A GRANDE AVENTURA FARINHENTA DA ARRÁBIDA. A "PADARIA"
- Epá! Ando mesmo a precisar de uma daquelas aventuras “à séria!” - desabafou o João, interrompendo a nossa conversa aborrecida acerca de acidentes, incidentes e mazelas várias.
- E já tens ideia da
parede? - perguntei-lhe, enquanto tentava equilibrar-me nas “muletas”. Já
estava num estágio mais avançado de recuperação do acidente mas, as aventuras
verticais ainda não se vislumbravam no meu horizonte. - O Fernando é a pessoa
ideal para te acompanhar!
- Sim, estava a
pensar nele. Estás a ver aquela parede do Fojo, mesmo à direita da “Figos prós
amigos?” – com o dedo, o João aponta a palma da mão direita, voltada para baixo
– “Imagina uma via a atravessar aquele tecto gigante. Seria espectacular!”
A bela falésia!
A Parede dos Figos,
na Serra da Arrábida, constitui uma das paredes mais remotas da nossa
geografia. O que não quer dizer que esteja muito distante da civilização. Sem
utilizar cordas, o único acesso existente para alcançar a base daquele pilar de
calcário, é pelo mar. Adoptar o acesso por cordas requer algum planeamento e
uma certa logística. Não existe propriamente uma linha de rapel que permita
aceder comodamente à base da parede. Consequentemente, escapar dali também pode
ser bastante complicado. Perante estas dificuldades, não se torna difícil
compreender o considerável grau de compromisso envolvido. Mesmo assim,
curiosamente, a “Parede dos Figos” já possui um bom número de vias de escalada.
No entanto, todas elas foram equipadas desde o cimo e são vias “desportivas”.
Agora, a intenção
era abrir uma nova via, desde baixo e, recorrendo o mínimo possível aos
expansivos. Seria a primeira via do género, naquela parede, embora tenha havido
uma anterior tentativa protagonizada pelo Ricardo Nogueira e por mim em 1998,
que fracassou logo no segundo lance.
Fantásticas brumas matinais, num lugar mágico.
No dia 26 de Abril, o João
Gaspar e o Fernando Pereira, iniciaram o trilho que se dirige para o topo da
falésia, carregados com pesadas mochilas. Após alguma deliberação, a sua
decisão foi a de instalar duas cordas fixas, entre a “Parede dos Figos” e a
“Parede Branca”, como forma de ter uma linha de acesso e retirada – a jumarear!
– durante o assédio.
A iniciar os rapeis de acesso à baía isolada. O plano "B" de acesso ou retirada às costas.
O Fernando iniciou
as hostilidades e o que se seguiu foi um lance de escalada nervosa com um crux
um pouco exposto, que foi resolvido em artificial.
Sem tempo para mais
nesse dia, o Fernando desceu e tratou de sanear os blocos e pedras maiores, de
forma a tornar a escalada mais “humana”.
Inicialmente,
existiam duas estratégias possíveis para realizar a aventura. Uma das formas
seria dormir junto à parede, desfrutando de umas noites bucólicas embaladas
pelo “chap, chap” do mar tranquilo. Outra das hipóteses seria, no final de cada
jornada, jumarear as cordas fixas e ir dormir a casa. A primeira hipótese seria
a mais romântica e a segunda a que envolvia menos dores de cabeça em planeamentos.
«Não nos apeteceu muito carregar o fogão, comida, sacos de dormir, colchonetes
e demais parafernália para ir “viver” na parede. Por outro lado, a ideia de um
jantarito como deve ser, acompanhado de uma “jola” fresquinha ou um vinho bem
servido, também nos atraía bastante!» Se dúvidas houvessem, a ultima ilustração
encarregava-se de as fazer cair por terra.
O Fernando a iniciar o primeiro lance.
O João a terminar de escalar o primeiro lance.
No dia seguinte,
após “rapelar” as cordas estáticas, fixas para o acesso e, jumarear a corda de
escalada, fixa na via até à primeira reunião, cabia ao João a responsabilidade
de abrir o lance seguinte. O que encontrou foi uma rocha muito boa mas, de
protecção precária. Felizmente, os micro-entaladores fizeram a sua função
principal que consiste em providenciar alguma paz de espírito, animando o
escalador a continuar, esperançado que o material aguente “o tranco”, produzido
por uma hipotética queda. Nessa altura, os dois escaladores já tinham desistido
da ideia de enfrentar o grande tecto “mesmo em frente” pois, obrigaria a gastar
ali, todas as reservas de pernes e plaquetes disponíveis, o que entraria
certamente em conflito com um dos objectivos almejados que consistia,
precisamente, em furar a rocha o mínimo possível.
O aspecto da primeira reunião.
De forma a alcançar um troço
do tecto que permitisse a colocação de protecções naturais, o João realizou uma
travessia, alcançou uma figueira característica e, pouco depois, concluiu o
lance com um destrepe delicado em diagonal. Suspenso num gancho, o João içou a
máquina e colocou os dois pernes que correspondem à segunda reunião da via.
Quem não gostou muito da travessia final foi o Fernando que, ao retirar todo o
equipamento, deparou-se com um destrepe desprotegido de arrepiar todos os
cabelinhos. A duras penas e meio equilibrado em nada, o Fernando conseguiu
colocar um novo perne, de forma a reduzir o grau de exposição daquele troço.
O João a iniciar o segundo lance, uma placa que prometia.
O Fernando assegura atentamente.
O João a chegar à figueira "salvadora". A segunda reunião viria a ser colocada ao virar da esquina, fora de vista.
Entretanto, algo se
passava com o João. Não se sentia bem e, jumarear as cordas de escape,
representou um esforço extremo. Mais tarde, em tom de graça o João dizia: “Estivemos
para chamar uma equipa de resgate, tão mal me encontrava!” Nessa noite a febre
atacou em cheio e o termómetro disparou para uns preocupantes 39º. Pensaram em
adiar a aventura mas, o Fernando tinha-se esquecido da sua carteira com toda a
documentação, no interior do petate, que se encontrava pendurado na segunda
reunião da via. Os caminhos do azar tinham-se encarregado de obrigar os
escaladores a retornar no dia seguinte. No mercy!
Felizmente, no dia
seguinte, a febre do João tinha baixado e, lançaram-se de novo ao ataque embora
a horas mais tardias. Desta feita, adoptaram outra técnica de acesso. Um
pequeno bote de borracha, providencialmente deixado junto ao Fojo da Arrábida,
serviu como veículo para chegarem à base da parede. Remar até ao grande
projecto revelou-se uma alternativa bem mais divertida que a trabalheira de
subir e descer as cordas fixas na falésia.
"Isto sim, é um acesso!"
Apesar das intenções
iniciais de “ir apenas para recuperar a carteira do Fernando”, quando
alcançaram a reunião, não resistiram ao factor: “já que aqui estamos.”
Era a vez do
Fernando e calhou-lhe enfrentar o grande tecto que prometia uma dura luta de
escalada artificial. Lentamente, laboriosamente, os pequenos friends e
entaladores foram sendo instalados, testados e utilizados. Ía nascendo uma
bonita costura que atravessava o grande tecto.
O Fernando a atacar o terceiro largo. Logo a seguir: "Artifo by the book!"
De repente: “Um
friend solta-se e lá vai um Fernando voador para o vazio! Deu para perceber bem
a sua emoção e foi uma bela imagem! Felizmente o entalador seguinte (embora
precário!) susteve bem a queda. Depois de respirar um pouco e de se recompor, o
rapaz lá voltou à sua tarefa… com vontade!”
Como as “conquistas” em técnica de escalada artificial são
morosas, o dia “útil” terminou e, um perne estratégico serviu para fixar a
corda, descer e deixar tudo preparado para a seguinte jornada.
Um bom jantar,
algumas anedotas e uma noite bem dormida, precederam um novo ataque à parede
prometida.
O Fernando, logo após o voo inesperado.
Agora, os
escaladores estavam decididos a ultrapassar o grande tecto. As dificuldades
mantinham-se austeras e encontrar boas fissuras, buracos e buraquinhos,
revelou-se a maior dificuldade da missão. “No segundo dia, a progressão
foi bem mais lenta do que no primeiro dia, pois havia partes de rocha bem
instáveis e o Fernando demorou a conseguir superar alguns obstáculos difíceis
mas, finalmente, conseguiu dobrar o tecto. Nesse ponto não via, nem ouvia o
Fernando. Só via chover televisores e outros elctrodomésticos, até que, por
fim, lá ouço o grito há muito esperado.” O Fernando tinha conseguido alcançar
um nicho adequado para montar a reunião.
Sessão de "jumareanço" com ambiente.
O Fernando, atarefado com a "conquista" do grande tecto da via.
O João, começou a desmontar as coisas
e a preparar-se para iniciar a escalada atrás do seu companheiro. «Por meu
lado, pensava que tinha a tarefa facilitada por ir em top mas, foi mais difícil
do que esperava. A sujeira continuava a ser muita e o “desplome” era muito
pronunciado, pelo que se tornava difícil a recolha do material... fui obrigado
a colocar novos pontos várias vezes, para poder recolher os anteriores!»
Vencido o grande tecto, faltava o resto da parede. O dia
esgotara-se e já não havia tempo
disponível para mais escaladas, limpezas e emoções verticais
variadas. A conclusão do projecto foi adiada por uma semana.
"Aí vai o Petateeee!"
O João em segundo de cordada, a desmontar a duras penas o equipamento de progressão.
O rapel de categoria, desde a ultima reunião do dia.
Como forma de agilizar a logística de acesso, os dois
escaladores resolveram aceder à sua última reunião através de um rapel diagonal
desde o topo da falésia. A abertura do lance seguinte era da responsabilidade
do João. Após uma curta tirada nervosa e algo exposta, que serviu como acesso
aos lances seguintes, o João escalou um diedro e continuou por um esporão de presas
excelentes que constituíram “momentos de puro prazer!” - apesar da sujidade sob
a forma de uma areia fina, tipo farinha, que cobria praticamente todas as
presas. A parede mantinha um cariz de extra-prumo e, essa característica não
permitia que a água da chuva a lavasse de uma forma natural. Mesmo assim, o
João conseguiu encadear devidamente o lance e, algum tempo depois, alcançou a
pequena plataforma de reunião que ficou equipada com dois pernes.
O João, a escalar a pequena mas, exposta, travessia de acesso à ultima parte da via.
O João a escalar o belo quinto lance da via.
Uma das reuniões características.
Pouco depois de se juntar ao João, o Fernando começou a
organizar o material no arnês, preparando-se para enfrentar o lance seguinte. «Sabe-se
lá porquê, ao Fernando saíram sempre os largos em que foi necessário recorrer
às “artimanhas” do artificial». Horas depois, estava ultrapassada uma placa
bonita… e dura. O João resolveu experimentar “liberar” aquele lance. «Em
top-rope, consegui realizar todos os movimentos em livre, embora sem encadear,
pois tem um “crux” bastante duro que é preciso ler bem (algo difícil, ao mesmo
tempo que recolhia o material). No entanto, deu para entender que nunca será
menos de 6c+ ou 7a.»
O Fernando, no penultimo largo. A dificuldade mantinha-se constante.
Com o decorrer das horas, fazia-se tarde e, um último lance bastante mais fácil marcou o final da escalada. O abraço de “cume” assinou o termo daquela
aventura vertical. “Neste último largo já não há fotos. Estávamos tão alegres
que nem nos lembrámos de fazer uma foto de cume! Mas registamos na memória
esses momentos bem passados.
Foi com um belíssimo pôr-do-sol que regressámos a casa!”
Paulo Roxo
Ficha Técnica
PADARIA
João Gaspar e Fernando Pereira entre os dias 26 e 29 de
Abril e 5 de Maio de 2015
Como cada um dos lances têm a sua personalidade, resolveu-se
atribuir-lhes nomes próprios.
L1. “Broa de Calcite” – 30m, 6c/7a
L2. “Figueirinha Implacável” – 15m, 6b
L3. “Febre Artifóide” – 25m, A2+/A3
L4. “Largo Curto” – 10m, V
L5. “Largo da Farinha” – 40m, 6b+
L6. “Largo Mitrado” – 25m, 6c+/7a
L7. “Sandochas” – 25m, V+/6a
Material:
Dobrar friends até ao nº4, Micro-friends essenciais, Jogo de
entaladores, Tricams úteis, Fitas com fartura e estribos.
Não será má ideia levar um pequeno petate e uma “tag-line”.
Notas:
- As distâncias não foram medidas com exactidão mas a via
terá aproximadamente 170 metros com as respectivas curvas. Na vertical, a
parede tem uns 120 metros.
- Instalou-se 13 pernes no total. 1 na R1, 1 à chegada da
R2, 2 na R2, 1 à saída da R2, 1 a meio do tecto, 2 na R3, 2 na R5, 1 a meio do
L5, 2 na R6.
- Foram usados alguns pitons no L1 e para reforço da R4,
todos foram removidos pelo que será aconselhável (não obrigatório) levar uns
“pitonitos”…
- Os aberturistas acreditam que não irão surgir muitos
voluntários para repetir a via, no entanto, consideram que a “Padaria” vale a
pena pela aventura. Acreditam que pode ser forçada em livre depois de passar
muita gente (!) e/ou ser convenientemente limpa.
Pede-se encarecidamente que, se por algum acaso, passar
alguém por ali: Feedback, please!
Croquis:
Todas as fotos são da autoria do João Gaspar e Fernando Pereira
1 Comment:
Grande pinta! O quinto largo tem umas formações belíssimas. Parabéns aos escaladores pela e grande aventura e ao repórter pela crónica.
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