MATILDE
Escalámos uma nova via no Pico Perramó, nas montanhas de
Benasque mas, um vento gélido demoveu-nos de continuar até ao cimo da formação
(por outra via já estabelecida). Não tinha importância. Estávamos satisfeitos.
A beleza da paisagem tinha ultrapassado as expectativas. Cada passada da longa
marcha que nos conduziu até ali tinha valido a pena.
De volta ao vale, uma nova consulta ao boletim meteorológico
indicava a entrada de uma nova frente de mau tempo. Tempo de partir. Mas não
para muito longe.
A relativamente poucos quilómetros de Benasque encontra-se a
Peña Montañesa, um imponente maciço calcário de paredes impressionantes, palco
de aventuras verticais exigentes.
As magnificas paredes de Peña Montañesa.
Geralmente, o mês de Junho já não é aconselhável para se
escalar em Peña Montañesa. As paredes com orientação sul e expostas ao sol,
tornam-se num verdadeiro forno logo a partir do inicio da Primavera. E isso
mesmo foi o aconteceu em Junho de 2003, quando visitei pela primeira vez a Peña
Montañesa. Nessa altura, desiludidos após uma tentativa frustada à face norte
do Eiger, o Miguel Grillo e eu corremos desalvorados para Espanha decididos a
abrir uma via nova numa das múltiplas paredes da grande muralha da Peña
Montañesa e, nem o calor intenso iria fazer-nos desistir de ir para casa com um
resultado positivo da viagem. Uma espécie de prémio de consolação. Assim nasceu
a “Eiger-NO-Wand” na parede de Penpenus aberta em três manhãs, aproveitando o
único período do dia em que a parede se encontrava à sombra.
O Pico Penpenus. A Eiger-NO-Wand encontra-se à esquerda da grande mancha amarela no centro da parede principal.
Desta vez, a Daniela e eu encontrámos condições inteiramente
distintas ás de 2003.
O mau tempo que se abateu nos Pirinéus baixou as
temperaturas em toda a cordilheira e ao longe, durante as breves abertas nas
nuvens, avistávamos as vertentes vestidas com um véu branco recente, provando
que a cota de neve tinha baixado e muito. A onda de frio pouco habitual para a
época constituía a oportunidade ideal para tentar abrir uma nova via nas
fantásticas paredes da Montañesa. “Vamos a isso!”
Pic-nic com vista para as paredes.
Não é fácil escalar na Peña Montañesa. As paredes parecem
estar “mesmo ali” mas, cedo descobrimos que a proximidade era ilusória.
No dia 10 de Junho metemos uma pequena mochila ás costas
transportando apenas água. Tínhamos como objectivo um singelo reconhecimento
para escolher a “nossa” linha. “Assim abrimos o apetite para o jantar.” – dizia
a Daniela espirituosa.
O “singelo” reconhecimento traduziu-se numa caminhada de
quatro horas que incluiu um lote de mazelas e obstáculos entre os quais,
penosas cascalheiras de pedras rolantes com todos os tamanhos e feitios,
corta-mato em vegetação densa ao bom estilo javali e, inúmeras percas de
itinerário, tudo ambientado com ocasionais chuvadas.
Jungle!
Uma das ocasionais chuvadas.
Antes do dito reconhecimento, o nosso plano consistia em
plantar a tenda num qualquer prado da região e passar ali a noite. Após o
“singelo” reconhecimento, quase a anoitecer, com as blusas coladas ao corpo
ensopadas pelo suor e com várias amostras de espécies vegetais agarradas aos
cabelos, mandámos ás favas o campismo selvagem e sem pestanejar optámos por um
duche retemperador e uma caminha confortável.
Campismo selvagem!!
Em Oncins, uma pacata povoação de quatro ou cinco casas,
encaixada mesmo por baixo da Peña Montañesa, encontrámos a estalagem ideal que,
ainda por cima, possuía o atributo importantíssimo dos três B`s (Bom, Bonito e
Barato). Conhecida como Casa Ambrosio, este pequeno complexo com restaurante e
hospedagem, constitui a base perfeita para passar alguns dias a desfrutar do
lugar. Aqui os escaladores são muito bem vindos e acarinhados com direito a
preço especial para dormidas e jantares. Conhecemos a Matilde, a dona da casa
e, imediatamente criámos empatia. A sua simpatia sincera a juntar à própria
“onda” positiva daquele lugar inspirou-nos durante a nossa estadia.
A pequena povoação de Oncins, visto das paredes.
Logo no primeiro dia de escalada, logo nas primeiras horas,
logo nos primeiros movimentos, apercebemo-nos que escalar (sobretudo abrir) em
Peña Montañesa é um jogo bem mais intenso e exigente que noutras paredes e
maciços por onde andámos. Rapidamente a parede mostrou os dentes sob a forma de
uma rocha compacta e uma verticalidade perturbante. Bons locais para a
colocação de protecções não eram fáceis de encontrar e descobrimos uma escalada
técnica e ao mesmo tempo atlética.
O primeiro lance com 50 metros.
A Daniela a escalar o primeiro lance.
A primeira tarde terminou com a abertura dos primeiros 50
metros de via e com a corda estática instalada para retornar no dia seguinte.
Mais uma vez descemos a fatigante vertente por entre pedras e bosque denso,
motivados pela deliciosa perspectiva do jantar bem servido pela Matilde.
A madrugada do dia 12 viu-nos a retomar a caminhada
carregados com o restante material imprescindível para continuar a escalada.
As vistas desde Oncins.
Pelas características da parede estava claro que iríamos
necessitar de um terceiro dia para terminar a via.
O segundo lance demorou bastante mais que o calculado porque
uma placa compacta e desprovida de fissuras, com uns 15 metros, impedia uma
progressão rápida. Algumas plaquetes de 8mm colocadas à mão e um par de pitons
fixos abriram o caminho para a segunda parte da ascensão.
A primeira reunião estava constituida por uma "Sabina" (espécie de arbusto) gigante.
Os abutres sempre presentes aproximavam-se curiosos.
Entretanto as nuvens acumulavam-se no horizonte. Os ventos
de Noroeste empurraram-nas rapidamente em nossa direcção. Em breve, caíram as
primeiras gotas frias e o dia esteve prestes a terminar mais cedo que o
previsto. Resolvemos esperar que a borrasca se afastasse e, a paciência deu os
seus créditos. O céu azul, surgia de novo aos nossos olhos. De ânimos
redobrados escalámos mais uns 40 metros de fissura larga e algo difícil antes
de colocar um ponto final ao dia.
"Já passou a chuva... vai lá!"
Ao longe, a nuvem descarrega. Alheios continuamos.
A fissura larga do terceiro lance com uns 40 metros.
Dois aspectos da Daniela na segunda reunião da via.
Na jornada seguinte passámos parte da manhã a jumarear as
cordas fixas, compostas pela estática e a dinâmica. Teríamos de terminar a via
nesse dia, ou descer sem completar a linha, pelo simples facto de que não
possuíamos mais corda para fixar e, honestamente, tampouco possuíamos a
paciência para repetir uma vez mais todo o ritual do madrugar para mais uma vez
enfrentar a penosa aproximação.
Jumarear.
O menu para esse dia iniciava com uma fissura vertical de
aspecto aguerrida. Essa fissura era bem visível desde o solo e a partir dessa
morfologia particular desenhamos a linha mentalmente, para cima e para baixo, antes
de a começar a escalar.
O circulo marca a fissura que nos inspirou para "desenhar" o resto da linha.
Sem querer parecer presunçoso, sinceramente penso que o acto de
escalar novos itinerários, constituí uma forma de arte, como qualquer outra
forma de expressão abstracta. No caso particular da escalada, seja em
montanhas, grandes paredes, ou falésias, traçamos uma linha imaginária que pode
ser motivada pelas formas da natureza, pelo sentido estético, pelas emoções
e experiências ou ainda, por todos estes elementos juntos. Depois, tentamos
interligar a linha mental traçada com a acção no terreno. A mente imagina o
quadro, a acção da escalada pinta o quadro imaginado, os apetrechos materiais
utilizados, como os friends, as cordas e restante equipamento, funcionam como
catalisadores, fundindo o imaginado com o realizado, são no fundo, os pincéis e
as tintas.
Esta placa imensa com quase 200 metros, situada mesmo à esquerda da nossa via não possui uma única linha aberta. Aqui, ainda existe terreno para a pintura. Um desafio para o futuro próximo.
O calcário perfeito não deu tréguas ao nível da dificuldade
mas, ia-se deixando proteger convenientemente e conseguimos concluir a bela
fissura do quarto lance com relativa rapidez. Assim que nos juntámos na reunião
decidimos imediatamente que aquele seria o melhor lance da via. Decididamente
um “must do” de Peña Montañesa.
A iniciar o largo mais bonito da via. A protecção mesmo à minha esquerda consiste num gancho colocado numa pequena reglete. "Quem não tem cão... caça com gato".
Um detalhe do ganchito.
Prestes a entrar na fissura.
"É só curtir!!"
A Daniela a desfrutar da fissura.
No final.
Em completa oposição com o quarto lance, o
ultimo largo revelou-se um verdadeiro teste à paciência da Daniela e um
verdadeiro teste à minha capacidade de resistência de rins, não porque estivesse
a debater-me com passos mega atléticos de escalada livre mas, porque a parede
compacta e extra-prumada obrigou a utilizar a lenta e laboriosa técnica de
bricolage característica da escalada artificial. Para ambos, uma prova de
enduro que terminou quatro horas e meia depois do seu inicio. Nesses últimos 40
metros foram deixados uma cordeleta numa ponte de rocha, três pitons, nove expansivos
colocados à mão e uma quantidade industrial de marteladas.
No inicio da escalada artificial. Aqui ainda não sabiamos que nos esperavam quatro horas de trabalho. Uf!
Foram dois braços ao
borde do esgotamento que emergiram na “Faja Toro”, a grande varanda de escape
que marca o final de quase todas as vias deste sector.
As reuniões da via vizinha serviram como linha de rapel
improvisada e depois de mais algum tempo a rearrumar todo o equipamento,
fizemo-nos à descida, desta feita pela ultima vez. Num feliz golpe de ironia,
pela primeira vez conseguimos encarrilar com o misterioso caminho de caçadores,
do qual já nos tinham falado mas, à luz
de nunca o termos encontrado, já estávamos convencidos de que faria parte
de uma qualquer lenda local. Muito mais cómodo que o acesso que utilizáramos
anteriormente o trilho dos caçadores conduziu-nos a bom porto alguns minutos
antes do cair da noite.
Mesmo a tempo para jantar!
Tínhamos pressa. Afinal, ainda faltava concluir uma das
tarefas mais importantes de toda a aventura...
degustar um belo jantar confeccionado pela Matilde.
Os topos: