Parecia incrível mas não conseguia recordar nenhuma passagem da escalada. Era como se o meu cérebro tivesse realizado um “delete” involuntário.
Finalmente, lá consegui recuperar duas memórias muito ténues, como que vindas de um sonho mal processado. Uma passagem mista, entre neve e rocha de uns 100 metros, que evitava um pilar compacto de granito e, a maior quantidade de neve que existia na via, naquela altura.
Ficara no entanto, gravada a ferro quente uma visão daquele longínquo dia de Agosto: a batalha eléctrica entre duas mega-nuvens, mesmo por cima do Cervino, que se avistava muito longe, na linha do horizonte.
Passaram mais de 15 anos desde que a aurora inaugurou aquele dia.
A intensidade épica dos relâmpagos trocados entre aqueles dois cúmulos gigantescos, misturada com o brilhante nascer do sol, transmitiam uma energia poderosa. Poderosa e inesquecível. Inesquecível, ao ponto de constituir a única memória clara e concisa que possuía da escalada da Aresta Kuffner ao Mont Maudit, no maciço do Monte Branco.
A aresta Kuffner.
Antes de empreender-mos a ascensão, alimentava a esperança de usufruir de certas vantagens por se tratar de uma repetição, para mim. Pensava que me iria lembrar de muitas passagens à semelhança de certas vias de escalada em rocha, das quais ainda me recordo de muitos passos específicos.
Os obstáculos iam-se sucedendo e a cada esforço de memória surgia-me apenas a imagem das duas nuvens titânicas a esgrimirem entre si raios de luz.
À medida que as horas iam passando ia-me acostumando à ideia que esta seria, na verdade, uma escalada realizada integralmente á vista. Para mim, uma nova primeira ascensão desta emblemática aresta afiada.
Para a Ana e para o Tiago, de facto e claramente, uma primeira absoluta.
Dois momentos da descida ao Mer de Glace, para realizar umas técnicas de resgate em crevasses. Pouco depois, a chuva intensa espantou-nos do local a sete pés. "E então gostaram de contribuir com os 25 euros do bilhete do comboio?" Contrafeitos, acabámos o dia com a sensação de apenas ter apoiado a economia local.
Longe de ser uma via tecnicamente difícil, a Aresta Kuffner é uma via longa e de algum compromisso. Como se trata de uma travessia, a retirada torna-se mais complicada em oposição com uma outra via mais rectilínea, de parede.
A Ana e o Tiago resolveram aceitar o desafio que lancei via internet, onde propunha escalar o Monte Branco pela “Kuffner ridge”. Eles desejavam experimentar algo mais que uma via normal de uma qualquer montanha nos Alpes, por isso o projecto proposto pareceu-lhes interessante.
Era um programa com a duração de oito ou nove dias e reservado a dois pretendentes com alguma experiência prévia de montanha. No fundo, com conhecimentos de escalada em gelo e de técnicas de montanha em geral. E claro, com um suporte físico adequado.
A cordada na cabana bivaque "La fourche", mesmo no inicio da aresta Kuffner, propriamente dita.
O programa incluía uma ascensão prévia de aclimatação e dadas as condições medíocres de gelo (o Verão demasiado seco) cedo desistimos do objectivo inicial, o esporão Migot à Agulha de Chardonnet. Á decisão da alterar os planos ajudou também o forte nevão que caiu durante três dias, que tornaria penosa a aproximação à Chardonnet, através do glaciar Du Tour.
Chardonnet ao entardecer.
Optámos por escalar um curto corredor directo à Aiguille du Tour que, desde o refugio, apresentava um aspecto simpático e convidativo.
As más condições da neve, o gelo precário e um curto passo de saída em “Dry-tooling” tornaram a via mais interessante do que o topo-guia fazia prever.
Aproximação ao corredor de aclimatação.
Um pouco de escalada em gelo. As parcas condições da neve e gelo apimentaram um bocadinho a escalada... divertido!
O Tiago a cavar a sua trincheira para aceder á cova da penultima reunião da via.
A Ana, já no interior da cova a questionar-se: "por onde raios iremos sair?"
Foi uma jornada divertida.
Satisfeitos, caminhamos nesse mesmo dia até ao vale, chegando à povoação de Le Tour ao fim de algumas horas, cansados e quanto a mim, com duas grandes bolhas nos dedos dos pés, aliviados no ultimo momento por uma boleia oportuna de um Jeep, que passou ocasionalmente no estradão de terra batida final.
De volta... para uma nova aventura.
Ainda em Portugal, uns dias antes de partir para os Alpes, tinha pousado dois pares de botas à minha frente. Umas botas duplas de alta montanha (e expedições!) e umas velhas botas de couro, desgastadas e com uma capacidade impermeável inversamente proporcional ao que a pequena chapa gravada com a palavra: Gore-Tex, afirmava. A escolha não era fácil: 1. Pés a escaldar; 2. Pés molhados.
Seguindo uma lógica discutível, optei pela primeira hipótese. Afinal, anunciavam uma queda de temperatura abrupta para Chamonix, para os dias seguintes.
Efectivamente, a temperatura caiu bastante... para voltar a subir logo a seguir. Portanto, as botas duplas, o calor e a longa descida da Agulha do "Tour" conspiraram para um desenlace desagradável.
As "botifarras" a cruzarem uma crevasse.
Um aspecto do maciço. À direita, o Gran Capucin. Escaladas top!
Há bastantes anos que não me lembrava de ter bolhas de caminhada.
A partir daquele momento, por causa de um erro de escolha, calçar as botas transformou-se num pequeno suplicio que teria de suportar para levar avante o compromisso assumido. Uma espécie de ritual de dor, em prol de um valor mais elevado. Assim, durante toda a actividade compreendida entre o “inicio-meio-fim” da Aresta kuffner, convivi com o constante lembrete incómodo dos dedos dos pés a gritarem: “Estamos aqui! Estamos aqui!”
Encordamento para glaciar, momentos antes de iniciar a aproximação à Kuffner.
Abrindo caminho em direcção à Kuffner. Atrás, o Gran Capucin e mais longe o Dent du Géant.
Uns 250 metros de gelo duro precederam a aresta Kuffner.
Esta pendente faz parte da aproximação à aresta e à cabana bivaque "La Fourche", onde iriamos pernoitar. Lá embaixo, uma cordada formada por um guia/cliente preparavam-se para fazer o mesmo.
O "caminho" de acesso à cabana. No extremo inferior direito pode-se apreciar um troço do corrimão da cabana, literalmente pendurada na aresta.
A Kuffner não é difícil mas, é decididamente “afiada”. Abismos insondáveis de neve, gelo e um caos de blocos, despenham-se vertiginosamente para ambos os lados da aresta que, nalgumas ocasiões não chega a alcançar os 30cm de largura na crista. Do lado esquerdo, contemplamos a face Italiana do Monte Branco, a dramática Face de Brenva, uma parede de gelo e glaciares suspensos, magnifica e esmagadora.
Vertigem.
A visão hipnótica desta barreira imensa, transportou-me para outros tempos, quando escalei o esporão de Brenva, uma via glaciar com 1000 metros, que culmina directamente no cume do Monte Branco. Foi um bom momento de juventude. Também me lembrei que, se a voltasse a repetir, provavelmente não me lembraria de nada.
O amanhecer esplendoroso.
Do lado direito, prolonga-se uma espécie de “vale do silêncio”, branco e liso, com contadas crevasses visíveis e orlado por uma crista recortada por torres de granito, chefiadas pelo ultra-célebre Gran Capucin, palco de famosas escaladas de indiscutível qualidade.
Para trás, ficava o Dente do Gigante e a mole colossal das Grandes Jorasses.
O sol intenso da manhã surpreende-nos a meio da escalada.
A linha mais emblemática das Grandes Jorasses é o Esporão Walker, escalado pela primeira vez pelo mítico Ricardo Cassin, no longínquo ano de 1932 (!). A fama desta via, que se ergue ao longo de 1200 metros de granito, propagou-se pelo mundo inteiro, adquirindo um estatuto quase galáctico. A Walker tornou-se numa espécie de objecto de desejo para qualquer aspirante a alpinista. Um trofeu. Um ritual iniciático em vias de compromisso e envergadura.
Como é evidente, num dado momento, sucumbi ao fascínio desta parede. Desta feita, apesar dos anos volvidos, algo mais ficara registrado na minha memória. Conseguia ainda recordar muitas situações de forma vivida, como por exemplo, o esparguete cozinhado num fogão “Camping gás”, precariamente apoiado entre as pernas. Naquela noite, acompanhado pelo Nuno (Larau), aguentámos um bivaque de bater os dentes, sem saco de dormir. Abraçados para aquecer, sentados numa escassa plataforma de neve, aguentámos as longas horas de escuridão à espera do sol frio da manhã, para finalmente nos pôr-mos a mexer, retomando penosamente a ascensão.
"Está proibido o desequilibrio". Não há problema. Está tudo controlado.
Á medida que o dia ia nascendo, íamos distinguindo um mar de nuvens espectacular que cobria todos os vales a perder de vista. Uma visão que injectava um novo ânimo ao cansaço acumulado das horas passadas a trepar e a destrepar neve e rocha na Kuffner, num terreno mineral adverso. Um mundo indiferente à fragilidade humana.
Um momento para relaxar um pouco.
Continuando...
Para a Ana e Tiago, uma escalada com estas dimensões e características era uma novidade. No entanto, iam-se desenvencilhando correctamente nos múltiplos passos de escalada mista que a via ia apresentando. Mais do que escalada mista, existiam longas secções de escalada em rocha pura, realizadas com os crampons colocados nas botas, para não perder tempo e energia a retirar e recolocar aquelas peças de equipamento tão úteis, como incómodas.
Um dos multiplos passos de rocha que a Kuffner nos impõe.
Nas arestas de neve, progredíamos mais lentamente, com cuidado para evitar um acidente. A impossibilidade de proteger convenientemente estas secções, significava que ninguém podia tropeçar ou escorregar. Os precipícios para ambos lados da aresta eram de vertigem. Felizmente, na maior parte do recorrido da aresta Kuffner, ia sendo possível colocar protecções intermédias bastante fiáveis.
Um dos "cruxs" da via. Rodear a ponta de Androsace.
Á medida que o dia ia passando também a fadiga penetrava, potenciada pela altitude, que já se fazia sentir. Escalar rocha aos 4000 metros não é uma tarefa simples. Contudo, cada ressalto, cada passo a mais, significava alguns metros a menos entre a nossa posição e o final da via. Algum tempo depois, atingimos a aresta final.
Nos metros finais.
A aresta final. Atrás da Ana, o Monte Branco do Tacul com 4248m.
Depois da actividade de aclimatação, ainda em Chamonix, a Ana e o Tiago revelaram que para eles subir ao cimo do Monte Branco era um objectivo secundário. No fundo, o seu principal intuito era escalar vias interessantes nos Alpes. Realizar coisas que lhes proporcionasse uma experiência diferente. Uma filosofia de montanha curiosa, de certo modo rara, sobretudo na nossa micro-cultura Lusitana. Durante alguns minutos pensei naquele momento pouco habitual de encontrar alguém que efectivamente valoriza mais a experiência como um todo, em lugar de saborear apenas os minutos finais, como o pisar de um troço de neve de um qualquer cume, de uma qualquer montanha.
Fantásticos corredores e Goullotes no Monte Branco do Tacul. Bons objectivos para a Primavera.
Com a escalada da Aresta Kuffner o Tiago e Ana tinham acabado de conquistar o seu prémio.
Restava a descida, através da via normal do Monte Branco.
Era tempo de lamber as feridas, de assimilar as vivências, de reflectir sobre o realizado. No fundo, de apreciar a aventura.
Lá embaixo, de novo em Chamonix.
Chamonix... secar!
Chamonix... pintura mural.
Paulo Roxo