DESCASCAR NOVAS AVENTURAS
ACTO I
Fevereiro de 2012
- Esta porcaria é só casca!
- E por ali, mais à direita? Sugeriu a Daniela.
Debrucei-me para espreitar mas o cenário parecia-me
idêntico.
- Bem, vou tentar.
Limpei a areia das presas de mãos o melhor que pude e com a
ponta dos pés tacteei gentilmente todos os pequenos ressaltos que me serviriam
de apoio, soltando uma miríade de pequenas lascas de calcário.
Minutos depois, o meu progresso tinha sido diminuto, algo
como um metro e meio.
O que desde o solo parecia rocha razoável, ao perto
revelara-se rocha “descascável”.
- Ok, por aqui estamos resolvidos. Vou descer!
Naquele dia, era a segunda tentativa frustrada de iniciar
uma nova via na Parede Branca, uma muralha selvagem nas estribeiras da
Arrábida.
Primeiras tentativas.
O termo “casca” associado à qualidade da rocha têm aqui a
sua máxima expressão. A Parede Branca têm uma componente de extra-prumos
importante, característica em comum com os outros pilares da zona do Fojo da
Arrábida. Este pormenor condiciona a lavagem pela chuva que raramente toca estas
secções, eternamente protegidas pelos tectos superiores. Por outro lado, a
orientação sul também protege estas falésias dos ventos predominantes, o que
poderá contribuir ainda mais para a falta de “limpeza” da secção inferior da
parede. Finalmente, a própria constituição química do calcário parece exagerar
aqui um efeito particular de erosão. Tudo somado e resumindo toda a equação
numa única palavra, a Parede Branca… descasca!
O cordino... e a casca!
Ainda com algumas horas de luz, resolvemos insistir numa
terceira tentativa de iniciar uma via naquela parede. Naquela fase, estávamos
já em formato de teimosia.
O esticar da corda deu os seus frutos e, após algum tempo conseguimos
desvendar um lance de escalada decente. Contudo, o definhar do dia determinou
que a conclusão daquela aventura seria adiada para outras calendas.
Parede Branca um, Daniela e Paulo zero!
Uma pequena vitória. A caminho do primeiro lance... decente!
ACTO II
Dezembro de 2012
Passaram os meses.
Entretanto, nasceu a primeira via completa na parede, a
“Cascawall”.
Atirada para um canto da memória, ali estava aquela linha
incompleta, uma pequena pedra no sapato que não sendo limitativa, também não
passava desapercebida.
Em Dezembro, uns dias antes do Natal, resolvemos enfrentar
de novo o problema.
Mais uma vez, atirámo-nos à infame “rocha casca”.
Segunda tentativa. "É por ali!"
"Toma lá mais um entaleco!"
A Daniela a iniciar o primeiro lance.
Mais uma vez, enfrentámos alguns dos demónios que este tipo
de escalada desperta.
Mais uma vez, as estrelas teimaram em desalinhar.
No primeiro lance.
Nervosa travessia delicada para ganhar a primeira reunião.
A iniciar o segundo lance. Ambiente garantido.
Os pequenos percalços, de valor desdenhável quando isolados,
resolveram actuar todos de uma vez: dia curto de inverno, os atrasos no acesso
e, em jeito de culminar apoteótico… uma cólica aguda nas tripas que me obrigou
a “ambientar” a segunda reunião… um incidente testemunhado em primeira mão pela
Daniela, que se desmanchava em risos, o mais afastada que as rédeas da
segurança o permitiam. Felizmente, os pequenos hábitos da vida de casado serviram
como atenuante no que tocava à magnífica vergonha que, noutras circunstâncias,
teria despoletado um súbito desejo de me atirar da falésia.
Dois momentos no segundo lance. A segunda parte mais atlética.
A coisa nem teria sido muito ridícula, não fosse o facto de
se ter convertido num desagradável “déjà-vu” relativamente ao sucedido durante
a abertura da “Cascawall”, mesmo ali ao lado. “Simples coincidências ou más
energias do local?” Foi este o ultimo pensamento que ocupou o meu cérebro
durante o rapel aéreo que concluiu a aventura daquele dia.
Parede Branca dois, Daniela e Paulo zero!
Pôr-do-sol.
ACTO III
Janeiro de 2013
Esta foi uma das únicas escaladas em que a Daniela fez um
grande favor em acompanhar-me. E favor é o termo certo, uma vez que na sua
cabeça, o reset estava mais ou menos feito no que tocava à Parede Branca… a
parede da “casca”!
- Ok, vamos lá mas, esta será a ultima vez que meto ali os
pés!
Tinha de reconhecer que aquela era uma atitude razoável.
O ultimato estava feito e a terceira tentativa seria a
definitiva. Em caso de falhanço, quanto a mim, fiel discípulo da inutilidade, iria
com certeza retornar outro dia mas, dessa vez seria acompanhado por outro
cordada ou, em ultima análise, tentaria sozinho.
Luzes, mar e pedras!
Foi com uma relativa sensação de “karma” que reiniciámos a
escalada.
Os primeiros passos do novo lance, o terceiro da via, foram
conquistados recorrendo aos estribos. O extra-prumo pronunciado e a estrutura
demasiado lisa da rocha não permitiram qualquer tentativa de escalada livre.
Com a “batota” da máquina, foram colocados quatro expansivos
sucessivos, antes dos pés de gato começarem a realizar a função para a qual
tinham sido desenhados.
Impossivel proteger de outra forma.
No ar!!
Só depois de termos alcançado a reunião do novo lance, nos
permitimos reconhecer que a coisa finalmente parecia rolar de uma forma mais
“normalizada”.
Rolavam também os ponteiros do relógio, à medida que a
ascensão ia decorrendo.
Finalizar a escalada e concluir aquela nova via era agora
ponto de honra.
A iniciar o terceiro lance, bem mais pacífico e rápido.
No final do terceiro lance, depois de uma escalada interessante.
Dois momentos da Daniela a escalar o terceiro lance.
Comecei o ultimo largo com a sensação, já familiar, de estar
prestes a enfrentar um terreno de jogo de difícil resolução mental.
No incio do ultimo lance, uma curta tirada com mau aspecto.
O aspecto da rocha convidava a olhar para outro lado e a
assobiar, dissimulando o tremelicar da perna. Mas, voilá! Surpresa das
surpresas, o lance acabou por se converter em algo muito mais pacífico do que
os suores frios faziam supor. A rocha apresentou-se muito mais compacta do que
parecia e as protecções muito mais fiáveis que o imaginado.
"Pedraaaaa!!"
O lance revela-se muito melhor que o esperado.
No crux do ultimo largo.
A terminar a aventura.
O ultimo passito!
Um horizonte dourado sobre o mar premiou a chegada ao topo e
a determinação de terminar aquela história, demasiado longa para os metros
conquistados.
Arrumámos todo o material à pressa, apostados em chegar ao
carro sem ter a necessidade de ligar a luz do frontal.
Ultimas luzes.
Desta forma, terminou mais um pequeno épico vivido numa das
falésias mais vertiginosas da Arrábida.
Pelas suas características particulares, a Parede Branca
desvia-se consideravelmente dos conceitos de escalada geralmente aceites pelo
“main-stream”. Neste sentido, as regras do bom senso convidam a interromper
durante uns tempos as aventuras por ali. No entanto, palavras como “regras” ou
“bom senso” fazem parte de contextos rígidos pré-determinados que são a
antítese total da filosofia. Por isso…
FUCK THE RULES! Novas aventuras se seguirão!
Paulo Roxo
Os Topos
Fotos dos croquis cedidas pelo João Gaspar
1 Comment:
Boa Pinta!!!!
5 estrelas como sempre!!!
Abraço
João Animado
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