RAMAZOTTI, UMA AVENTURA ESQUECIDA
João Simões em plena escalada dos primeiros lances da via "Alampa"
Esta é a história resumida de uma via obscura numa das mais
bonitas falésias de calcário da Serra da Arrábida.
Em 1988, eu e o João Simões começámos a “namorar” a
impressionante parede de extra-prumos góticos que se ergue por cima da famosa
gruta dos Morcegos, no Fojo da Arrábida. Na altura achámos ser ainda muita
areia para a nossa camioneta e resolvemos seguir um regime apertado de
escaladas preparatórias. Repetimos algumas vias do Espinhaço, no Cabo da Roca e
abrimos uma nova via no Penedo da Noiva, a “Dança da Chuva”. Esta última,
devido ao seu elevado grau de compromisso e aventura, encheu-nos de confiança
para tentar o projeto da grande parede da Arrábida.
Paulo Roxo a utilizar os velhos pitons do primeiro lance da "Alampa", anos antes de ter sido retroequipada com plaquetes por outro escalador
João Simões a escalar o segundo lance da "Alampa"
O início do mês de maio de 1989 viu-nos suspensos nos
primeiros pitons ferrugentos da via “Alampa”, um itinerário extraordinário cuja
existência não conhecíamos e sobre o qual, apenas anos depois, viemos a saber
que tinha sido terminado em 1979 por Paulo Alves, Mário Cardoso e Carlos
Teixeira. A “Alampa” ultrapassa os primeiros tetos da grande abóboda até um
pequeno jardim que alcunhámos de “Éden” e depois desvia-se para a esquerda, saíndo
por um evidente diedro vertical, muito para a esquerda dos últimos tetos que
caracterizam o final da falésia e que constituíam o objetivo irresistível da
nossa investida.
Um dos monstruosos rapeis das grandes abobodas, durante as retiradas da "Ramazotti". Saíamos sempre pela travessia do "Corrimão do Fojo"
Uma pausa para hidratar
Durante esse ano de 1989, investimos alguns fins de semana a
repetir (sempre de baixo, nunca com reconhecimento desde o cimo) a primeira
parte da via “Alampa” e a escalar a nossa própria via, que se ergue a partir do
meio da parede. Durante essas aventuras sofremos vários percalços, como uma
enorme queda do João no terceiro lance da “Alampa”, devido a quebra de uma
velha cordeleta, atada a uma sólida (!) cunha de madeira. Também “conseguimos”
cometer a proeza de partir um spit (mal colocado) numa das reuniões da nossa
nova via, um incidente que nos ofereceu um bom susto. Previsivelmente, foi o
grande teto final que proporcionou as maiores dificuldades. Num dos ataques,
entre a escalada desde o nível do mar e a abertura quase total do grande teto,
consumimos 22 horas seguidas de trabalho, para terminar esgotados, com os rins
desfeitos e desistir de terminar a via naquele dia. Finalmente, a 17 de
fevereiro de 1990, após 12 horas de escalada, o João Simões e eu, pudemos dar o
grande abraço de vitória no cimo da mais fantástica falésia da Arrábida,
inaugurando assim a via “Ramazotti” e vencendo o grande teto que fervilhava a
nossa imaginação.
Riso nervoso do João Simões, após a sua grande queda no vazio. Subida obrigatória com jumares
João Simões desaparece por detrás das formações caóticas das grandes abobodas
Um descanso a meio da abertura. Estilo "Rebuffat"
Paulo Roxo a ultrapassar o Grande Teto horizontal, o penúltimo lance da "Ramazotti" e o mais trabalhoso
A reunião que antecede o Grande Teto, que chamámos "Hotel Belavista". Passámos aqui algumas noites, suspensos em hamacas de rede
João Simões a trabalhar no Grande Teto
Vitória!
Algumas semanas mais tarde, voltámos a repetir o itinerário,
desta feita com o equipamento todo ajustadinho e sem a parafernália necessária
para as aberturas, reduzindo o horário da ascensão total para as oito horas.
Após a escalada, o merecido descanso
Algumas curiosidades da aventura:
- Descobrimos uma pequena garrafinha, suspensa num arbusto da plataforma “Éden” (quarta reunião da via “Alampa”), com uma mensagem no seu interior que ditava o seguinte:
“Por aqui passaram os alpinistas do C.N.M. (Clube Nacional
de Montanhismo de Lisboa) com os tomates na mão e o coração… (ilegível)… Noite
de luar, nuvens cheias, a feliz cordada abaixo mencionada, Rui Neves, João
Cardoso”.
A mensagem datava de 8 de dezembro de 1981, provavelmente a
última repetição daquela escalada antes da nossa (1989).
- Durante a abertura, realizámos um bivaque muito incómodo
na plataforma “Éden” e dormimos algumas noites suspensos em hamacas de rede, na
reunião que precede o grande teto. Batizámos essa reunião de “Hotel Belavista”.
- Que eu saiba, até à data de hoje, a combinação “Alampa +
Ramazotti” foi repetida quatro vezes. Em 1995 fiz a escalada com João
Garcia. Em 1996 foi repetida por José Carlos e João Schiapa. Em 1996 ou 1997 foi escalada por Ricardo Nogueira e Miguel Loureiro. No dia 1 de
dezembro de 2003, o Miguel Grillo e eu formámos cordada para a última escalada
conhecida.
Paulo Roxo
Miguel Grillo na reunião que antecede o Grande Teto, durante a repetição de 2003