Esquerda ou direita?
Arriscar ou equipar?
Tudo questões que se tornaram num...
DESNORTE TOTAL
“Teneis una como esta?” Pergunta o jovem rasta, num sotaque que denuncia a sua nacionalidade não hispânica.
Na mão exibe uma chave de rodas, daquelas para trocar um pneu furado do carro.
Na berma do estradão de terra e pedras que serpenteia pelo meio da floresta e que serve para aceder aos sectores de escalada, encontramos uma Volkswagen traffic atravessada no caminho e com um pneu totalmente em baixo.
“Es que esto esta roto!” Observamos a chave de rodas, partida e inútil.
“Vamos a ver.” Diz-lhe o Bruno, abrindo o porta bagagens da sua carrinha, deixando à vista um espaço amplo de bancos recostados e diverso material, entre mochilas, sacos de dormir, colchonetas, caixa de comida, mesas e cadeiras de campismo, etc.
Equipamento profissional para... acampar.
Estamos em El Chorro, mesmo a meio de mais um sonho de escalada, vivendo o processo de abertura de um novo itinerário, no epicentro de novas emoções e aventuras.
A chave de rodas emprestada afinal não funciona e o rapaz devolve-nos a ferramenta.
“Tu crees que aqui se puede dormir?” Com aparente despreocupação o jovem aponta para um pequeno prado, situado mesmo ao lado do estradão. Respondemos que em principio não deverá haver problema, desde que desmonte o aparato pela manhã.
Nós próprios, encontrámos o “spot” perfeito, mesmo no meio do bosque, onde passámos as noites.
No bosque, o local perfeito para dormir.
Nas duas manhãs seguintes, pouco depois do nascer do sol, ao nos dirigirmos para o nosso projecto, lá encontrámos o jovem rasta enfiado no saco-cama, deitado tranquilamente. Ao seu lado, dormiam também alguns amigos mais. Junto ao prado, ainda atravessada no caminho, aí estava a Volkswagen, com o pneu em baixo, à espera de uma simples chave de rodas, sem pressas para sair dali.
A aproximação ao mega-projecto.
Mais tarde, durante um passeio encontrámos de novo o grupo de rastas. O jovem reconheceu-nos e disse com ar divertido: “Dos dias de trabajo para arreglar la rueda!”
Naquele momento pensei que um simples pneu furado seria o suficiente para despoletar uma situação de stress para a maioria das pessoas, por alterar rotinas estabelecidas. Observando aquela malta tranquila, o Bruno e eu comentávamos que a vida não tem de ser necessariamente tão difícil.
A simplicidade é exactamente uma das razões que nos leva a lugares como este. “Uma das coisas que mais gosto na escalada é o facto de me abstrair de tudo.” Confessou o Bruno, num dos jantares à luz do frontal, na sua mesa de campismo.
Bruno, um cozinheiro e peras!
O nível de concentração durante o acto de escalar, a busca constante do equilíbrio para evitar a inexorável atracção da gravidade, o próprio direccionar da mente no sentido de enfrentar situações de risco ou perigo. São coisas que despertam os instintos mais recônditos, que nos reduzem ao estado mais simples, se quisermos mais puro e que, no fundo, nos limpam a alma (nem que seja por breves momentos) de entraves, frustrações e preocupações.
Flora e mineral de El Chorro.
Tinham passado apenas duas semanas desde que a Daniela e eu estivéramos em El Chorro a escalar uma nova via no sector “Escaleras suizas”.
O plano furado de tentar uma via no Douro levara-nos para sul.
Desta vez, com o Bruno Gaspar, repetia-se o processo.
De malas e bagagens (e muito friends!) apontados para o Douro Internacional consultamos de novo a internet, na esperança vã de que as previsões de chuva para o norte se alterassem da noite para o dia.
Os primeiros passos fáceis e fluidos em calcário de razoável qualidade inserem-nos definitivamente na escalada.
“Merda! Está aqui um piton antigo!” Logo na primeira parte da via a que nos propomos encontramos um sinal que prova a presença de antecessores. Pensando que podia ter sido apenas uma tentativa anterior, decido continuar.
"Então vamos lá!"
No final de um pilar sem historia mas de linha muito lógica, avisto outro sinal de passagem: uma cordeleta queimada pelo sol, a abraçar uma ponte de rocha.
Fixamos uma das cordas estáticas para retornar no dia seguinte, não sem antes reflectirmos sobre as possibilidades.
Dois momentos do Bruno no segundo lance (para nós o primeiro, uma vez que escalámos de seguida os primeiros 70 metros de via).
“A via mais lógica e óbvia é aquele pilar extra-prumado.” O Bruno aponta para a esquerda das nossas cabeças. Aceno em concordância.
“A existir uma via aberta, irá concerteza por ali!”
Olho para a direita e avisto uma espécie de diedro/chaminé igualmente óbvio.
Um rápido reconhecimento indica que a segunda hipótese implica equipar um curto muro com expansivos antes do diedro avistado.
“Estou indeciso!” Digo.
Pessoalmente não tenho muito interesse em repetir uma via estabelecida.
“Por mim, tentaria seguir a linha lógica. Se encontrarmos sinais de passagem descemos e tentamos outra coisa. Senão...”
Acabo por concordar com a sugestão do Bruno. No dia seguinte se veria.
Com ar de tó-tó a pensar no dia seguinte...
O dia seguinte viu-me suspenso num entalador precário sem saber muito bem se aquilo iria aguentar ou não.
“Bruno, atenção!” A chamada de atenção destinava-se no fundo, a mim próprio. Concentrei-me e ergui-me nos estribos com delicadeza até dar de caras com a pequena fissura onde tinha entalado o bicoin meio ás cegas. Este estava a ponto de saltar. Felizmente, mesmo por detrás daquela peça precária ali estava uma boa fissura prontinha a receber um novo entalador “à bomba”.
O pilar extra-prumado. O lance de artifo da via. Um bom objectivo para realizar em livre um dia.
Tentava conquistar o estético pilar extra-prumado que faria a ligação mais lógica com o muro superior. Cerca de uma hora e meia depois, lá atingi o nicho reservado para a reunião. Nem sinais de uma passagem anterior. Abaixo dos meus pés ficava o tecto soberbo onde abandonei um piton e uma plaquete.
Passado o local do pequeno entalador do medo.
Bruno a chegar à reunião do terceiro lance, após o grande extra-prumo.
O Bruno encarregou-se do lance seguinte constituído por uma fissura vertical e um novo esporão bonito.
A iniciar o quarto lance da via.
Alguns escaladores passavam no solo, mesmo por baixo da nossa posição. A possibilidade de soltar alguma pedra deixava-nos apreensivos.
O sector “Poema roca”, localizado numa das principais paredes de El Chorro, constitui também o muro mais alto da zona, com quase 300 metros de rocha vertical e extra-prumada. Este é também um dos sectores mais concorridos devido ao elevado numero de vias desportivas, a maioria com apenas um lance de escalada.
Sector "Poema roca". Espectacular e com historias para contar.
Os muros superiores ainda apresentam várias possibilidades para itinerários longos. No entanto, os candidatos à inauguração desses itinerários deverão ter bem presente que a atenção a rocha solta deverá ser uma constante.
Felizmente, o largo mais precário da nossa via tinha sido ultrapassado: o quinto lance que, apesar de não representar nada de muito escabroso, continha alguns blocos ameaçadores. “Numa situação de escalada sobre o mar, lá para os nossos lados, estes blocos já estavam a voar!” Comentei, ao mesmo tempo que tentava colocar os pés noutras presas mais saudáveis.
“Não mandes nada. Cuidado que agora anda gente lá embaixo!” A voz do Bruno denotava preocupação.
Mesmo a propósito, o lance reservou-nos um momento de emoção, quando ao içar o petate, soltei um bloco do tamanho de um micro-ondas que voou sob o olhar impotente do Bruno. “PIEDRAAA!” Gritámos em uníssono. A pedra estatelou-se no solo e rebolou alguns metros até se deter no meio de algumas arvores. Nem sinal de mazelas, queixumes ou vozes iradas de punho erguido com promessas de violência. O local retomou a calma habitual.
Fixámos a segunda corda estática e também a corda dinâmica. Rapelámos até à base da parede. Tentaríamos terminar a via no dia seguinte.
Bruno a rapelar o terceiro lance pela corda fixa. Na foto pode-se apreciar a inclinação do tecto.
A primeira parte da manhã seguinte foi passada a jumarear as cordas instaladas na parede. Um atrás do outro, vagarosamente, lá fomos ganhando o terreno vertiginoso conquistado nos dias anteriores até completarmos os 175 metros que nos separavam do solo.
A jumarear o tecto com muito ar debaixo dos pés.
Os planos originais para o Douro Internacional incluíam a realização da ascensão em técnica de Bigwall onde iríamos utilizar a hamaca que nos permitiria “viver” na parede durante a abertura da via.
Quando o mau tempo nos empurrou para o El Chorro, mudámos de estratégia. O facto de passarem pessoas com uma certa regularidade junto à base das paredes condicionou imediatamente o método de escalada. “Viver” na parede implicaria muito mais manobras e um incremento no peso a içar, o que aumentaria de forma substancial o risco de deslocar pedras.
Por outro lado, devido ás características da própria via, seria muito difícil concluir a escalada num único dia. Assim, a solução de compromisso foi fixar cordas suficientes para permitir um “ataque” final mais descontraído, sem pressões ao pôr do sol nem épicos nocturnos em território desconhecido.
E mais uma "jumareadela" tediosa antes de retomar a escalada "à séria"!
À esquerda da quinta reunião erguia-se uma enorme placa de calcário cinzento com um aspecto muito sugestivo.
O Bruno resolveu aquele que se transformou no lance mais estético e também o de maiores dimensões de toda a via: uma placa com uns 45 metros, excepcional, de boa rocha e aderência, com um “crux” no final constituído por alguns passos de bloco com os pés em presas indecentes (ou inexistentes?).
De novo em acção! Bruno a iniciar o lance mais espectacular da via.
"Párriba!"
“Atenção aí!” Com as energias a drenarem-se via antebraços o Bruno tentava proteger convenientemente os últimos movimentos. Finalmente, após um curto descanso num friend suspeito, conseguiu resolver o problema e alcançar uma plataforma exígua para montar a reunião.
A meio do sexto lance.
Bruno a aproximar-se do crux do largo. Os braços pedem descanso.
Escalei o lance com desfrute, admirando a estética do itinerário onde não foi necessário abandonar qualquer piton, cordeleta ou plaquete. O “crux” travou o ritmo e rapidamente fiquei sem saber onde colocar os pés. Sem mais nem menos, abaixo dos joelhos, pendiam agora dois apêndices inúteis que tentavam em vão recolocar-se na rocha. Incapaz de realizar o passo com algum brio, engoli o orgulho e toca de subir a coisa ao bom estilo de escalada livre... de preconceitos (!).
A sexta reunião.
“Roxo, por aí NÃO!” Fui proibido terminantemente de tentar sequer uma travessia para a esquerda da reunião, através de um edifício de grandes lastras que se mantinham em consola. Uma rápida inspecção concluiu que as lastras estavam de facto apoiadas em... nada! Com efeito, tinham sido as fissuras produzidas por essas mesmas lastras o que nos atraiu desde a reunião anterior. As fissuras convidativas prometiam uma saída rápida e lógica. Para o Bruno, o convite transformou-se em horror quando verificou o estado precário da estrutura. Nem se atreveu a tocar naquilo, quanto mais colocar ali alguma peça de material.
A alternativa mais viável parecia ser um muro compacto que se erguia directamente da reunião. A sua escalada implicava o uso da máquina para colocar alguns expansivos.
A preparar-me para colocar uma plaquete.
"Ok! Agora posso continuar!"
Optámos desde o inicio por utilizar a máquina porque imaginámos a possibilidade de encontrar lances mais compactos e sem fissuras. O uso moderado dessa “batota” permitiria ultrapassar as secções mais lisas com mais celeridade.
Tardei mais tempo que o desejado a resolver os passos em escalada artificial, onde abandonei três plaquetes e dois pitons. Para cima restavam uns vinte metros de escalada mais fácil e com estrutura.
Rocha mais compacta onde utilizei os estribos. Á esquerda avistam-se as fissuras convidativas mas, as lastras que as formam encontram-se apoiadas em... ar!
"Ei! O pé aí! Tira o pé!"
Assegurei o Bruno que rapidamente traduziu os passos mecânicos de artificial em movimentos mais elegantes de escalada livre.
A partir daquele ponto a parede perdia inclinação de forma evidente. Restavam uns 50 metros de trepada fácil por entre alguns blocos de aspecto instável até alcançarmos a aresta. O meu “chip” alpinista impelia-me a continuar. De alguma forma, à semelhança com o que se passa nas montanhas, parecia que esta aventura não estaria completa sem um pequeno cimo. Mas, as cordas fixas mais abaixo obrigavam-nos a descer para as desmontar. Rapelar desde o topo da falésia suponha uma probabilidade demasiado alta de deslocar pedras. Pesando prós e contras decidimos terminar a nossa via no final das dificuldades, ou seja, exactamente no ponto onde nos encontrávamos.
Restava equipar as reuniões para descer. "A ver se temos bateria!"
Fim... da via... falta a descida.
O ultimo rapel reservou-nos uma surpresa, digamos... espinhosa!
A linha de descida desde o grande tecto correspondente ao terceiro lance depositou-nos mesmo por cima de um imenso jardim de... cactos!
“E agora?”
“Agora, vamos sofrer um bocadinho!”
A perspectiva de rapelar directamente para o interior de um campo de cactos era tão “sui géneris”, tão original, que a única coisa que nos veio à cabeça foi rirmos da nossa própria situação.
!!!
Á medida que descia hesitante em direcção aos cactos, imagens de banda desenhada e cartoons enchiam-me o cérebro, nomeadamente aquelas em que o personagem mais desgraçado saía de uma situação semelhante, aos gritos, a correr desalvorado, com as nalgas pejadas de espinhos.
!!!!!!
Imaginava também a reacção das pessoas no solo, que naquele momento poderiam estar a observar: um campo enorme de cactos, folhas carnudas e espinhosas a voar 40 metros e a aterrarem com um som seco. De repente, do meio dos picos, um louco agarrado a uma corda, com um olhar esbugalhado pela dor...
Na segurança confortável do chão demos finalmente o abraço de celebração pela aventura terminada.
Agarrados a nós ainda estavam todas as cordas, mochilas e demais quinquilharia que fomos desmontando pelo caminho, qual “carro-vassoura” sobrecarregado.
"Carro-vassoura!"
Uma das testemunhas do ultimo rapel aparatoso aproximou-se. Um tipo alto e andrajoso, com uma pinta germânica, cuja cara transmitia o ar de quem acabava de confirmar a existência de seres extra-terrestres. Impunha-se a questão fundamental, talvez aquela que mais o inquietava:
“Why so many ropes?!”
Paulo Roxo
Topos da via: