Piu?!
Um par de botas e um de pés de gato!
A via
Antes de passar ao texto da Daniela gostaria de referir que a visita ao Douro nesta altura particular do ano foi absolutamente intencional. É que este é o período em que os passarinhos se desinteressam pela procriação, estando muito mais preocupados em empaturrar-se com o que podem apanhar.
Bem, a questão é que estamos bem conscientes da importância de respeitar as épocas de nidificação e tentámos reduzir ao máximo o impacto produzido pela nossa fugaz presença, ao contrário dos caçadores que, com os seus estampidos, se fizeram notar com pompa e circunstância.
De todos modos, a via de escalada inaugurada é uma via de aventura (muita aventura!), com um grau de compromisso razoável e uma desdenhável quantidade de equipamento fixo (algumas plaquetes que mal se vêem!). Por este motivo estamos convencidos que esta jamais será uma via concorrida.
Paulo Roxo
Brumas matinais no Douro
"O Solitário" é o bloco em equilibrio que domina o segundo pilar.
Desde há algum tempo que os nossos olhares tinham descoberto a linha a escalar naquele enorme esporão que se avistava do lado de lá da fronteira, do lado de lá das águas do Douro. Um esporão repartido por três elegantes pilares.
A combinação entre a época de nidificação da passarada local, os quilómetros de distância à zona centro do país e os muitos metros de parede, atrasaram o primeiro assédio a mais uma fabulosa parede perdida em terras lusas.
Contávamos com três dias para tentar abrir uma via com um desnível aproximado de 380m.
Para a dita ascensão, optamos pelo método “semi-big-walleiro”, isto é, sem dormidas na parede (estimámos cerca de 1h30min para a aproximação), mas não dispensando um petate que arrastamos rocha acima com o material necessário para acelerar a trepada e torná-la relativamente confortável, furadeira, roupa extra, água, comida...É preciso não esquecer a tentação que representa a posta à mirandesa no final de um dia de escalada...valeu-nos o desgaste de uns belos centímetros de sola de sapato!
Guiados pelos “riscos topográficos do exército”...ok, e um pouco pela imaginação, iniciamos a caminhada de aproximação na sexta-feira (5/10) quando a manhã estava ainda a bocejar, prevendo começar a escalada por volta das 11...11:30. Nada mais longe da realidade. Entre o topo da falésia e o acesso que conseguimos descobrir para nos enfiarmos no esporão, derretemos incontáveis parcelas de tempo precioso. Por entre “Aus!” e “Uis!”, picados pelas silvas e outras plantas férteis em duras agulhas, andámos por ali às voltas e apenas à uma da tarde conseguimos acedemos a um ponto da parede. Estávamos entre o 2º e o 3º pilar, sensivelmente a 2/3 da altura do dito esporão, pelo que nos faltava ainda rapelar até à base...também rapeis exploratórios! Como já seria impossível chegar à base e escalar até aquele mesmo ponto antes de anoitecer, tivemos de nos resignar, deixar o material por ali e patear tuuuuuuudo para trás para voltar no dia seguinte.
"mmm... por onde seguir?"
Uma brecha natural entre blocos.
Tendo em conta as 2h para aceder à parede e os rapeis que ainda teríamos de realizar, achamos por bem no Sábado, abrir os olhinhos às 6 da manhã. Tal como previsto, os rapeis levaram o seu tempo e só pelas 13h iniciámos a escalada...pelo sítio errado!
Rapel exploratório!
O Paulo lançou-se com avidez à linha que inicialmente tínhamos estudado nas fotografias. Este pequeníssimo detalhe, consumiu-nos uma horita mais.
A falta de visibilidade dos lances (que com uma ou outra surpresa inesperada poderiam fazer o dia terminar em noite) e o avançar repentino das horas, levaram-nos a optar por outra linha. Uma que não fazia supor muitos problemas (novamente, nada mais longe da realidade!). Nessa altura ainda tínhamos em mente, que o 1º, seria o pilar mais complicado, mais vertical (pelo menos assim o parecia nas fotos! Mais um engano!).
Enquanto eu observava deliciada os peixes que saltavam da água abocanhando moscas desprevenidas e as dezenas de abutres que dançavam alguns metros acima de nós, o Paulo progredia como podia numa daquelas chaminés (des)elegantes. A certa altura, uns bons 6m acima da última protecção, decide-se a colocar um perninho para não prolongar o run-out (registe-se este momento, como o ponto de partida de uma verdadeira sequência de problemas).
O primeiro e eterno lance.Máquina no cordino prontinha para ser içada e upa upa, lá vai ela, até que...fica presa num pequeno tecto! Naquela altura, nem a fúria do Paulo conseguiu fazer com que a máquina chegasse ao seu destino...bom...nem ao seu destino nem ao meu! É que nem para cima, nem para baixo! Ou seja, Paulo irritado, com um run-out considerável (uma árvore esperava-o lá em baixo, de ramos abertos), sem lugar para proteger e sem máquina. Dupla de trepadores sem cordino, para içar o petate que esperava cá em baixo!
Ok, a coisa assim ainda é passível de se resolver. Deixei uma das cordas duplas para o petate, encordando-me apenas na outra. O Paulo, lá se resignou e continuou mais uns metros sem proteger, entalado em formato “daqui eu não caio, daqui ninguém me tira”.
Quando o largo parecia terminado, os escassos 2m de corda que ainda estavam por passar no meu reverso, revelaram-se insuficientes para os 5 que faltavam até à reunião. “Daniela, tens de subir um bocaaaaadooo”. Mas...se bem se lembram, comigo tinha o petate já à espera de ser içado numa das cordas. “Paulo, consegues içar um pouco o petate de onde estás? Tem de ser içado do chão antes de eu começar a subir, para que não se prenda em naaaaaada”. E assim foi, Paulo numa posição precária a içar petate (num micro-friend bastante duvidoso), para depois subirmos uns metros “en samble”. Escusado será dizer, que com a sorte que nos bafejava, tanto o petate como a máquina se prenderam em todos os sítios possíveis, tornando assim, a minha chegada à primeira reunião, lenta e extenuante.
BigWall à séria no lado Espanhol. A "Terra de ninguém"anda por aí!
O dia já ia avançado e nós ali, ainda na primeira reunião. Mas a esperança estava viva “Vamos sair no fim do 1º pilar e amanhã voltamos”. Pois sim! Depois dos restantes dois largos, mais duritos do que aparentavam ser pelas fotos, pelas 17:20 aterrávamos no topo do 1º pilar, apenas para constatar que...por ali não sairíamos de certeza! A floresta que se observava na inclinada vertente adjacente era absolutamente intransponível.
Solução? Escalar o 2º pilar, tão longo como o primeiro. Havia a crença de que este pilar seria tecnicamente mais fácil que o anterior, já que a inclinação parecia menos acentuada...mais uma ilusão!
Entre as 17:30 e as 19:30 (talvez com um ligeiro sopro de sorte dentro de tanto azar?!), conseguimos transpor cerca de 120 m, repartidos por 3 trabalhosos largos. Em jeito de pequeno resumo, posso dizer que o Paulo, parecia o Dean Poter a correr pelo El Capitan acima, para além de estar preparado para trepar com um reduzido número de protecções (Eu vi! Eu vi! Fez mais de 10m em placas de pelo menos 6a, sem meter nada! Sim, daquelas em que não há mãos e em que os pés têm de ser muuuuuuitooooo bem aplicadinhos). “He’s got the balls baby”! Eu, fiquei perita em “comer” metros subindo por uma das cordas que se fixava! Os “meus” largos decorreram entre este novíssimo estilo, escalar os poucos passos em que não dava para agarrar nada, e desbloquear o petate que teimava em prender-se a tudo, a cada meia dúzia de metros à medida que subia.
Quando a noite me deu a primeira dentada nos calcanhares, pisei o topo do 2º pilar. Uf! Tínhamos conseguido chegar ao único escape da via num tempo...absolutamente record! Faltava-nos apenas arrumar tudo (sim, porque já não havia ânimo para voltar no Domingo!) e rumar ao carro carregados que nem burros. 2 horas de desgaste de botinha, com um início bastante desagradável para fazer à noite “Au...Ui...acabei de engolir uma borboleta nocturna...”! O dia terminou às 21:30 (longo, não?). Estávamos decididos, o terceiro pilar ficaria para outra ocasião. Debatíamos no jantar se a via terminaria ali, ou se um dia haveríamos de voltar para abrir o ultimo pilar. Ainda a pensar nisso adormecemos, cansados mas felizes por esta nova abertura.
Reservamos o Domingo para a Serra da Estrela, mas durante o pequeno-almoço (lá pelas 8:30) acabamos por decidir tentar a nossa sorte...no 3º pilar “...já que aqui estamos!”.
Os abutres, curiosos.
Novamente, carregados que nem burros, com o material que resolvemos rebocar até ao carro na noite anterior, fizemos toda a caminhada de acesso até à base do terceiro pilar (nesta fase já as meias teimavam em mostrar o seu padrão, através das translúcidas solas das botas).
A diferença crucial para o dia anterior, foi planearmos a coisa de forma a não haver desta vez petate para arrastar (valioso rasgo de inteligência!).
O largo de acesso ao terceiro pilar. O "solitário" espreita à direita.
Assim, no terceiro dia de aventura, pelas 11:30 estávamos novamente metidos no esporão. Desta vez, esperava-nos o pilar supostamente menos inclinado, mas a parede não deixava de nos surpreender. Dos quatro largos que escalamos com (finalmente) tranquilidade, os dois do meio foram os mais complicados da via!
No inicio do lance mais dificil. "Aqui ainda é fácil".
Pelas 14:30 estávamos no topo da falésia com um sorriso do tamanho da linha. 400 longos metros conquistados com esforço, não só físico como muito mental!
Faltava-nos apenas...mais 1h de caminhada, cansados e carregados até ao “bólide”. Uma hora de conversa sobre este e aquele e mais aquele percalço. Uma hora em que o sol nos acompanhou, assim como os comentários sobre a vontade de voltar aquele lugar onde as sensações intensas estão sempre garantidas.
Voltamos felizes deixando para trás a dança com que os abutres nos brindaram durante três longos, intensos e deliciosos dias.
Piu?!
Daniela Teixeira
Mapa de acesso Topo Primeiro pilar. Segundo pilar.
Terceiro pilar.