quarta-feira, dezembro 10, 2025

Shaktis Ausentes

SHAKTIS AUSENTES

Breve biografia de uma via esquecida

 

Há 30 anos a intimidante face nordeste do Cântaro Magro permanecia imaculada e sem vias. Foi quando, realmente, comecei a estudar a sua morfologia com a ideia de inaugurar ali uma linha desafiante. Inevitavelmente, a vontade transformou-se em obsessão e não descansei até encontrar um companheiro para formar cordada. O João (Artista) Silva aceitou o desafio e, durante três dias, desconectámos da vida mundana e embrenhámo-nos na aventura vertical. No dia 1 de maio de 1995 terminámos a via, conseguindo simultaneamente a primeira ascensão da parede nordeste do Cântaro Magro.

Cerca de 50% da via foi aberta em técnica de escalada artificial, sendo o seu primeiro lance constituído por um forte extra-prumo. Toda a parede nordeste respira um ambiente sombrio e gótico e, essas, são precisamente as características que a tornam tão apelativa.


 Croquis original.


Quando pensámos no nome a dar à nova via inventámos uma lógica muito particular. “Shaktis”, é uma palavra em sânscrito que significa poder ou força. Representa também a energia positiva feminina, divina para o hinduísmo. A Ana (naquele tempo, namorada do João) estava a dar os seus primeiros passos no Yoga, daí a relação com o sânscrito. Por outro lado, dado que a palavra possui uma forte conexão com o feminino e, como não tivemos nenhuma companheira como cordada na escalada, ficou o nome “Shaktis Ausentes” que, interpretando à nossa maneira (de uma forma criativa e algo retorcida) traduziu-se em algo como: “Companheiras ausentes”.

Após a abertura, durante alguns anos, a Shaktis Ausentes foi sendo visitada por alguns escaladores aventureiros.


Eu, durante uma repetição em 2010. Apesar dos raros encadeamentos em escalada livre, a "Shaktis Ausentes" continua a ser uma via típica de escalada artificial.


A primeira repetição integral da via foi realizada por Miguel Grillo e Nuno Soares (Larau) em julho de 1996.

Dez anos depois, impelido por um ataque de inspiração, Miguel Grillo voltou à Shaktis e conseguiu a primeira ascensão em solitário, no dia 27 de maio de 2006.


"Selfie" (antiga "auto-foto") do Miguel Grillo na primavera de 2006, em plena faena solitária. 


Bela fissura do terceiro lance, durante a ascensão em solitário do Miguel Grillo.


Nos meses (e anos) seguintes à abertura da Shaktis Ausentes, foram ali escaladas mais cinco vias, todas tecnicamente difíceis e com relativo compromisso. Contudo, durante uma época, foi a Shaktis que atraiu mais a fauna vertical. Entre 2008 e 2010, a via ganhou um surpreendente interesse e foi assediada por vários escaladores. Os mais fortes, tentavam ultrapassar em escalada livre o primeiro lance, tradicionalmente realizado em artificial. Conseguiram o seu encadeamento Nuno Pinheiro, Carlos Simes (Cuca), Leopoldo Faria (Leo) e Francisco Ataíde. No entanto, três ou quatro passos do segundo lance impediam uma ascensão integral em livre.

Apenas como nota de curiosidade, em outubro de 2009, o famoso escalador belga, Nicolas Favresse (numa fugaz passagem pela Serra da Estrela), em cordada com Isabel Boavida, realizou uma rápida repetição da Shaktis Ausentes, sem conseguirem o "tal" encadeamento total.

Finalmente, em agosto de 2010, Bruno Gaspar realizou a sonhada primeira ascensão integral em livre. No segundo lance, um dos passos ultra-técnicos que faltava ser escalado em livre, foi vencido graças a um impressionante bloqueio de calcanhar, acima da cabeça, na mesma pequena "reglete" onde se encontravam as pontas dos dedos da mão direita, passo seguido de um "esticanço" hercúleo para alcançar a micro-presa seguinte, garantindo assim a passagem.  


Bruno Gaspar, durante uma das suas tentativas de escalar em livre o espectacular primeiro lance.


Creio que, na última década, a Shaktis Ausentes nunca foi escalada e, tal como a maioria das grandes clássicas da Serra da Estrela, voltou a cair no relativo esquecimento. De certa forma, a escalada na Serra da Estrela sempre esteve sujeita a uma certa sazonalidade histórica, muito parecida com as modas. Por vezes, surge uma “onda”, e os escaladores lembram-se que o melhor granito do país (em minha opinião) existe, para depois voltar a desaparecer da memória colectiva, durante mais alguns anos. Nunca consegui entender (muito menos explicar) o fenómeno.


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