A ALMA E A MEMÓRIA
A mais desejada cascata da Serra da Estrela. A célebre "Cascata do Inferno", no dia 1 de Março de 2013.
- Olha, o teu projecto está em condições!
A mais de mil quilómetros de distância conseguia sentir a
excitação na voz do Miguel Grillo ao telefone. Nem sequer era necessário
dizer-me o nome, para eu adivinhar a que projecto se referia.
Estávamos em pleno inverno de 2002, e eu estava “plantado”
em Benasque, no coração dos Pirinéus.
O Miguel, o João (Animado) e o Hélder Massano encontravam-se
na Serra da Estrela. Naqueles dias, tinham-se formado quase todas as cascatas
habituais, incluindo a rara e emblemática “Cascata do Inferno”. Mesmo à direita
desta ultima “ex-libris”, existe um tecto pronunciado desde o qual se ergue de
quando em quando, uma fantástica cascata de gelo inacessível, a quase 30 metros da base da
parede. Esta inacessibilidade, esta aparente impossibilidade, foram talvez os
verdadeiros motivos que despertaram a minha imaginação, que atraíram os meus
sonhos de aventura. Aquele tecto provocador de granito, um tecto que cortava
inexoravelmente o acesso à bela linha de gelo imaculado, representava um
desafio irresistível.
Vistas para a face oeste do Cântaro Magro. Um bom terreno de aventura para a escalada mista.
A partir de meados dos anos 90 sentia-me altamente inspirado
com a escalada em gelo e a “nossa serrinha”, revelara-se um excelente campo de
exploração e aventura. Depois de escaladas várias linhas geladas, hoje
clássicas frequentes (se é que os termos “clássica” e “frequente” podem ser
aplicados ás características extremamente efémeras do gelo na Estrela), uma
ocorrência iria modificar, para sempre, a minha forma de ver a escalada
invernal. Essa ocorrência foi a visão de uma simples fotografia.
O gelo e a rocha.
A foto em questão tinha sido publicada na capa da revista espanhola Desnível, em Janeiro de 1995 e eternizava o Jeff Lowe, suspenso num tecto perfeito, com um dos novíssimos (na época), piolets “pulsar”, gancheado numa fissura rochosa e o outro piolet, cravado numa impressionante estalactite de gelo suspensa no vazio. Era uma visão única, mesmo grotesca. Decididamente poderosa. A fotografia testemunhava a abertura da “Octpussy”, em Vail, nos Estados Unidos e tornou-se de imediato o símbolo de uma pequena revolução no mundo da escalada em gelo, o nascimento de uma disciplina tão estranha quanto inquietante: o “Dry-tooling”. Um novo conceito que permitia utilizar deliberadamente as ferramentas típicas para se escalar gelo, em rocha pura. A teoria original advogava que o objectivo principal seria “caçar” colunas e cortinas de gelo inacessíveis de outra forma.
A fotografia que despoletou o sonho. Jeff Lowe, suspenso na sua "Octopussy", uma via revolucionária que se tornou na bandeira de nascimento do "Dry-tooling" mundial. Foto retirada da net.
Assim, de repente, diante dos meus olhos, novos mundos se
iluminaram. Também a Serra da Estrela iria possuir algum representante dessa
disciplina embrionária no mundo. Um dos mais importantes candidatos, o que mais
se realçava pela sua estética e lógica, era aquela linha de cristal, a tal
inacessível que se erguia do nada, à direita da Cascata do Inferno.
Um dia de Inverno de 1997, sozinho e absorto no meu próprio
entusiasmo, desci desde o topo e, munido com uma máquina emprestada, equipei as
reuniões e coloquei algumas plaquetes no tecto e na placa desprovida de
fissuras do primeiro lance. Nascia assim, um projecto ambicioso. Depois, passei
noites de olhos abertos, a sonhar acordado, imaginando os movimentos atléticos,
que me iriam levar ao sucesso e ao máximo da satisfação pessoal, na minha muito
particular “Octopussy”.
Entretanto, os anos foram passando e, a cada inverno lá ia
surgindo na minha cabeça a imagem daquela linha por escalar, como um fantasma
sazonal disposto a atormentar-me o espírito, cada vez que caíam os valores do
termómetro acompanhados pelos primeiros flocos de neve.
Duas razões principais impediram a concretização de uma tentativa
de ascensão digna desse nome: a via teimava em não se formar em condições ou
quando se encontrava em condições, eu não estava por lá para tentar.
Reunião "à bomba!" Dois "abalakovs" e um parafuso. Foto do dia 3 de Março de 2013, no topo da "Cavalo de gelo".
Um dos factores de sucesso para se escalar gelo na Estrela é, “estar no lugar certo, na altura certa”. Foi o reconhecimento desse factor importante que levou o Miguel a telefonar para Benasque, naquele dia de inverno, não fosse eu desaproveitar uma hipótese de poder finalmente inaugurar a via sonhada.
A minha estada pelos Pirinéus coincidiu com o surgimento da
disciplina de “dry-tooling” em Espanha e, foi nessa altura que realizei o maior
número de vias nesse estilo. Mais do que nunca, estava preparado para enfrentar
as dificuldades da nova via na Serra da Estrela. Ironicamente, a distância
imensa impedia-me aproveitar aquela oportunidade única.
Nesta foto de Abril de 2003, o escalador Galego Juan Goyanes, escala a "Titán", em Ardonés, Benasque. Esta via, equipada por mim, constituiu um bom desafio de Dry-tooling e a sua dificuldade ficou assente em M9. Foto retirada da "Desnivel online", com a cortesia de Juan Goyanes.
A título de desabafo, respondi ao Miguel: - Epá! Se está em
condições, vão lá! Não deixem escapar essa linha! - Secretamente, temia a
resposta, do outro lado.
Cavalheiro, o Miguel declinou o convite e, irremediavelmente,
a via acabou por derreter… literalmente.
Entretanto, passaram mais anos e o projecto desejado, a via
ambicionada, a “Octopussy” lusitana da minha imaginação, ficaria relegada para
segundo plano, destinada a um canto obscuro da memória. A situação de letargia
foi apenas interrompida, em Março de 2010, por uma fugaz remexida em top-rope
do primeiro lance, que permitiu chegar a duas conclusões capitais. A primeira,
foi constatar que aquele primeiro lance era “duro que nem um corno!”. Um “M-Muito!”
em termos de dificuldade. A segunda, foi confirmar que o equipamento fixo seria
manifestamente insuficiente para manter uma potencial ascensão “à frente”, livre
do sério risco de partir as pernas, em caso de queda.
Uma vez mais, a escalada do eterno projecto fora adiado para
futuras calendas.
A Daniela numa cómoda poltrona, depois de escalarmos a excelente "Cavalo de gelo", no sector do "Corredor largo".
28 de Fevereiro de 2013
- Se calhar levo a máquina. Não vá “o projecto” estar
formado… - Anunciei, enquanto organizávamos o material para mais uma incursão à
Serra da Estrela.
No fim-de-semana anterior, a Daniela e eu tínhamos andado a
farejar o gelo no sector do Corredor Largo e, desse reconhecimento saiu uma
repetição nervosa da comprometida “Canalito” e uma “primeira” de uma pequena
cascata que baptizámos com o nome “Micro-coisa”.
Dois momentos da Daniela na "Micro-coisa", uma semana depois da sua abertura.
Dois momentos da Daniela na "Micro-coisa", uma semana depois da sua abertura.
Também tivemos notícias do Rui Rosado e do António Ferra que resolveram investigar o vale de Loriga, onde acabaram por abrir três novas linhas, das quais se destaca a “Youtube”, uma pequena, mas intensa via, com uma entrada em dry-tooling e uma coluna de gelo de saída – mais info sobre estas e outras aberturas na serra, no post seguinte.
A julgar pelas previsões do termómetro, os dias seguintes
prometiam. A esperança de encontrar boas condições era tão forte que a Daniela
resolveu meter uma folga de forma a aproveitarmos três dias plenos de escalada
em gelo.
A Sexta-feira revelou-se um dia de tranquilidade absoluta,
sem o rebuliço habitual de turistas que invadem a zona alta da serra, durante o
fim-de-semana.
Abrindo uma trincheira na neve densa, descemos o
arqui-clássico “Corredor do Inferno” e, imediatamente descobrimos as paredes
que marginam a garganta, pejadas do tão desejado elemento congelado.
A descer o "Corredor do Inferno" e a confirmar as boas condições existentes.
Ao chegar ao fundo do corredor: Yes! Ali estava a mais desejada das cascatas. A “Cascata do Inferno”, formada e imaculada à espera das primeiras pioladas da época.
A descer o "Corredor do Inferno" e a confirmar as boas condições existentes.
Ao chegar ao fundo do corredor: Yes! Ali estava a mais desejada das cascatas. A “Cascata do Inferno”, formada e imaculada à espera das primeiras pioladas da época.
Os olhos da Daniela brilhavam de emoção. Era uma cascata que
desejava muito escalar e agora, surgia a oportunidade, talvez única.
"Uau! Vamos lá!"
"Uau! Vamos lá!"
Quatro momentos da escalada da "Cascata do Inferno", no dia 1 de Março. Gelo imaculado!
Durante as horas seguintes, concentrámo-nos na ascensão dos 70 metros de gelo que constituem esta bela via de rara formação. O dia não podia ser mais perfeito. O azul intenso do céu contrastava com o manto branco pálido da neve. A total tranquilidade do ar frio era apenas interrompida pela respiração profunda, a cada passo vertical mais delicado.
"Yuupii!" Finalmente, a escalar a mais famosa das cascatas da Estrela.
Dois momentos a terminar o primeiro lance.
Ao chegar ao topo, a satisfação era notória. Impossível ficar indiferente, perante o privilégio de completar uma via daquela qualidade. Sem dúvida alguma, uma das linhas de gelo mais estéticas da Península Ibérica, mesmo ao lado de casa.
Três momentos da escalada do segundo lance da "Cascata do Inferno".
Durante as horas seguintes, concentrámo-nos na ascensão dos 70 metros de gelo que constituem esta bela via de rara formação. O dia não podia ser mais perfeito. O azul intenso do céu contrastava com o manto branco pálido da neve. A total tranquilidade do ar frio era apenas interrompida pela respiração profunda, a cada passo vertical mais delicado.
"Yuupii!" Finalmente, a escalar a mais famosa das cascatas da Estrela.
Ao chegar ao topo, a satisfação era notória. Impossível ficar indiferente, perante o privilégio de completar uma via daquela qualidade. Sem dúvida alguma, uma das linhas de gelo mais estéticas da Península Ibérica, mesmo ao lado de casa.
Três momentos da escalada do segundo lance da "Cascata do Inferno".
A Daniela a terminar os passitos delicados de saída da bela.
A descida em rapel, colocou-nos mesmo em cima do antigo “projecto”. Uns pontapés na coluna suspensa no lábio do grande tecto comprovaram as excelentes condições do gelo. Imediatamente, a sensação do “agora ou nunca” atravessou-me os neurónios, como um relâmpago imprevisto.
A descida em rapel, colocou-nos mesmo em cima do antigo “projecto”. Uns pontapés na coluna suspensa no lábio do grande tecto comprovaram as excelentes condições do gelo. Imediatamente, a sensação do “agora ou nunca” atravessou-me os neurónios, como um relâmpago imprevisto.
Era tarde para uma tentativa digna desse nome. “Talvez
amanhã”. Pensei.
A Daniela feliz, junto à reunião de rapel. "Cascata do Inferno: Check!"
A Daniela feliz, junto à reunião de rapel. "Cascata do Inferno: Check!"
Mas, no dia seguinte aquele sector iria estar mais concorrido.
Tendo conhecimento das boas condições do gelo na “Cascata do
Inferno”, um grupo de escaladores meteu-se imediatamente em fila para, também
eles, espetarem ali, os seus piolets e crampons.
Recordei uma dolorosa pancada no nariz, fruto de um bloco de
gelo lançado por um escalador acima da minha posição, numa cascata demasiado
concorrida, durante uma recente actividade nos Pirinéus. Essa memória fez-me
vacilar na decisão de retornar ao sector do Inferno no dia seguinte. A Daniela
ajudou a quebrar as dúvidas: - Se achas que esta é uma oportunidade em mil,
vamos lá! Afinal, vamos estar afastados uns dos outros o suficiente, para não
haver perigo.
No Sabado, o Ricardo Belchior e o Antonio Ferra, "tiram a senha" para a "Cascata do Inferno"...
... logo a seguir, entram em cena o Rui Rosado e o João Garcia.
No Sabado, o Ricardo Belchior e o Antonio Ferra, "tiram a senha" para a "Cascata do Inferno"...
... logo a seguir, entram em cena o Rui Rosado e o João Garcia.
No dia seguinte, de máquina em riste, acrescentei, sem apelo nem agravo, uma série de novas plaquetes na placa exposta do eterno projecto. Escalava em artificial desde baixo e, ao mesmo tempo ia verificando que tal seria se, por um acaso, tivesse a estamina suficiente para realizar aquilo em livre. Fingia tentar os passos em livre, apenas para concluir (uma vez mais) que estava diante de uma via absolutamente futurista na Serra da Estrela.
A iniciar a secção de rocha do antigo projecto.
De certa forma, desiludido pela constatação da minha própria fraqueza, a minha cabeça decidiu que iria descer após a colocação do último expansivo, antes de ultrapassar o tecto e meter-me no gelo. Desistiria assim, de abrir a tão desejada via, naquele dia.
No tecto, ainda pouco convencido que "desta é que é!"
Coloquei a ultima plaquete mas, num impulso irresistível,
estendi o corpo e cravei o piolet no alto da coluna. “Surprise!” O gelo
continuava excelente. Era desconcertante. Agora, esgotavam-se as desculpas para
não prosseguir.
- Atenção, rédea curta na corda porque vou tentar sair para
cima! - Anunciei, ainda com algumas reservas.
"Rédea curta, rédea curta!"
"Rédea curta, rédea curta!"
Às primeiras “pioladas”, chegou a certeza imediata que iria
conseguir. Relaxei, respirei… alguns minutos depois estava suspenso na reunião,
a uns quatro metros do final do tecto. “Uau!”
A Daniela juntou-se a mim, após realizar a escalada do
primeiro lance também em artificial.
Uma perspectiva da Daniela, na saída do tecto.
Ainda em artificial a Daniela prepara-se para entrar na cascata.
Uma perspectiva da Daniela, na saída do tecto.
Ainda em artificial a Daniela prepara-se para entrar na cascata.
"Okis! Agora, já estamos melhor!"
No entanto, para considerar a via real e oficialmente aberta, faltava ainda escalar o segundo lance, integralmente em gelo. Esse facto não constituía qualquer problema, antes pelo contrário, dada a excelente aparência do “edifício” congelado que se erguia por cima dos nossos capacetes. O que se seguiu, foi a realização de uma das mais fantásticas cascatas jamais formadas pela natureza, na nossa Serra da Estrela. Uma estrutura com quase 40 metros, ligeiramente mais empinada que a própria “Cascata do Inferno”.
Quatro momentos na fantástica cascata do segundo lance. Quase quarenta metros de puro júbilo!
No entanto, para considerar a via real e oficialmente aberta, faltava ainda escalar o segundo lance, integralmente em gelo. Esse facto não constituía qualquer problema, antes pelo contrário, dada a excelente aparência do “edifício” congelado que se erguia por cima dos nossos capacetes. O que se seguiu, foi a realização de uma das mais fantásticas cascatas jamais formadas pela natureza, na nossa Serra da Estrela. Uma estrutura com quase 40 metros, ligeiramente mais empinada que a própria “Cascata do Inferno”.
Quatro momentos na fantástica cascata do segundo lance. Quase quarenta metros de puro júbilo!
No topo, exultantes, celebrámos a primeira ascensão de uma via extraordinária, uma linha realmente singular na nossa geografia. Para mim, algo mais que uma simples escalada.
A Daniela e eu resolvemos baptizar a via com o nome “GRÂNDOLA,
VILA MORENA”, como uma forma de protesto e contestação, neste período
conturbado em que vivemos e, como homenagem singela e improvável ao poeta
incontestável que criou esse hino “da malta”.
A cascata final e o final de 15 anos de "sonho morno".
Passado o período de relativa embriaguez pós-realização e,
analisando objectivamente a concretização, ao nível técnico, a nova via não
representa nenhuma grande novidade. A utilização da máquina reduziu bastante o
nível de exposição e transformou o primeiro lance num mero exercício
desportivo, com excepção para a primeira parte de cascata fácil e a saída do tecto,
para a coluna e reunião. No entanto, em abono da verdade, não existiam outras
opções de protecção (pelo menos no inverno, quando as pequenas fissuras de
saída se encontram totalmente tapadas de gelo e, inutilizáveis). Por outro
lado, nasceu uma via que pode ser escalada em artificial, para ganhar a bela cascata
aérea e espectacular. Finalmente, no campo do dry-tooling ali fica um desafio
para o futuro, com óbvias dificuldades técnicas e físicas.
O rapel de celebração. De volta à base.
O rapel de celebração. De volta à base.
Para mim, abrir esta via representou o culminar de um sonho.
Não um sonho impetuoso e fanático, mas sim um desejo em água morna, que ia e
vinha ao longo de todos estes anos, por vezes com um pouco mais de intensidade,
outras vezes, sob a forma de um breve pensamento, um ténue recordar. Este
sonho, este desejo, este pensamento, acompanhou uma parte importante da
historia da escalada invernal na Serra da Estrela e, acompanhou também os
companheiros e amigos aos quais me encordei durante este longo período.
Uma velha ideia concretizada. Uma ideia com mais de 15 anos.
Para mim… uma escalada com alma.
Uma ascensão com memória.
Paulo Roxo
Contentes por um dos melhores fins de semana de escalada em gelo, na Serra da Estrela.
Os Topos: