SOLO
Há pouco tempo, ao vasculhar os meus canhandros - aquele caos de memórias de aventuras esquecidas - , descobri umas pequenas folhas amassadas, já meio descoloridas, mas de aspecto familiar. Tratava-se do único testemunho escrito que relata, de uma forma demasiado sucinta, aquela que considero como uma das minhas mais inspiradas escaladas: a ascensão em solo integral e à vista do corredor Arlaud-Soriac (700m, MD+), no maciço do mítico Vignemale, nos Pirinéus.
Não foi num passado demasiado distante, mas também não foi
ontem!
As fotos que acompanham o texto são cópias de slides, obtidos em 2001.
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No Inverno de 2001, vivia naquele limbo existencial, entre
as montanhas e uma Fiat Ducato - uma velharia com uns 20 anos - transformada em
casa ambulante, que me servira de abrigo durante 18 meses de deambulações
alpinas.
No mês de Abril, após uma aventura invernal no Vignemale, o meu companheiro, Nuno Soares (Larau), teve de retornar aos seus compromissos profissionais. No
entanto, durante as horas da caminhada de regresso, enquanto apreciava as
montanhas em redor, uma ideia germinava na minha cabeça.
O Larau abandonou o estacionamento e eu fiquei para ali,
sozinho, a matutar…
“E se…?”
Por via das dúvidas, não fosse realmente decidir-me a
concretizar o plano, preparei o equipamento. Comi qualquer coisa e, devia
pensar em dormir um bocado, afinal, tinha acabado de descer do refúgio nem
fazia uma hora.
Deitei-me e… não dormi!
Às 2h30 da madrugada, abandonei a carrinha no estacionamento
de Pont d`Espagne e, mochila ligeira, mente focada, pus-me a caminho, refazendo
o trilho nevado pelo qual havia passado poucas horas antes.
Tardei pouco mais de duas horas a chegar ao refúgio. Eram as
4h45 e, reinava o silêncio. O refúgio estava ocupado por mais alpinistas que
dormiam nas camaratas. Muito em breve iriam começar a emergir dos casulos
quentinhos dos sacos-cama e cobertores, para a dor momentânea da madrugada fria
e negra. A maioria iria escalar o famoso Corredor de Gaube. Outros, iriam para
outras vias, quiçá, para a “minha” via, a Arlaud-Soriac e, isso, constituía um
problema para mim. Não queria ter ninguém por cima a lançar-me detritos de gelo
mas, sobretudo, não queria que soubessem do meu plano, antes de o concretizar.
Não queria que me fizessem perguntas sobre o que tencionava tentar. Planeava
uma escalada em solo e, não me apetecia ser influenciado negativamente por
nada, por opiniões, nem sequer por informações acerca do estado da via.
O Vignemale não é uma estranha para mim. Em 1992, conheci-a
da forma mais profunda e visceral que alguém pode conhecer uma montanha. Na
verdade, da forma mais dolorosa. Uma queda de 15 metros na última cascata do
Corredor de Gaube, resultou nas duas pernas partidas e num longo processo de
recuperação física. A reabilitação mental foi a mais penosa. No entanto, para
me ajudar a superar os traumas, possuía a melhor arma secreta que alguém poderá
ter jamais: a juventude! Com 22 anos, qualquer muralha, por mais alta que possa
parecer, rapidamente se transforma numa pequena barreira, ultrapassável com
algum treino. Porém, aquele acidente delapidou para sempre a certeza da imortalidade,
tão comum, quando se é novo. Cresci!
Depois do acidente, retornei algumas vezes ao Vignemale. A minha primeira ascensão (efectiva) ao Corredor de Gaube, resultou num processo “espanta-fantasmas”. Vários medos ressurgiram, durante a escalada daquela fatídica cascata final, vertical e com 40 metros. As assombrações do passado reapareciam a cada estocada de piolet. No entanto, o passar do tempo, a experiência acumulada e a familiaridade ao terreno de alta montanha, minorou de forma significativa as mazelas psicológicas do acidente, deixando algumas físicas, com as quais ainda convivo diariamente.
Voltei ao Vignemale para tentar outras vias e escalei o
Corredor de Gaube mais três vezes, com diferentes companheiros, incluindo
clientes. Os fantasmas do passado tinham-se evaporado definitivamente.
No interior da sala do refúgio, a luz tépida da chama do pequeno fogão amenizava a escuridão. Só e em silêncio aquecia um chá, antes de enfrentar de novo a fria madrugada.
Às 6h15, saí do refúgio. O fogão e o pouco equipamento
supérfluo tinham ficado dentro de um dos cacifos. Também a mochila
ficou para trás.
Os meus entusiasmos são muitas vezes alimentados por pequenos
detalhes. Detalhes aparentemente insignificantes que funcionam como catalisadores.
Uma ideia, uma peça de equipamento por estrear, uma determinada morfologia
rochosa, um pensamento. Naquela noite, o pormenor que mantinha acesa a chama
que impulsionava o espírito era uma frase que tinha lido num artigo sobre
alpinismo, uma espécie de mantra, que o meu subconsciente repetia uma e outra
vez: “Se tu pensas que PODES necessitar de alguma peça de equipamento, não a
leves! Leva aquilo que EFECTIVAMENTE vais utilizar!”. Tinha decidido não levar
sequer mochila, ou seja, seguindo o mantra, seria uma escalada levada a cabo da
forma mais ligeira que me podia ocorrer… extremamente, radicalmente, ligeira!
Posteriormente, apontei a lista de equipamento na pequena nota amassada:
“- Arnés
- 1 parafuso de gelo
- ½ litro de água numa garrafa preparada para suspensão ao
arnês
- Frontal
- (Obviamente!) Piolets e Crampons (mono-ponta)”
Escrevinhei ainda:
“Ah!... Como não transportei mochila levei também uma
pequena bolsa de cintura com:
- Algumas bolachas (Maria)
- Uma barra de Isostar (que não comi – não suporto!)
- Algumas pastilhas Isostar energéticas (isso sim, vale a
pena!)
- E… caramelos (a minha fraqueza em guloseimas)”
A neve recém-gelada quebrava debaixo dos crampons a cada
passada, produzindo um ruído característico, o “crunch-crunch” ritmado e
monótono, reconhecido por qualquer alpinista. Um céu impossivelmente estrelado
iluminava a noite tranquila, congelada, como a própria temperatura.
Curiosamente, não me recordo de qualquer pensamento
negativo. Nada! Caminhava em direcção a uma goullote de gelo com quase 700
metros que nunca tinha escalado, da qual não possuía qualquer informação e para
a qual não levava sequer corda, ou qualquer equipamento de relevância, por
forma a prevenir algum… incidente… no entanto, estranhamente, interiormente,
sentia-me calmo, sereno, equilibrado. Todas a variáveis, equações, dúvidas ou
medos, tinham-se diluído no exacto momento em que a decisão fora tomada. Ainda
não o sabia, mas a decisão fora tomada ainda no estacionamento, logo a seguir
ao abraço de adeus ao Larau, talvez até horas antes, enquanto descíamos do
refúgio. O mesmo refúgio do qual partia agora, para cima, para a montanha. Todos
os vectores convergiam numa só direcção: a certeza que tudo iria correr de
feição.
Tardei pouco mais de uma hora em alcançar a base da
Arlaud-Soriac. A claridade do amanhecer revelava um céu glorioso, pálido ainda,
a caminho do azul intenso.
De piolets em punho observo o cavalo que pretendo domar. As condições da via parecem-me perfeitas. “Vamos a isso!” – digo em voz alta.
A primeira parte do corredor com 60 graus de inclinação foi
fácil e serviu como um aquecimento de motores. Pouco depois, surgiu a primeira
cascata de gelo. Escalei-a num ápice. Sentia-me seguro e confiante… invencível.
A cascata seguinte mostrou-me os dentes. Uma pequena prancha
de rocha vertical, quebrava a continuidade do gelo. Um ressalto inesperado.
Observação, análise, decisão! Ainda no troço de gelo anterior, estiro o braço
esquerdo o mais que posso, tentando que o piolet alcançasse o troço de gelo
seguinte, evitando o passo impossível de rocha. Uma estocada… nada! Segunda
estocada… nada! Terceira estocada… o piolet parece aguentar. “Parece aguentar”
não é suficiente. O piolet TEM de aguentar! Quarta estocada… Quinta. O piolet
vibra. Ok! O passo toma uma direcção ligeiramente em diagonal para a esquerda.
Confiando que o piolet está solidamente cravado no gelo, coloco o piolet
direito no ombro, levo a mão livre ao piolet cravado (durante alguns segundos
agarro-me com as duas mãos à mesma ferramenta, a única que me agarra à cascata
e… à vida), deixo balançar um pouco o corpo ao mesmo tempo que engancho a ponta
do crampon esquerdo numa exígua saliência rochosa. Ergo o pé direito e desfiro
um só golpe certeiro de crampon, procurando o eixo de equilíbrio. Volto a
agarrar o piolet suspenso no ombro, desta vez com a mão esquerda. A troca de
mãos no mesmo piolet permite-me tentar cravar ainda mais à esquerda, onde o
gelo parece mais “saudável”. De novo, procedo ao ritual das estocadas até
atingir o resultado ideal. Após três golpes o piolet vibra. Ok! Desta vez tenho
de me erguer no crampon esquerdo que se aguenta precariamente na pequena
saliência de rocha. Com cuidado, procuro o novo ponto de equilíbrio, desencravo
o piolet direito, realizo um arco por cima do ombro e, num só golpe, cravo-o
mais acima. Yes! – grito. Passo resolvido. Rapidamente escalo os metros
seguintes com bom gelo. Naquele momento, soube que nunca iria poder destrepar
aquela passagem. Pouco importava. A opção não me passava sequer pelo cérebro.
Um novo muro vertical apresentava o próximo desafio. Felizmente, o gelo encontrava-se em perfeitas condições e com quantidade suficiente para progredir sem sobressaltos. Acerca desse troço escrevi uma nota: “Gelo vertical (90 ͦ) em cerca de 6 metros, com ´ancragens` a ´explorar`.”
Alguns metros depois, a cascata reduziu um pouco a sua
inclinação ao mesmo tempo que apertava a chaminé. Se pudesse soltar as mãos e
abrir os braços conseguiria tocar em ambas paredes da garganta. Encontrava-me,
literalmente, nas entranhas da montanha. Agora escalava com mais soltura, o
terreno assim o permitia.
No final do corredor mais estreito, a uns 400 metros da
base, deparei-me com um obstáculo. Um golpe psicológico! “E agora?” Analiso a
situação. À minha esquerda erguia-se uma parede de rocha vertical, impossível
de ultrapassar (mesmo com corda). À minha direita, uma estreita “escorrência”
de gelo “trepava” até ao topo de um pequeno promontório que parecia terminar
também em rocha. Ali, ocorreu o único momento de dúvida da ascensão. “E agora?”
– repeti. Na verdade, não tinha alternativa senão optar pela “micro-goullote”
da direita. Cravei o piolet. O gelo era de qualidade, escasso, mas de
qualidade. Como não havia hipótese de colocar os pés lado a lado, tive de ir
subindo um pé por cima do outro, cravando os crampons com bastante cuidado. Um
escorregão estava fora de questão. Um pensamento ocupava-me o cérebro durante
aqueles passos de escalada: “E se isto terminar efectivamente em rocha
vertical?”
Atingi o topo do promontório e… à minha direita ali estavam, os duzentos metros restantes do corredor, não em gelo mas, em neve dura, de muito mais fácil progressão. Para alcançar o Nirvana tinha apenas que destrepar para o lado oposto da pequena aresta onde me empoleirava, evitando assim a parede de rocha e, alcançando o corredor. À medida que subia, fabricando uma escadaria de degraus pouco profundos na neve transformada, um misto de sensações debatia-se no meu cérebro. Misto de alívio e regozijo. Felicidade pura? Talvez isso.
O ponto focal, bem apertado na concentração máxima, podia agora alargar o seu horizonte. A "Zona",
aquele estado cerebral difícil de alcançar e que nos permite realizar coisas
perigosas ou difíceis, sem que o ritmo cardíaco se altere, desaparecia, como
que diluído por um qualquer mecanismo misterioso. Podia agora ceder ao luxo de
me distrair com outros pormenores, outros pensamentos.
O vento frio recebeu-me na aresta, entre o Petit Vignemale e a Punta Chausenque. Detrás, encontrava-se o cume do monarca, o Vignemale com 3298m. Observei a vertente sul do maciço, mais suave e amistosa, iluminada por um Sol intenso de alta montanha. O relógio marcava as 9h30. A minha aventura a solo tinha demorado duas horas. Não escondia a sensação de orgulho. Celebrei sozinho aquela realização pessoal.
Sentei-me e olhei para trás. O vale profundo, branco de neve,
estendia-se até aos bosques verdejantes, muitos metros mais abaixo. O refúgio Des
Oulettes surgia na paisagem como um pequeno ponto colorido. Era para ali que
devia descer. Pensava que iria encontrar outros alpinistas. Desta vez já podiam
perguntar-me o que tinha escalado. Aquele pensamento suscitou um certo
sentimento precoce de vaidade.
Descendo pela via normal, desta vez em ritmo de passeio,
parei a poucos metros do refúgio. Voltei a cabeça para encarar a imponente face
norte do Vignemale, com os seus emblemáticos corredores de gelo. Um penacho de
neve em pó surgiu da aresta de cume, projectado pelo vento. A montanha
apresentava-se bela e impassível, indiferente a todos os sucessos, fracassos ou
tragédias, acontecidos durante a breve história das “conquistas” humanas.
Afinal, correspondiam apenas a meras fracções de segundo da sua vida geológica
milenar.
A minha escalada era alheia à montanha…
Assim como tem de ser…
Paulo Roxo