O Bigwall dos pobres
- Aaaagh!
O Bruno olhou-me detrás do seu frontal e, com voz pausada disse: -Calma... vamos tentar de novo!
Já déramos voltas e voltas para tentar montar a hamaca. A armação de alumínio recusava encaixar-se devidamente e, passados uns vinte minutos de esforço, suspenso pelo arnés e embrulhado nas ramadas de uma “sabina” ( espécie de arbusto, muito resistente) eu explodia de raiva. –Aaaagh!
De súbito, um ligeiro toque de graça e uma torcida mais suave provocou o “clack!” característico que anunciava, finalmente, o inicio de mais uma noite de descanso, a terceira desde que nos puséramos a escalar.
Adormecemos com as sombras do mar de granito que interrompia, lá em cima, o fluxo de estrelas da Via Láctea.
No dia seguinte: “Cucu!... Toiing!...Cucu!...Toiing!...”, o som do meu telemovel com pretensões a despertador revelou a dura realidade. Eram as cinco da matina!
Esperava-nos duas horas de ocupação, a tomar o pequeno almoço, a desmontar a hamaca e a arrumar tudo nos petates. Tudo, sem deixar cair nada ao vazio.
"Carregados como burros!"
Existem vários locais do mundo onde praticar a muito particular disciplina de escalada conhecida como Bigwall: Yosemite, Patagonia, Torres do Trango, Paine, etc. Visitar qualquer um destes locais envolve um considerável volume de euros acumulados nos bolsos mais abastados ou, nas contas de rarissimas entidades patrocinadoras.
Para nós, lusitanos e Europeus de segunda, organizar e financiar uma visita a qualquer um destes sítios, resulta numa empresa com proporções expedicionárias, antes mesmo de pisar o solo do destino sonhado (Ok! Neste ultimo parágrafo é favor substituir parte da frase por: “Para mim, cidadão do sistema solar e europeu de terceira, organizar e... blá, blá, blá!...”).
Mas, eis que surge, mesmo aqui ao lado, um local com as características de Bigwall, em dimensões e emoções. Um local descaradamente escancarado e paradoxalmente esquecido. Um local de beleza e silêncio arrebatadores, pejado de vida e energia.
Pode não ter a qualidade dos seus primos maiores, anteriormente referidos mas, aqui também a palavra Aventura se escreve com um A proporcional ao tamanho.
Claro, um local também sensível, com uma ecologia única que convêm preservar. Mais uma vez, ali está a época de nidificação de aves que se deve respeitar (não escalando, de Janeiro a Agosto), não porque uma qualquer instituição (por vezes dúbia) assim o exija mas sim, porque dentro de nós, sabemos que devemos estimar estes encaixados territórios selvagens.
No interior da Floresta do Bornéu.
Desta vez, a aventura tocou-nos ao Bruno Gaspar e a mim.
Em duas horas e meia, carregados como burros, conseguimos realizar a primeira parte da “expedição”... a aproximação.
Constatámos surpreendidos que o acesso se encontra muito mais... humano.
Muitas da Silvas que tanto nos atormentaram ao Miguel Grillo e a mim na altura da exploração em 2004 e, na altura da abertura da “Terra de ninguém” (dois anos depois), tinham quase desaparecido.
Já na base da via pretendida pensava no porreiro que tinha sido reduzir a quantidade de aí`s, ui`s (!) e variado praguejar, durante a descida da luxuriante “Floresta do Bornéu”.
A primeira noite ao nível do solo.
Na terceira reunião, o “relé dos bafos” (não me perguntem a origem do nome mas, acho que teve algo que ver com o facto do urinol ter ficado demasiado próximo da hamaca!), reorganizámos o material nos petates e arneses.
Eram as seis da manhã.
De súbito, um ruído grave e arrastado interrompeu o idílico silêncio habitual: “VruumMM!”. Olhámos para trás, ainda a tempo de avistar uma grande nuvem negra que, num segundo, emergiu de um pequeno bosque suspenso na vertente oposta. – Uau! Morcegos!- gritou o Bruno. – Morcegos?! A estas horas?! Não... são pássaros!
Um gigantesco bando de Estorninhos formava uma coluna negra que bailava graciosamente a escassas dezenas de metros da nossa posição. O espectáculo era magnifico e ficámos para ali boquiabertos, a observar o inédito fenómeno ondulante. A nuvem virou e rodopiou como um lenço ao vento e, tão rápido como emergiu, afundou-se com grande estrondo num novo manto de árvores.
O silêncio retornou ao local.
- Já temos nome para a via! A dança dos Estorninhos!
No mesmo lance.
Petates sobre o vazio.
Bruno na "Reunião dos bafos".
Calhou ao Bruno a abertura do sétimo lance.
- Já estou muito pesado. Chega de material. Tá a andar!
Meti a corda no Gri-gri e dei-lhe uma palmada nas costas.
Sem hesitar, o Bruno começou a escalar em livre as duas fissuras paralelas verticais. Quanto a mim, restava-me dar corda e observar, comodamente instalado na melhor reunião de toda a via. Uma pequena mas perfeita plataforma horizontal, com uma cadeira de encosto constituída por uma pequena árvore.
O Bruno colocou um friend, deu-lhe um esticão de confirmação e continuou a escalar. Pouco depois, um novo friend protegeu os passos seguintes... os muitos passos seguintes! As duas fissuras terminaram para dar lugar a uma pequena travessia que, visto desde baixo, parecia permitir aceder a um diedro evidente. Vi o Bruno a ignorar o “run-out” e a lançar-se decidido à travessia. As mãos agarraram umas presas mais ou menos francas e os pés descolaram da rocha para, num “swing”a 180 graus, voltar a “colar” muito mais à direita. Reposição e... imediata constatação que a parede era bem mais vertical que o calculado antes do movimento. Pequenas armadilhas de se escalar em livre e à vista. – Ei Roxo, atenção aí!- sempre que alguém me faz este pedido (ou quando sou eu a pedir!) vem-me à memória a célebre figura do Paulo Gorjão, com a voz irritantemente pausada e desde o solo a contestar a um determinado escalador mais apurado: -Tu é que tens de ter atenção!
Optei por não atirar com esta frase emblemática ao Bruno. Talvez não viesse muito a propósito, especialmente perante a interessante perspectiva de um vôo com mais de dez metros.
A única fissura da placa nem sequer era uma fissura. Tratava-se do intervalo produzido por uma pequena lastra “amovível” que aceitou um pequeno alien (o verde do “semáforo”).
Com a cara colada à rocha para se equilibrar, o Bruno decidiu por fim, agarrar-se ao friend duvidoso. Tentei adivinhar a trajectória da queda. A antevisão não foi das melhores. Seria um belo vôo em pêndulo que o colocaria seguramente abaixo da minha posição. Preparei-me para puxar corda no Gri.
O friend lá aguentou com o peso do Bruno. Foi a sua oportunidade para martelar um bom piton numa fissurinha que espreitava trocista.
Espirito renovado para continuar!
Ligeiro toque solar no terceiro lance.
Em BigWal vale (quase) tudo!
"O que me espera?"Situação peculiar.
O diedro era muito atractivo... não fosse a fissura estar completamente coberta por uma grossa camada de ervas agarradas por terra endurecida, resultado de anos e anos de acumulação de poeiras trazidas pelo vento. De “escavador” em riste (uma velha escova transformada em espigão) ia conquistando cada centímetro do diedro.
Verdadeiras cascatas de terra e erva ião caindo ao vazio... sobre o Bruno! O pobre do meu companheiro encontrava-se directamente por baixo, amarrado à reunião, apoiado nos petates e, sem possibilidade de se desviar. – Ei, Bruno. Não olhes agora para cima!
Uma nova enxurrada de detritos precipitou-se em sua direcção. – Desculpa, não dá para evitar!- disse eu, com voz sentida.
- Ok! É na boa!...- respondeu, ao mesmo tempo que fechava a gola do casaco de penas, numa tentativa de selar as possíveis entradas de terra.
Os momentos “retro-escavadora” sucederam-se.
Pensava na sorte dos possíveis repetidores: encontrar o largo todo limpinho.
Mais acima encontrei umas regletes perfeitas. Afastei-me do alinhamento lógico do diedro e coloquei-me em cheio na placa. Para grande alívio do meu assegurador constatei não necessitar de escavar mais. Á minha frente erguia-se uma placa lisa. Burilador! Duas plaquetes depois, a coisa parecia conduzir a mais um pêndulo (o segundo da via).
O Bruno desceu-me alguns metros. Suspenso na ultima plaquete comecei a iniciar o baloiço horizontal. Corri uma, duas vezes e, lá me agarrei a umas presas arredondadas e musgosas. Subi para cima das presas e voltei a respirar. “Mmmm...” analisei a minha situação. A corda encontrava-se agora numa linha perfeitamente horizontal a uns sete metros da ultima protecção. Para cima revelava-se um passo de aspecto difícil e desequilibrante, impossível de proteger.
Na eventualidade de falhar seria uma valente queda em pêndulo perfeito. Em principio não me iria matar mas, o cenário potencial não era propriamente apelativo.
Realizei dois curtos passos. A mão direita descobriu uma presa lateral razoável. O pé direito subiu para uma micro-reglete duvidosa. “Só tenho de realizar um pé/mão à esquerda e...”. Hesitei... hesitei... desisti! Voltei a destrepar. Voltei a olhar para a distância que me separava da ultima protecção. Lá embaixo, o Bruno incitava-me: - Vai lá!
Tentei duas vezes mais mas, o receio apoderou-se e não consegui realizar o passo que (ainda por cima!), calculei não passar do quinto grau. A mente tinha bloqueado.
Descobri uma pequena reglete horizontal. “E se?...” Para meu espanto o pequeno gancho agarrou-se à saliência. “Merda, isto aguenta! Agora tenho mesmo de subir. Que chatice!” Muito cautelosamente subi ao primeiro degrau do estribo. Mais uma vez observei o mega-pêndulo que me esperava se... –Ai que medo!- solucei ao vento, sem me atrever a respirar. Subi ao segundo degrau do estribo. – Ai que medo!- o gancho mantinha-se na posição e, lá consegui saltar para as presas avidamente desejadas.
O resto da escalada sem historia depositou-me no topo da via.
Dei um grito de satisfação.
Na reunião suspensa o Bruno batia palmas.
Finalmente, podíamos tomar um banho... na fonte publica do parque de merendas!
Paulo Roxo
Bruno no rapel pêndular.
Ping! Ping! Ping!
"Vai lá Brunex! Vai lá!..."
Jumareando o ultimo lance.
É o fim!... Por fim!
Por ali anda a "Piu?!"
Adeus!
Até à vista!