CHO-OYU, 15 anos depois
Texto publicado a 20 de Outubro de 2006
Dia 7 de Outubro de 2006, 13h00. A Daniela é a primeira portuguesa no cume de um 8000.
Pela meia-noite e meia, quando meti a cabeça fora da tenda, já 6 luzinhas tomavam a direcção do campo 3 enquanto a lua iluminava o caminho.
Os 2 rapazes filipinos estavam já também de saída.
A ideia do sherpa Lakpa, era dar a esta expedição oxigénio desde o campo 3.
Eu e as duas raparigas, acabamos por sair tardiamente, cerca das 2:30.
Preocupava-me já o atraso e o vento gélido que soprava não era um bom
pressagio. Acelerei o passo e uma hora depois percebi que os dois rapazes
filipinos estavam demasiado lentos para fazer cume. Cerca de 15 min. depois, 3
italianos baixavam demovidos pelo frio e pelo vento. Diziam que não se queriam
meter em ventos de 70km/h que se faziam sentir acima do campo 3. 70km/h era
exagerado, pois as previsões que tinha eram de cerca de 40 para o cume, pelo
que decidi continuar. Perguntei-lhes por Julia, uma alpinista do grupo,
disseram-me que teria decidido continuar com outros 2 italianos.
Cheguei ao campo 3 cerca de três horas depois e decidi parar meia-hora para
recupar, comer e beber algo. Aí, dois Espanhóis exclamaram: "Hola
Portuguesa, vienes del campo 2?"
Respondi afirmativamente. Disse-lhes que queria descansar um pouco, mas ao ver
que se estavam a preparar para subir resolvi aproveitar a "boleia".
Não queria continuar sozinha.
O dia começou a clarear e acabei por sair do campo 3 com Rafael, que se viria a
tornar em "São Rafael" pelo que se passou a seguir. Subíamos ao mesmo
ritmo. Após uma vertente, chegamos a uma banda de rocha (a Yellow Band) que é
necessário transpor.
Está tudo equipado com cordas fixas. No entanto, àquela altitude, cerca de 15 ou 20 metros de uma fácil escalada em rocha tornam-se num verdadeiro desafio, especialmente porque, para além do arfar, é necessário mexer em material, o Jumar (ascensor), com umas enormes e desajeitadas luvas de penas sem dedos e, no meu caso, com um bastão em punho. Vagarosa e desajeitadamente, lá transponho este obstáculo. No final, há que remover o Jumar, passando-o para a corda seguinte. Neste processo, sou obrigada a tirar uma luva, ficando só com uma fina luva interior. De repente, deixo cair a luva. Gelasse-me o coração, pois sei que sem a luva não posso continuar. Se o fizesse, iria congelar os dedos. Olho para baixo e vejo Rafael a apanhar a minha luva. Espero um pouco até que este me alcança, com a luva entre os dentes. Agradeço emocionada, sem ele nunca poderia continuar.
Depois deste incidente, apesar do frio intenso, a minha motivação parece ter-se
renovado. À medida que subo, as pendentes parecem multiplicar-se. Avanço e
distancio-me de Rafael e dou por mim novamente sozinha, a pensar se será ou não
possível alcançar o cume desta montanha, com o vento forte que se faz sentir.
Quantos irão à minha frente?
Tenho a certeza que pelo menos 3 italianos, que saíram bastante antes, já que
não passaram por mim a descer. Isso dá-me forças para continuar. Um pouco mais
à frente, vejo mais duas pessoas, que, como eu se movimentam vagarosamente.
De repente, vejo o fim das cordas fixas e o sol começa a iluminar-me. Penso que me irá aquecer, mas engano-me, pois o fim das cordas fixas significa a diminuição de pendente e logo uma maior exposição ao vento.
Paro para beber um pouco de sumo e tentar engolir alguma coisa. O sumo está já
bastante frio e quase intragável, apesar de muito protegido. De comer, apenas
consigo espremer um gel meio energético, tudo o resto congelou. Por esta
altura, perdi já a sensibilidade nas pontas dos dedos de uma mão, mas não me
preocupo muito porque percebo que as mexo bastante bem.
Quero acreditar que no fim da vertente vai surgir o que dizem ser o longo
planalto do cume, mas quanto mais subo, mais a montanha insiste em esconder-me
o dito planalto. Não faço ideia das horas, não posso retirar a luva para ver o
relógio, o intenso vento tenta demover-me, mas penso "já que cheguei até
aqui, continuo um pouco mais! Pelo menos até que os italianos que estão à
frente se cruzem comigo ao descer”.
Nisto alcanço outro alpinista espanhol e pouco depois entramos os 2 no tal
planalto do cume. As nuvens à minha frente movem-se depressa e a visibilidade
não é perfeita. Os 40km/h que o Vitor Baía previa, eram ali cerca de 50 ou 60,
duros de enfrentar. Penso que já deve faltar pouco, quando vejo um vulto a
caminhar em minha direcção. Quando nos cruzamos, reconheço um dos espanhóis e
pergunto "quanto tempo para o cume?" ao que me responde "2 a 3
horas". Surpreendo-me com a resposta e fico ali parada a pensar que, com
aquele vento não vou conseguir. Faço um esforço para ver as horas e reparo que
são cerca das 12:30 (hora nepalesa). Penso que se demorar 2 a 3 horas poderei
ter sérios problemas. Pegadas apagadas pelo vento naquele imenso planalto com
fraca visibilidade, podem significar perder-me por ali. Fico ali parada,
durante o que penso serem 1 ou 2 minutos, a pensar o quão larga é a distância e
tão curta a altitude. Desisto, volto as costas e penso que não vale a pena
arriscar. Minutos depois, cruzo-me com um espanhol que vinha a subir e que me
diz "Não, não! Daqui é no máximo uma hora. Vamos! Tenho um amigo mais à
frente!". Isso dá-me novo animo e decido arriscar. O tipo parecia
confiante. Novamente me ponho a caminho e, passado pouco tempo surge, vindo do
cimo, o tal amigo feliz, dizendo "são mais 10 min!". Esses 10 minutos
pareceram-me 5 e, de repente, estava ali, um cume que não parecia cume, de tal
forma se encontra dissipado no meio de um planalto com nuvens que se movimentam
rápido e com a neve que um intenso vento levanta.
Eram as 13:00. Sentados no chão, estavam Simone e Julia (italianos).
Felicitamo-nos. Olho em volta e avisto umas velhas bandeirinhas de oração.
Atrás de mim, jaz no caminho uma garrafa de oxigénio laranja e um cantil azul.
Há algum lixo no cume.
O Everest que era suposto ver, estava tapado pelas nuvens.
Faço de imediato uso do meu telefone satélite. Primeiro tenho a sorte de falar
com o meu pai: "Pai, estou no cume! Consegui!" grito eufórica. Depois
envio uma mensagem ao Pedro Cuiça para colocar no site da expedição. De
seguida, peço aos italianos que me filmem um pouco, enquanto balbucio algumas
coisas que me vêm à cabeça. Filmo um pouco o envolvente e quando peço que me
tirem umas fotos, a minha máquina recusa-se a funcionar, acusando falta de
bateria. Não posso acreditar. Nisto chega o espanhol que estava mesmo atrás de
mim e peço-lhe para tirar umas fotos com a sua câmara, "Claro!"
responde. Pouco depois vejo Rafael. Os dois espanhóis conhecem-se. Peço também
que me tire umas fotos, ao que este acede. Pouco depois inspeciono o meu
cantil. Tal como temia, descubro meio litro de líquido congelado. Até a comida
que trazia junto ao corpo congelou! Resta-me voltar para baixo rapidamente e
fugir ao intenso mau tempo. Penso apenas que o Vítor Baía tinha razão, não era
dia de fazer cume... apesar de já estar feito!
O meu primeiro 8000... em tão duras condições.
Não duvido que baixarei bem e depressa ao campo 2, pois sinto uma enorme energia interior e uma intensa satisfação. Chego a esquecer que apenas ingeri meio litro de sumo e um pacotinho de gel, surpreendo-me como me sinto tão bem.
Vejo os restantes a descer devagar e extenuados, eu estranhamente, pareço agora
ligada à corrente eléctrica!"
Rapidamente me ponho no campo 2 e, na última vertente, cruzo-me com 2
filipinos. Como os vejo exaustos, percebo que algo correu mal.
No campo 2, Noell (uma das filipinas) recebe-me de braços abertos e
felicita-me. Estranhamente, o efusivo Lakpa mal põe a cabeça fora da tenda. Com
Pasang passa-se mesmo. Dizem-me pouco depois que Regie, o líder da expedição,
ficou com cegueira das neves e os 2 sherpas tiveram de o descer amarrado a
cordas, pelo que ambos estavam extenuados.
O ambiente estava pesado.
Como o cansaço foi contagiante nessa noite, apenas eu e Noell cozinhamos umas
massas para o jantar, mas já não houve paciência para fundir gelo para fazer
água. Assim, fiquei-me com pouco mais de meio litro nesse dia. A consequência
foi uma enorme dor de cabeça nocturna! Karina demorou uma eternidade para
descer a última vertente, sentando-se de 5 em 5 passos. O que se desce em cerca
de 15 ou 20 minutos, deve ter-lhe custado umas 2h.
Pela noite, ainda tive o enorme prazer de falar com os meus pais e com Ivan
Vallejo que, do outro lado do telefone, estava tão contente com a notícia, que
parecia ter sido ele a fazer cume.
Daniela Teixeira
1 Comment:
Viva!
Que relato vivido de dia cume... Boa actividade Daniela. Dá-lhe gás; ou seja, sem ele como nesta ;) Esse Cho Oyu e registos de ar rarefeito fazem sonhar.
Abraços para vocês os dois.
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