregar as lágrimas antes de voltar para perto do meu amor, do meu cordada que agora estava ali, longe, muito longe dos nossos sonhos.
Só horas mais tarde chegaram as palavras que todos queríamos ouvir “não há danos ao nível da medula, são fracturas simples”. Respirei de alívio, sabia que a partir daqui a nossa jornada iria ser longa, dura, mas com o tempo, muito tempo, tudo regressaria à tão desejada rotina, tudo voltaria ao normal. Tínhamos agora pela frente a maior montanha de todas. Teríamos que a escalar juntos. Esta era uma montanha que iria necessitar acima de tudo muita paciência, muita união, muito amor.
O dia, nesta altura já de noite, ainda não tinha terminado. Entre confusões havia nesta altura duas perspectivas, ou o acompanhamento no Hospital Garcia da Horta (que não me agradava por completo porque os médicos que o atenderam me pareciam inexperientes), ou a transferência para o Hospital do Barreiro. A conselho de uma médica amiga, que garantiu que o serviço de ortopedia era melhor no Hospital do Barreiro, esperámos até às 23:00 para a transferência para este hospital.
No Hospital do Barreiro tudo correu bem, o atendimento foi rápido e os 2 ortopedistas que estavam nessa noite nas urgências deixaram-me uma excelente impressão.


À espera para uma consulta de neurocirurgia no Hospital Garcia da Horta...ainda na primeira fase da recuperação (29/12/2014).


O veredicto do Paulo no final da noite foi o seguinte, 3 semanas de cama (sem se levantar para nada!) seguidas de 3 meses com colete de reforço para as costas, com passagem pela cadeira de rodas e por um par de canadianas (à conta das fracturas no metatarso do dedo mindinho do pé esquerdo!). O veredicto para mim foi de pelo menos 3 semanas de enfermeira a acompanhá-lo!
“E vai hoje para casa, como lhe disseram no Hospital de Almada?”, indaguei. “Nem pensar! Com sorte sai daqui a 2 dias e ainda vai a casa comer uma rabanada pelo Natal.”... tendo em conta o estado em que ficou, pareceu-me uma resposta coerente.
Cerca das duas da manhã dirigi-me para casa. A cama pareceu-me grande demais, vazia demais. Podia ter ido sozinha, mas a Teresa acompanhou-me, quis estar, quis acarinhar-me, fazer-me sentir o conforto, o aconchego da verdadeira amizade... amizade soa-me agora a coisa pouca, comparado com esse enorme sentimento que por dentro tenho pela Teresa Leal e João Gaspar.
Destes dias tão acres, retenho também boas memórias, são as que estão com estes dois amigos de coração grande, e as que estão com os meus queridos pais, que tanto e tanto nos apoiaram e apoiam. Se calhar há situações que nos surgem na vida, para fortalecer uniões.
De algo triste, retenho o que de mais belo existe na vida, o amor e a amizade.



O meu cordada na segunda fase de recuperação – cadeira de rodas. E viva os amigos, sempre disponíveis para dar uma ajuda :). Aqui a Joana a fazer um servicinho ao domicílio.


A nossa primeira grande aventura pós-acidente – a primeira saída à rua num belíssimo dia de sol!!!! Cadeira de rodas nas ruas do nosso país é uma verdadeira aventura...e bem à nossa maneira...sempre à descoberta :) (24/01/2015).


 Início da terceira fase de recuperação – a passagem da cadeira de rodas para as canadianas. Os primeiros passos (24/01/2015).


 E daqui para a frente...É SEMPRE A MELHORAR!!!...YEAHHHH!!!!


Daniela Teixeira