Simplesmente Ursa
No Cabo da Roca, existe uma torre com frustadas pretensões a ilha.
Falo da Pedra da Ursa, um rochedo especial com cerca de 100 metros, situado junto à praia de pedras homónima.
O eterno fluxo das marés parece condenar a própria Ursa a uma dúvida existencial permanente: “serei uma ilha, ou serei uma península?”
Recentemente, a Daniela, o Paulo Alves e eu repetimos a via “Ultimo assédio”.
Espirituoso, anunciei a minha intenção de forçar em livre o troço de artificial do inicio da travessia do segundo lance mas, o mar violento gorou as minhas intenções e, recorrendo à famosa técnica de “livre... de preconceitos”, agarrei-me a tudo e mais alguma coisa, ultrapassando a secção de artificial o mais rápido que me foi possível.
Na penúltima reunião (obrigatória para o caso de se escalar com cordas de 50 metros), a uns escassos 15 metros do topo, foi acrescentada uma plaquete.
A memorável aventura terminou com a descida em slide controlado, utilizando uma corda previamente colocada para evitar a espera até ás dez da noite, na altura da maré vazia.
Escalar a Pedra da Ursa corresponde sempre a uma pequena odisseia sobre história viva.
O mar agreste, o vento frequente e as formas rochosas singulares, criaram uma aura mística poderosa que, desde sempre, convidou ao fervilhar de imaginações e histórias fantásticas, como a da origem da própria pedra.
Há muitos milhares de anos, quando os gelos dos glaciares cobriam a região, os ursos polares vagueavam por ali em busca de caça.
Quando os glaciares recuaram, todos os animais retiraram também. Todos, excepto uma mãe ursa que, com os seus filhotes, teimava manter-se no seu território. Os Deuses entenderam o seu acto como uma afronta e, irados, transformaram-na no grande rochedo da Pedra da Ursa e a sua prole nos rochedos mais pequenos periféricos.
Outra lenda bem mais recente conta como foi realizada a primeira ascensão da Ursa.
Há bastantes anos (menos do que milhares, com segurança), num raro dia de mar calmo, um pescador solitário atracou o seu pequeno barco junto ao flanco oeste do rochedo. Contornou a torre pelo anel da rampas mais suaves transportando um estranho e volumoso objecto debaixo dos braços. Destrepou a arriscada vertente de terra e pedras, chegando ao borde da face leste e esgueirou-se sobre o precipício de uns 25 metros. Duas grandes estacas foram cravadas entre pedras e uma enorme escada construída com ripas de madeira e cordas foi lançada ao vazio. Estava aberto o portal de acesso para a Ursa.
Pouco tempo depois, o mesmo homem resolveu subir até ao cume do rochedo. Procurou a secção de parede que lhe parecia ser a linha de mais fácil ascensão e lançou-se à aventura, em solo e por entre blocos decompostos. A emocionante escalada finalmente terminou e, o pescador pôde respirar fundo e apreciar a vista tão inebriante, tão sublime.
Levou a mão ao bolso e retirou um punhado de moedas. Utilizando uma pedra martelou algumas moedas em finas fissuras dos rochedos do topo, como uma espécie de oferenda a um qualquer Deus que o permitira sobreviver à arriscada ascensão.
Alguns minutos depois voltou a descer, “a pêlo”, ou com a ajuda de uma velha corda (dependendo da versão adoptada).
Após essa primeira vez, o homem foi voltando periodicamente ao rochedo da Ursa, aproveitando a maré vazia e subindo pela fantástica escada de cordas, dirigindo-se ao lado oeste da formação, onde a rebentação anuncia a melhor pescaria.
De quando em vez, enquanto esperava que a maré voltasse a vazar, antes que a Pedra da Ursa deixasse de ser ilha, o pescador voltava a escalar até ao topo, para apreciar as vistas, para viver uma nova aventura. Sempre que o fazia, deixava a sua oferenda de moedas, cravadas nas mais altas rochas que lograva alcançar.
Hoje em dia, cada vez que visitamos a praia da Ursa, podemos apreciar a incrível escada de cordas que os pescadores locais costumam utilizar. E, se nos atrever-mos a escalar até ao cimo, ali estão as moedas cravadas, desde os tempos dos escudos.
Fábula ou realidade?
Na Pedra da Ursa existem seis vias de escalada.
Escalar qualquer uma delas representa uma aventura com o seu grau de risco e compromisso. A rocha encontra-se em alguns pontos e em determinadas vias no limite do realizável. No entanto, com o devido cuidado, é possível desfrutar de uma ascensão num ambiente singular, que culminará num verdadeiro cume.
Uma das vias não vem representada nas fotos. Trata-se de um diedro/chaminé aberto por Paulo Alves em 1978, na face voltada ao mar (oeste). Segundo o autor “a rocha encontra-se em mau estado e a linha não possui especial interesse”.
A outra técnica consiste simplesmente em esperar pela vazante e “rapelar normalmente”. Uma diferença de, pelo menos, 10 horas entre marés permite realizar uma segunda escalada, ou um pic-nic único junto à cabana dos pescadores no lado oeste da torre.
O material necessário para qualquer das escaladas são os entaladores e um conjunto normal de friends. Os pitons não são necessários.