terça-feira, julho 31, 2012

Petit climbing trip - Parte III - Peña Montañesa

 MATILDE
 



Escalámos uma nova via no Pico Perramó, nas montanhas de Benasque mas, um vento gélido demoveu-nos de continuar até ao cimo da formação (por outra via já estabelecida). Não tinha importância. Estávamos satisfeitos. A beleza da paisagem tinha ultrapassado as expectativas. Cada passada da longa marcha que nos conduziu até ali tinha valido a pena.
De volta ao vale, uma nova consulta ao boletim meteorológico indicava a entrada de uma nova frente de mau tempo. Tempo de partir. Mas não para muito longe.
A relativamente poucos quilómetros de Benasque encontra-se a Peña Montañesa, um imponente maciço calcário de paredes impressionantes, palco de aventuras verticais exigentes.


 As magnificas paredes de Peña Montañesa.


Geralmente, o mês de Junho já não é aconselhável para se escalar em Peña Montañesa. As paredes com orientação sul e expostas ao sol, tornam-se num verdadeiro forno logo a partir do inicio da Primavera. E isso mesmo foi o aconteceu em Junho de 2003, quando visitei pela primeira vez a Peña Montañesa. Nessa altura, desiludidos após uma tentativa frustada à face norte do Eiger, o Miguel Grillo e eu corremos desalvorados para Espanha decididos a abrir uma via nova numa das múltiplas paredes da grande muralha da Peña Montañesa e, nem o calor intenso iria fazer-nos desistir de ir para casa com um resultado positivo da viagem. Uma espécie de prémio de consolação. Assim nasceu a “Eiger-NO-Wand” na parede de Penpenus aberta em três manhãs, aproveitando o único período do dia em que a parede se encontrava à sombra.


O Pico Penpenus. A Eiger-NO-Wand encontra-se à esquerda da grande mancha amarela no centro da parede principal.


Desta vez, a Daniela e eu encontrámos condições inteiramente distintas ás de 2003.
O mau tempo que se abateu nos Pirinéus baixou as temperaturas em toda a cordilheira e ao longe, durante as breves abertas nas nuvens, avistávamos as vertentes vestidas com um véu branco recente, provando que a cota de neve tinha baixado e muito. A onda de frio pouco habitual para a época constituía a oportunidade ideal para tentar abrir uma nova via nas fantásticas paredes da Montañesa. “Vamos a isso!”


 Pic-nic com vista para as paredes.


Não é fácil escalar na Peña Montañesa. As paredes parecem estar “mesmo ali” mas, cedo descobrimos que a proximidade era ilusória.
No dia 10 de Junho metemos uma pequena mochila ás costas transportando apenas água. Tínhamos como objectivo um singelo reconhecimento para escolher a “nossa” linha. “Assim abrimos o apetite para o jantar.” – dizia a Daniela espirituosa.
O “singelo” reconhecimento traduziu-se numa caminhada de quatro horas que incluiu um lote de mazelas e obstáculos entre os quais, penosas cascalheiras de pedras rolantes com todos os tamanhos e feitios, corta-mato em vegetação densa ao bom estilo javali e, inúmeras percas de itinerário, tudo ambientado com ocasionais chuvadas.


Jungle!


 Uma das ocasionais chuvadas.


Antes do dito reconhecimento, o nosso plano consistia em plantar a tenda num qualquer prado da região e passar ali a noite. Após o “singelo” reconhecimento, quase a anoitecer, com as blusas coladas ao corpo ensopadas pelo suor e com várias amostras de espécies vegetais agarradas aos cabelos, mandámos ás favas o campismo selvagem e sem pestanejar optámos por um duche retemperador e uma caminha confortável. 


Campismo selvagem!!


Em Oncins, uma pacata povoação de quatro ou cinco casas, encaixada mesmo por baixo da Peña Montañesa, encontrámos a estalagem ideal que, ainda por cima, possuía o atributo importantíssimo dos três B`s (Bom, Bonito e Barato). Conhecida como Casa Ambrosio, este pequeno complexo com restaurante e hospedagem, constitui a base perfeita para passar alguns dias a desfrutar do lugar. Aqui os escaladores são muito bem vindos e acarinhados com direito a preço especial para dormidas e jantares. Conhecemos a Matilde, a dona da casa e, imediatamente criámos empatia. A sua simpatia sincera a juntar à própria “onda” positiva daquele lugar inspirou-nos durante a nossa estadia.


A pequena povoação de Oncins, visto das paredes.


Logo no primeiro dia de escalada, logo nas primeiras horas, logo nos primeiros movimentos, apercebemo-nos que escalar (sobretudo abrir) em Peña Montañesa é um jogo bem mais intenso e exigente que noutras paredes e maciços por onde andámos. Rapidamente a parede mostrou os dentes sob a forma de uma rocha compacta e uma verticalidade perturbante. Bons locais para a colocação de protecções não eram fáceis de encontrar e descobrimos uma escalada técnica e ao mesmo tempo atlética.


 O primeiro lance com 50 metros.


  A Daniela a escalar o primeiro lance.

 
A primeira tarde terminou com a abertura dos primeiros 50 metros de via e com a corda estática instalada para retornar no dia seguinte. Mais uma vez descemos a fatigante vertente por entre pedras e bosque denso, motivados pela deliciosa perspectiva do jantar bem servido pela Matilde.
A madrugada do dia 12 viu-nos a retomar a caminhada carregados com o restante material imprescindível para continuar a escalada.


 As vistas desde Oncins.


Pelas características da parede estava claro que iríamos necessitar de um terceiro dia para terminar a via.
O segundo lance demorou bastante mais que o calculado porque uma placa compacta e desprovida de fissuras, com uns 15 metros, impedia uma progressão rápida. Algumas plaquetes de 8mm colocadas à mão e um par de pitons fixos abriram o caminho para a segunda parte da ascensão. 


 A primeira reunião estava constituida por uma "Sabina" (espécie de arbusto) gigante.


 Os abutres sempre presentes aproximavam-se curiosos.
 

Entretanto as nuvens acumulavam-se no horizonte. Os ventos de Noroeste empurraram-nas rapidamente em nossa direcção. Em breve, caíram as primeiras gotas frias e o dia esteve prestes a terminar mais cedo que o previsto. Resolvemos esperar que a borrasca se afastasse e, a paciência deu os seus créditos. O céu azul, surgia de novo aos nossos olhos. De ânimos redobrados escalámos mais uns 40 metros de fissura larga e algo difícil antes de colocar um ponto final ao dia. 


 "Já passou a chuva... vai lá!"


 Ao longe, a nuvem descarrega. Alheios continuamos.


 A fissura larga do terceiro lance com uns 40 metros.


 

 Dois aspectos da Daniela na segunda reunião da via.
 

Na jornada seguinte passámos parte da manhã a jumarear as cordas fixas, compostas pela estática e a dinâmica. Teríamos de terminar a via nesse dia, ou descer sem completar a linha, pelo simples facto de que não possuíamos mais corda para fixar e, honestamente, tampouco possuíamos a paciência para repetir uma vez mais todo o ritual do madrugar para mais uma vez enfrentar a penosa aproximação.


Jumarear.


O menu para esse dia iniciava com uma fissura vertical de aspecto aguerrida. Essa fissura era bem visível desde o solo e a partir dessa morfologia particular desenhamos a linha mentalmente, para cima e para baixo, antes de a começar a escalar. 


O circulo marca a fissura que nos inspirou para "desenhar" o resto da linha.


Sem querer parecer presunçoso, sinceramente penso que o acto de escalar novos itinerários, constituí uma forma de arte, como qualquer outra forma de expressão abstracta. No caso particular da escalada, seja em montanhas, grandes paredes, ou falésias, traçamos uma linha imaginária que pode ser motivada pelas formas da natureza, pelo sentido estético, pelas emoções e experiências ou ainda, por todos estes elementos juntos. Depois, tentamos interligar a linha mental traçada com a acção no terreno. A mente imagina o quadro, a acção da escalada pinta o quadro imaginado, os apetrechos materiais utilizados, como os friends, as cordas e restante equipamento, funcionam como catalisadores, fundindo o imaginado com o realizado, são no fundo, os pincéis e as tintas.


 Esta placa imensa com quase 200 metros, situada mesmo à esquerda da nossa via não possui uma única linha aberta. Aqui, ainda existe terreno para a pintura. Um desafio para o futuro próximo.


O calcário perfeito não deu tréguas ao nível da dificuldade mas, ia-se deixando proteger convenientemente e conseguimos concluir a bela fissura do quarto lance com relativa rapidez. Assim que nos juntámos na reunião decidimos imediatamente que aquele seria o melhor lance da via. Decididamente um “must do” de Peña Montañesa. 


 A iniciar o largo mais bonito da via. A protecção mesmo à minha esquerda consiste num gancho colocado numa pequena reglete. "Quem não tem cão... caça com gato".
 

 Um detalhe do ganchito.


 Prestes a entrar na fissura.



 "É só curtir!!"
 

 A Daniela a desfrutar da fissura.
 

 No final.


Em completa oposição com o quarto lance, o ultimo largo revelou-se um verdadeiro teste à paciência da Daniela e um verdadeiro teste à minha capacidade de resistência de rins, não porque estivesse a debater-me com passos mega atléticos de escalada livre mas, porque a parede compacta e extra-prumada obrigou a utilizar a lenta e laboriosa técnica de bricolage característica da escalada artificial. Para ambos, uma prova de enduro que terminou quatro horas e meia depois do seu inicio. Nesses últimos 40 metros foram deixados uma cordeleta numa ponte de rocha, três pitons, nove expansivos colocados à mão e uma quantidade industrial de marteladas. 


No inicio da escalada artificial. Aqui ainda não sabiamos que nos esperavam quatro horas de trabalho. Uf!


Foram dois braços ao borde do esgotamento que emergiram na “Faja Toro”, a grande varanda de escape que marca o final de quase todas as vias deste sector.
As reuniões da via vizinha serviram como linha de rapel improvisada e depois de mais algum tempo a rearrumar todo o equipamento, fizemo-nos à descida, desta feita pela ultima vez. Num feliz golpe de ironia, pela primeira vez conseguimos encarrilar com o misterioso caminho de caçadores, do qual já nos tinham falado mas, à luz  de nunca o termos encontrado, já estávamos convencidos de que faria parte de uma qualquer lenda local. Muito mais cómodo que o acesso que utilizáramos anteriormente o trilho dos caçadores conduziu-nos a bom porto alguns minutos antes do cair da noite. 


 Mesmo a tempo para jantar!

 
Tínhamos pressa. Afinal, ainda faltava concluir uma das tarefas mais importantes de toda a aventura...
degustar um belo jantar confeccionado pela Matilde.

 Paulo Roxo


 Os topos:







segunda-feira, julho 23, 2012

Petit climbing trip - Pirinéus - parte II


DESACLIMATAÇÃO E A AGULHA
 


Uma vez aclimatados, estávamos preparados para tentar o verdadeiro objectivo da nossa viagem aos Alpes.
Entre chuvadas, realizámos eternas idas e vindas à famosa montra da farmácia no centro de Chamonix, onde tradicionalmente surge o folheto com as previsões actualizadas. Para contrastar e, na esperança de um milagre qualquer, consultávamos vários sites da internet, de uma forma quase obsessiva. Todas as informações convergiam num único sentido: mau tempo generalizado até ao final da semana.
Chamonix não é propriamente o local mais adequado para carteiras modestas. Cada “café au lait” custava-nos um olho da cara apenas porque a versão mais barata, o “café expresso”, era simplesmente intragável. Tantos dias sem subir à montanha constituía uma perspectiva economicamente... insustentável, utilizando o termo da moda. Para além disso, o nosso projecto principal (de cariz privado!), mais ambicioso e fonte das nossas motivações para os Alpes, necessitaria pelo menos de três dias estáveis.
Compreendemos que zarpar dali, rumo a outro porto, seria o mais sensato.


Um tecto ameaçador de nuvens atirou-nos para outras montanhas.


Assim, aclimatados para altitudes superiores eis que... baixámos de cota!
Servia-nos de consolo a nova via que escalámos ao “tropeçar” na face sul da Point Lachenal, com os bónus anexos de uma tempestade de vento e neve nocturnos e algumas horas muito mal dormidas no interior de uma tenda prestes a desintegrar-se.
Deixámos temporariamente o Alpinismo para nos convertermos em Pirineístas.


 Pirineístas a secar!


 O nosso novo objectivo, a bela torre de Perramó.


Um belo dia de Primavera viu-nos subir o Vale de Estós em direcção ao Pico Perramó, nas montanhas sobranceiras a Benasque. A paisagem imaculada atraía-nos de uma forma poderosa. A cada curva do caminho, depois de cada árvore mais frondosa, as exclamações de maravilha sucediam-se.


O Vale de Estós, famoso e concorrido mas, uma saída para a esquerda e...


 ... entramos num vale bem mais isolado...


 ... onde se avistam belas montanhas agrestes e...


 ... prados como estes!


 À direita a Torre de Perramó.


A primeira tarde terminou após hora e meia de caminhada, numa pequena lata de sardinhas apontada no mapa do livro de escalada da região e apelidada de “refugio”. Não fossem os mosquitos, sob a forma de praga (os inconvenientes da estação das flores), teríamos optado de bom grado por um bivaque à luz das estrelas.


 Pontes naturais.


 O "refugio" claustrofobico.


 Um bivaque (Tupek da Ortik), ideal para situações de fortuna em alta montanha... e também como resguardo anti-mosquitos... dentro do refugio claustrofobico!



 Perramó visto da janela (!) da cabana.


No dia seguinte retomámos a direcção da bela agulha de granito de Perramó, subindo um trilho sinuoso de uma beleza extraordinária.
Desde as montanhas que dominam a linha do horizonte, passando pelos prados verdejantes que as ladeiam, escorregando até à floresta densa e fresca, a paisagem era simplesmente magnífica. 


  Vistas magnificas desde o trilho de aproximação.

 A Daniela numa passagem da aproximação.


 A torre de Perramó sempre presente.


A dado momento deparamo-nos com a cascata de Perramó. Ficamos ali um bom bocado a admirar as toneladas de água debitadas desde uma altura de mais de 100 metros. Imediatamente me veio à memória a escalada desta cascata, já lá vão mais de dez anos, levada a cabo naquela temporada em que o general Inverno toma o poder e consegue lenta e inexoravelmente congelar cada gota de agua do cachão imenso.


 A bela cascata de Perramó. No inverno uma boa escalada.


Quadro.


Ganhando desnível continuamos a subir, ora por trilho evidente e cómodo, ora por troços de cascalheira e blocos.
As vistas alargavam cada vez mais e, quanto mais subíamos mais lagos e pequenas lagoas de montanha iam surgindo.


As vistas alargam à medida que subimos.


 As lagoas sucedem-se. Idílico!

 
Passo a passo íamos adentrando num mundo cada vez mais rude e selvagem. De súbito, surgiu de novo a “nossa” torre altiva e orgulhosa, defendida por muralhas de granito e circos minerais alpinos de aspecto austero. Olhando para baixo, em direcção ao vale desde o qual subíramos até ali, conseguíamos verificar que cada covão albergava uma pequena lagoa de agua límpida e cristalina.
 


 Contrafortes de granito.


 "Mais perto!"



Pequenas lagoas no paraíso.


Um caos de grandes blocos de transposição penosa precedeu a parede escolhida para a nossa escalada.
Um bonito diedro estimulava a nossa imaginação desde o inicio. Cedo concluímos que, apesar de não vir representada no guia da região, essa linha já tinha sido escalada. Uma cordeleta e um piton abandonados denunciavam os predecessores.
- A linha parece gira. Continuamos? – perguntei sem muita convicção.
- Depois de toda a caminhada para chegar até aqui?! Por mim tentaria abrir uma nova via! – rematou a Daniela.
Ok, stick to the plan!


 A primeira tentativa. Um diedro estético.


Mesmo à esquerda de um outro diedro evidente dissimulava-se uma tímida fissura que cortava uma grande placa a direito. A “nossa” linha!


 A "nossa" via!


 A Daniela no primeiro lance.


 Uma caminhada de hora e meia, um bivaque numa cabana metálica claustrofobica e cercada por mosquitos, um despertar madrugador, uma segunda marcha de duas horas, acabaram por se resumir numa escalada técnica de pézinhos com três singelos lances e um comprimento total relativamente modesto, não chegando aos 80 metros.


No inicio do segundo lance.


 
 Já no final do segundo lance. Passinhos técnicos.


 A Daniela a escalar o segundo lance.


 Vistas!


 A iniciar o terceiro lance da nova via.


A primeira analise levou-nos a considerar que seria injustificável tão longa aproximação para tão curta escalada. Contudo, contrair um conjunto de vivências e emoções numa mera consideração tecnicista, baseada apenas no gesto da escalada seria algo, no mínimo, redutor.
O alpinismo, a escalada, a exploração, são conceitos inspirados pelo deslumbramento que certos locais isolados e selvagens potenciam. Neste caso, a floresta, os rios, as lagoas, as montanhas, conjugaram-se de forma sublime justificando plenamente a caminhada relativamente longa.
A nova via, a “Ilógica metrológica”, ficou-se pela cereja no topo do bolo.

Paulo Roxo


Os topos: