CHO-OYU (8201m) - 2006
14 ANOS DEPOIS...
A Daniela Teixeira, no cume do Cho-Oyu, às 8h00 da manhã do dia 7 de Outubro de 2006.
Texto
publicado a 10 de Outubro de 2006
No passado Sábado 7 de Outubro a Daniela Teixeira conseguiu alcançar o cume do
Cho Oyu com 8201 metros de altitude realizando assim, o seu sonho de escalar
uma montanha com mais de 8000 metros.
Contudo, a tarefa não foi fácil.
Em primeiro lugar, a logística do Campo base esteve muito longe do razoável.
Tendas de péssima qualidade e cadeirinhas da “pré-primária” impediram uma
estância cómoda nos vários dias passados no Campo base. A alimentação também se
tornou num grande problema. Não variava muito das batatas e massa, ou massa com
batatas, enquanto as expedições vizinhas se deliciavam com variados menus.
O mau tempo que se abateu sobre a montanha durante vários dias encheu o Campo
base de neve transformando o cenário numa autentica paisagem invernal. Bonito
espectáculo para as fotografias mas, absolutamente impeditivo no que tocou a
ascensões alpinas.
Várias foram as vezes necessárias para escavar a neve acumulada sobre as
tendas.
Foi durante esses dias de intensas nevadas que a Daniela se sentiu mais
desmotivada e deprimida.
As más condições do seu acampamento e o mau tempo perigaram a sua ascensão,
inclusive a própria aclimatação.
Com o retorno do bom tempo muitas equipas iniciam a subida.
A Daniela decide tentar a ascensão ao campo 1 (6400 mts) e ao campo 2 (7200
mts), de forma a realizar um mínimo de aclimatação.
Para ela era o “agora ou nunca”, confessando não sentir possuir energia (e
tempo) para realizar uma segunda tentativa.
No dia 27 de Setembro, sem companheiro de cordada, subiu ao campo 1.
Determinada a não utilizar o apoio de um Sherpa carregador (ao contrário da
maioria das expedições que contratam Sherpas até ao campo 1) carregou a sua
“mochilinha” de 20 quilos, chegando ao local de acampamento bastante cansada.
Decidiu então repousar um dia nesse local.
No dia seguinte, igualmente só (sem companheiro de cordada) cruzou a barreira
de seracs (considerada como um dos “crux´s” da via) e alcançou o campo 2,
ultrapassando os 7100 metros, o seu limite pessoal de altitude (Korjeneveskaya
7105 mts, em 2004). Aí dormiu para, no dia seguinte, retornar ao campo 1 e,
posteriormente ao campo base.
Desta forma e rapidamente, a Daniela resolveu o seu processo de aclimatação.
Entretanto os dois Gregos com quem partilhava o campo base decidem desistir da
montanha e voltar para Katmandu. Após desagradável discussão e partindo do
principio simplista (e pouco cavalheiresca!) de que a maioria vence, os dois
Gregos retiram e com eles foi também toda a logística, as tendas, o cozinheiro
e o ajudante.
Por sorte a Daniela recebe o convite da simpática equipa Filipina para que se
una a eles. A partir desse momento decide abandonar a sua tentativa em
solitário juntando-se aos Filipinos na sua ascensão.
Os Filipinos possuem carregadores e utilizam oxigénio artificial. A Daniela não
recorre a nenhum destes apoios.
Um dos muitos dias de tempestade no campo base do Cho-Oyu.
No dia 4 de Outubro reiniciam a ascensão.
No dia 5 encontram-se no campo 2. A Daniela reporta: “Ontem subimos ao campo 1
com muito mau tempo. Hoje atingi o campo 2. Estou exausta. Não sei como vou
conseguir fazer cume!”
O Vitor Baía, com o seu valioso apoio desde Portugal, informa através de
mensagens para o telefone satélite que a zona do Cho Oyu vai estar sujeita a
ventos fortes da ordem dos 40 a 50 km e, “talvez mais”, acrescentando: “não
subir no dia 7!”
A Daniela viu-se confrontada com uma decisão crucial. Subir ou... descer
abandonando a montanha.
Apesar das adversidades e, sentindo ser a sua ultima oportunidade, decidiu por
fim realizar uma derradeira tentativa.
Acompanhando os Filipinos (ou acompanhada pelos Filipinos) na madrugada do dia
7, iniciou a penosa ascensão desde os 7200 metros.
Após a banda rochosa que constitui a ultima barreira de dificuldades, o Cho Oyu
perde inclinação apresentando uma enorme extensão até ao cume, técnicamente
fácil mas, psicológicamente arrasadora. É nesta fase que muitas equipas
desistem. A elevada altitude (superior aos 8000 metros) e a grande distância a
percorrer minam a moral e energia dos alpinistas. Aqui, a força de vontade é
crucial jogando a cartada fundamental. Foi aqui que os Filipinos decidiram
desistir e voltar para baixo (nota: imprecisão corrigida pela Daniela no texto seguinte).
Após dificeis momentos de dúvida e, a partir dessa altura sem companhia, a
Daniela resolveu continuar.
Pensando ainda faltar duas horas para alcançar o cume sente que se encontra
muito perto do seu limite de resistência.
A tenda de campo base da Daniela, que foi várias vezes parcialmente soterrada pela neve, durante tempestades.
Vagarosamente, passo a passo, respirando profundamente, tentando inspirar o
máximo do rarefeito ar, sobe um pouco mais e... ainda mais um pouco. Passam
trinta minutos até que a inclinação positiva se transforma em negativa.
Encontra-se no cume do Cho Oyu. Ás oito horas da manhâ de Portugal chegara ao
cimo da Deusa Turquesa e, ao culminar do seu sonho.
Após dois anos de treino intenso e de uma tentativa fracassada (Shisha Pangma
em 2005) a Daniela subiu o seu “8000” tornando-se, por acrescento, na primeira
Portuguesa a escalar uma montanha com mais de 8000 metros.
Esta foi, sem dúvida, uma vitória pessoal bem merecida.
Para os que, de longe, acompanhámos assiduamente a sua aventura esta foi uma
ascensão inspiradora. Uma história de determinação que decerto teremos a
oportunidade de ouvir em primeira mão pela sua protagonista, quando pisar o
solo Lusitâno.
Quanto à escalada em si, passo a citar uma mensagem publicada no site da
expedição, que permite, em poucas palavras, explicar o destino desta
realização:
“Momento histórico! Muitos parabéns!”
Nota: este foi o texto escrito antes da
Daniela voltar ao contacto com o “mundo exterior”. Por isso saiu com algumas
imprecisões. No dia 20 de Outubro (texto seguinte), a Daniela descreveu o que aconteceu
no dia de cume, corrigindo as gafes anteriores.
Paulo Roxo
Texto
publicado a 20 de Outubro de 2006
Dia
de cume, 7 de Outubro de 2006
Pela meia-noite e meia, quando meti a cabeça fora da tenda, já 6 luzinhas
tomavam a direcção do campo 3 enquanto a lua iluminava o caminho.
Os 2 rapazes filipinos estavam já também de saída.
A ideia do sherpa Lakpa, era dar a esta expedição oxigénio desde o campo 3.
Eu e as duas raparigas, acabamos por sair tardiamente, cerca das 2:30.
Preocupava-me já o atraso e o vento gélido que soprava não era um bom
pressagio. Acelerei o passo e uma hora depois percebi que os dois rapazes
filipinos estavam demasiado lentos para fazer cume. Cerca de 15 min. depois, 3
italianos baixavam demovidos pelo frio e pelo vento. Diziam que não se queriam
meter em ventos de 70km/h que se faziam sentir acima do campo 3. 70km/h era
exagerado, pois as previsões que tinha eram de cerca de 40 para o cume, pelo
que decidi continuar. Perguntei-lhes por Julia, uma alpinista do grupo,
disseram-me que teria decidido continuar com outros 2 italianos.
Campo 1.
Cheguei ao campo 3 cerca de três horas depois e decidi parar meia-hora para
recupar, comer e beber algo. Aí, dois Espanhóis exclamaram: "Hola
Portuguesa, vienes del campo 2?"
Respondi afirmativamente. Disse-lhes que queria descansar um pouco, mas ao ver
que se estavam a preparar para subir resolvi aproveitar a "boleia".
Não queria continuar sozinha.
O dia começou a clarear e acabei por sair do campo 3 com Rafael, que se viria a
tornar em "São Rafael" pelo que se passou a seguir. Subíamos ao mesmo
ritmo. Após uma vertente, chegamos a uma banda de rocha (a Yellow Band) que é
necessário transpor.
Está tudo equipado com cordas fixas. No entanto, àquela altitude, cerca de 15
ou 20 metros de uma fácil escalada em rocha tornam-se num verdadeiro desafio,
especialmente porque, para além do arfar, é necessário mexer em material, o
Jumar (ascensor), com umas enormes e desajeitadas luvas de penas sem dedos e,
no meu caso, com um bastão em punho. Vagarosa e desajeitadamente, lá transponho
este obstáculo. No final, há que remover o Jumar, passando-o para a corda
seguinte. Neste processo, sou obrigada a tirar uma luva, ficando só com uma
fina luva interior. De repente, deixo cair a luva. Gelasse-me o coração, pois
sei que sem a luva não posso continuar. Se o fizesse, iria congelar os dedos.
Olho para baixo e vejo Rafael a apanhar a minha luva. Espero um pouco até que
este me alcança, com a luva entre os dentes. Agradeço emocionada, sem ele nunca
poderia continuar.
Depois deste incidente, apesar do frio intenso, a minha motivação parece ter-se
renovado. À medida que subo, as pendentes parecem multiplicar-se. Avanço e distancio-me
de Rafael e dou por mim novamente sozinha, a pensar se será ou não possível
alcançar o cume desta montanha, com o vento forte que se faz sentir. Quantos
irão à minha frente?
Tenho a certeza que pelo menos 3 italianos, que saíram bastante antes, já que
não passaram por mim a descer. Isso dá-me forças para continuar. Um pouco mais
à frente, vejo mais duas pessoas, que, como eu se movimentam vagarosamente.
Um aspecto da ascensão numa secção de cordas fixas.
De repente, vejo o fim das cordas fixas e o sol começa a iluminar-me. Penso que
me irá aquecer, mas engano-me, pois o fim das cordas fixas significa a
diminuição de pendente e logo uma maior exposição ao vento.
Paro para beber um pouco de sumo e tentar engolir alguma coisa. O sumo está já
bastante frio e quase intragável, apesar de muito protegido. De comer, apenas
consigo espremer um gel meio energético, tudo o resto congelou. Por esta
altura, perdi já a sensibilidade nas pontas dos dedos de uma mão, mas não me
preocupo muito porque percebo que as mexo bastante bem.
Quero acreditar que no fim da vertente vai surgir o que dizem ser o longo
planalto do cume, mas quanto mais subo, mais a montanha insiste em esconder-me
o dito planalto. Não faço ideia das horas, não posso retirar a luva para ver o
relógio, o intenso vento tenta demover-me, mas penso "já que cheguei até
aqui, continuo um pouco mais! Pelo menos até que os italianos que estão à
frente se cruzem comigo ao descer”.
Nisto alcanço outro alpinista espanhol e pouco depois entramos os 2 no tal
planalto do cume. As nuvens à minha frente movem-se depressa e a visibilidade
não é perfeita. Os 40km/h que o Vitor Baía previa, eram ali cerca de 50 ou 60,
duros de enfrentar. Penso que já deve faltar pouco, quando vejo um vulto a
caminhar em minha direcção. Quando nos cruzamos, reconheço um dos espanhóis e
pergunto "quanto tempo para o cume?" ao que me responde "2 a 3
horas". Surpreendo-me com a resposta e fico ali parada a pensar que, com aquele
vento não vou conseguir. Faço um esforço para ver as horas e reparo que são
cerca das 12:30 (hora nepalesa). Penso que se demorar 2 a 3 horas poderei ter
sérios problemas. Pegadas apagadas pelo vento naquele imenso planalto com fraca
visibilidade, podem significar perder-me por ali. Fico ali parada, durante o
que penso serem 1 ou 2 minutos, a pensar o quão larga é a distância e tão curta
a altitude. Desisto, volto as costas e penso que não vale a pena arriscar.
Minutos depois, cruzo-me com um espanhol que vinha a subir e que me diz "Não,
não! Daqui é no máximo uma hora. Vamos! Tenho um amigo mais à frente!".
Isso dá-me novo animo e decido arriscar. O tipo parecia confiante. Novamente me
ponho a caminho e, passado pouco tempo surge, vindo do cimo, o tal amigo feliz,
dizendo "são mais 10 min!". Esses 10 minutos pareceram-me 5 e, de
repente, estava ali, um cume que não parecia cume, de tal forma se encontra dissipado
no meio de um planalto com nuvens que se movimentam rápido e com a neve que um
intenso vento levanta.
Eram as 13:00. Sentados no chão, estavam Simone e Julia (italianos).
Felicitamo-nos. Olho em volta e avisto umas velhas bandeirinhas de oração. Atrás
de mim, jaz no caminho uma garrafa de oxigénio laranja e um cantil azul. Há
algum lixo no cume.
O Everest que era suposto ver, estava tapado pelas nuvens.
Faço de imediato uso do meu telefone satélite. Primeiro tenho a sorte de falar
com o meu pai: "Pai, estou no cume! Consegui!" grito eufórica. Depois
envio uma mensagem ao Pedro Cuiça para colocar no site da expedição. De
seguida, peço aos italianos que me filmem um pouco, enquanto balbucio algumas
coisas que me vêm à cabeça. Filmo um pouco o envolvente e quando peço que me
tirem umas fotos, a minha máquina recusa-se a funcionar, acusando falta de
bateria. Não posso acreditar. Nisto chega o espanhol que estava mesmo atrás de
mim e peço-lhe para tirar umas fotos com a sua câmara, "Claro!" responde.
Pouco depois vejo Rafael. Os dois espanhóis conhecem-se. Peço também que me
tire umas fotos, ao que este acede. Pouco depois inspeciono o meu cantil. Tal
como temia, descubro meio litro de líquido congelado. Até a comida que trazia
junto ao corpo congelou! Resta-me voltar para baixo rapidamente e fugir ao
intenso mau tempo. Penso apenas que o Vítor Baía tinha razão, não era dia de
fazer cume... apesar de já estar feito!
O meu primeiro 8000... em tão duras condições!
A Daniela, de volta ao campo base, depois de alcançar o cume do Cho-Oyu.
Não duvido que baixarei bem e depressa ao campo 2, pois sinto uma enorme
energia interior e uma intensa satisfação. Chego a esquecer que apenas ingeri
meio litro de sumo e um pacotinho de gel, surpreendo-me como me sinto tão bem.
Vejo os restantes a descer devagar e extenuados, eu estranhamente, pareço agora
ligada à corrente eléctrica!"
Rapidamente me ponho no campo 2 e, na ultima vertente, cruzo-me com 2
filipinos. Como os vejo exaustos, percebo que algo correu mal.
No campo 2, Noell (uma das filipinas) recebe-me de braços abertos e felicita-me.
Estranhamente, o efusivo Lakpa mal põe a cabeça fora da tenda. Com Pasang
passa-se mesmo. Dizem-me pouco depois que Regie, o líder da expedição, ficou
com cegueira das neves e os 2 sherpas tiveram de o descer amarrado a cordas,
pelo que ambos estavam extenuados.
O ambiente estava pesado.
Como o cansaço foi contagiante nessa noite, apenas eu e Noell cozinhamos umas
massas para o jantar, mas já não houve paciência para fundir gelo para fazer
água. Assim, fiquei-me com pouco mais de meio litro nesse dia. A consequência
foi uma enorme dor de cabeça nocturna! Karina demorou uma eternidade para
descer a ultima vertente, sentando-se de 5 em 5 passos. O que se desce em cerca
de 15 ou 20 minutos, deve ter-lhe custado umas 2h.
Pela noite, ainda tive o enorme prazer de falar com os meus pais e com Ivan Vallejo
que, do outro lado do telefone, estava tão contente com a noticia, que parecia
ter sido ele a fazer cume.
Daniela Teixeira