ESTRELAS ALINHADAS
“Mer...! Que porcaria!”
Um fio de sangue escorria pela perna abaixo.
Um pequeno acidente de trabalho tinha-me deixado um corte ligeiro na zona da canela. Nada de grave mas, incómodo.
Agora, um toque incisivo numa aresta de calcário, voltou a activar a ferida.
Tentei limpar o sangue com as próprias mãos para evitar manchar o pé-de-gato. De imediato, apercebi-me do erro. Com o sangue nas mãos não podia tocar em coisa nenhuma, sem a sujar. Claro que não ajudava nada estar suspenso num friend meio torcido, numa secção de escalada artificial, acompanhado apenas por gaivotas que passavam de quando em vez a grasnar algo incompreensível e com uma atitude de alheamento (de resto, natural) relativamente á minha situação constrangedora.
Olhei de novo para as mãos e para a perna. Não queria tocar sequer na rocha, por temer que possíveis repetidores desta via, que tentava abrir em solitário, fossem pensar que alguém tinha morrido ali, ao avistar as manchas de sangue na parede de calcário. Não queria tocar na corda, no material, na roupa... “Que fazer?”
Eis que me vem à memória um item que, não sei bem porquê, me convenceu que poderia resolver o problema da sujidade e servir ao mesmo tempo como desinfectante... o magnésio.
Rapidamente esfreguei as mãos e polvilhei a perna com bastante magnésio, na tentativa de estancar o sangue. O truque resultou, pelo menos no que tocava ao estancar, porque relativamente à desinfecção, tinha as minhas duvidas.
Voltei a concentrar-me na escalada que tinha pela frente, sem esquecer a escalada que deixara para trás.
Mar.
Há bastante tempo que tinha realizado a minha ultima escalada em solitário. Na verdade, há algum tempo que não tocava em rocha, pelo menos com as mãos nuas. Nos últimos dois meses, a única visita à rocha resumiu-se a uma sessão de desportiva, com a Daniela, na Parede Amarela. O chamamento do Inverno, com o seu gelo, a sua neve e as suas paisagens brilhantes típicas da montanha, fora até à data demasiado apelativo. Agora, com o retorno das lufadas de ar quente é tempo de reabrir o saco de magnésio... não necessariamente para aplicar em feridas. E, para retomar o ritmo, nada mais estimulante que uma tentativa em solitário!
Com o petate carregado de material, atravessei, em solo, o primeiro lance fácil da “Viagem sem rumo”, na fantástica falésia dos Pinheirinhos, na Arrábida. Com as ondas suaves do Atlântico a roçarem-me os pés, reflectia sobre esta estranha forma de psico-bloco. No caso de algo correr mal a ideia seria libertar-me do petate e voltar à tona. Uma perspectiva, no mínimo, desagradável. No entanto, realisticamente era muito difícil estragar o dia neste acesso.
Kit solitário preparado...
Tinha escolhido uma linha compacta da parede que prometia uma escalada criativa e interessante. Provavelmente teria de utilizar expansivos, nalgum que outro local. Para isso tinha-me prevenido com seis plaquetes que julguei suficientes para realizar a via. Olhei para a pequena bolsa onde costumo transportar o “hard-wear” para constatar com surpresa que me tinha esquecido de um instrumento fundamental para colocar as plaquetes: o burilador!
Alguns segundos de hesitação...
As condições eram as perfeitas, o mar, a temperatura e, sobretudo... a motivação. As estrelas pareciam conjugar-se e não podia deixar escapar o momento, devido a um detalhe técnico. Mesmo que esse detalhe constituísse um acréscimo significativo no nível de compromisso.
Os pescadores e as gaivotas, alheios à minha presença.
O nosso cérebro funciona de forma curiosa. A tal ideia do compromisso acrescido pareceu funcionar mais como um catalisador que um redutor de motivação. Uma espécie de brisa de inspiração difícil de explicar, permitiu-me escalar de forma fluida, por terreno desconhecido e sempre em livre. Hesitando aqui e ali em passos um pouco mais exigentes ou em secções de rocha suspeita.
O primeiro lance.
Auto-retrato, no primeiro lance.
A primeira reunião, antes das "chapinhas"!
Não me considero nenhum “bravo”, nem especialmente dotado. Não estou acima da média, nem ao nível do “grau”, nem ao nível psicológico. Na verdade, tenho até bastante medo de cair. Normalmente, a sensação da queda no estômago não me agrada nada. No entanto, estes momentos de entusiasmo a que gosto de chamar inspiração, por vezes apuram-me a concentração ao ponto de tranquilizar o espírito, direccionando-o positivamente.
A escalada livre terminou debaixo de um extra-prumo, no final do segundo largo.
Segundo lance.
Suspenso num friend, chegara o momento de analisar a situação de uma forma realista. No meu arnés sobravam apenas quatro micro-friends.
Tinha transportado quatro pitons, dos quais, dois estavam metidos na rocha abaixo de mim, um tinha realizado um vôo involuntário até ao mar e o ultimo piton... digamos que não representava uma opção segura a considerar para uma reunião. Para cima... o desconhecido, no qual se incluía alguns metros de escalada artificial, uma saída vertical e uma reunião por montar.
Em definitivo e honestamente, faltava-me a perspectiva. A perspectiva de uma ou duas plaquetes!
Para complicar um pouco as coisas, uma canelada ligeira reabrira a pequena ferida na perna, proporcionando um episódio sangrento, que acabei por sarar com magnésio.
Um destrepe mais nervoso até alcançar o ultimo piton fixo que, equalizei com um pequeno entalador e estava garantida a descida em segurança relativa, com a promessa de voltar.
Perspectiva do piton e entalador, ainda equalizados da descida do dia anterior.
O dia seguinte viu-me a descer o trilho em direcção à falésia, ainda mais carregado que no dia anterior. Desta vez transportava também uma nova estratégia menos comprometida mas, com alguma exigência ética.
De novo, a caminho!
Para não repetir o primeiro lance já aberto, rapelei por uma corda estática desde o topo da via “Flor ao vento” (situada à direita do novo projecto) até à reunião do primeiro lance da nova via. Equipei a reunião com dois pernes e, desde aí, voltei a repetir o segundo lance “à frente” mas, desta vez, munido do material expansivo que contava colocar “à mão” em caso de necessidade. Essa necessidade revelou-se real e à força de marteladas e alguma dor de rins, lá deixei um perne na saída do extra-prumo e outro na reunião seguinte. O mínimo de ferralha para permitir uma escalada saudável.
Segundo largo. A seguir ao extra-prumo.
Seguiu-se um ultimo lance sem historia, que dribla alguns arbustos incómodos e termina nos ultimos 15 metros da “Flor ao vento”.
O mar azul e as vistas imensas proporcionaram-me o prémio mais valioso, pela concretização desta aventura solitária.
Dois dias depois, a Daniela e eu repetimos a nova via, oficialmente batizada com o nome, “O desalinho das estrelas”.
Paulo Roxo
A Daniela na travessia de acesso.
O inicio do primeiro lance.
Os topos
Todas as vias do Flanco esquerdo dos Pinheirinhos