quarta-feira, dezembro 10, 2014

Indian Crack

INDIAN CRACK


Natureza em estado puro.


Mmm, vamos lá a ver. Por aqui, ou por ali?”
Por cima das nossas cabeças, erguia-se uma abóboda de calcário, caoticamente desenhada por um rebuliço de formas geológicas inquietantes.
A corda estática pendia à nossa esquerda mas, não necessitávamos de estar “atados” a nada. A plataforma era bastante horizontal e suficientemente larga para possibilitar movimentar-nos livremente. Apenas teríamos que ter o cuidado de evitar debruçarmo-nos demasiado para o abismo de uns 80 metros que terminava nos rochedos batidos pelas ondas do Atlântico.
Sem ser extremo, o local era intimidante.


"Gear for fear!"


“Paulo, vamos a isso! Estou nessa!” Respondeu-me o Tony Chee, no dia anterior, entusiasmado com o convite para ir escalar num sector onde ainda não existiam quaisquer vias de escalada.
Apesar de se tratar de um sector relativamente pequeno, com uns 60 metros de altura e outros tantos de largura, a logística de “ataque” não é das mais simples. É necessário ir prevenido com algo mais que uma simples corda e um rack de friends e entaladores. Diria mesmo que a peça mais importante a levar é a “mentalização”.
O trilho de acesso ao topo do novo sector é bastante cómodo e intuitivo mas, aceder à base da parede em questão requer algum trabalho e preparação, uma vez que não é possível andar simplesmente até lá.
Na primeira incursão levámos uma corda estática e algum material para fixar uma linha de rapel ou escape (jumareando), caso a coisa se torna-se mais complicada que o previsto. 

 
A única vista geral da falésia desde um ponto lateral. O "Sector dos Amigos" é a parede mais próxima do observador.


Iriamos tentar escalar uma linha que eu tinha avistado há algum tempo desde a margem da falésia. Tratava-se de uma fissura muito atractiva que cortava na vertical a parede lateral de um diedro. No entanto, como era uma linha que não partia desde a base lógica (junto ao mar), abandonei momentaneamente a ideia. Outros projectos desafiantes, dentro do mesmo género de aventura mas… de maior comprimento, alimentavam o meu imaginário.
Entretanto, entrepôs-se uma expedição aos Himalaias e com esta, uma bela tareia para os dedos dos pés, consequência directa do usufruto dos prazeres da escalada em altitude e das botas duplas de alpinismo. 


 
 Mar e rocha.


De volta à ponta oeste da Europa, chegara a hora de pensar em aventuras mais humildes, porém, não necessariamente isentas de emoção e compromisso. Decidi inaugurar a nova temporada de escalada em rocha com uma aventura inédita, numa parede ainda desconhecida e de rocha… questionável. Teria que ser uma “reentré” em estilo e desde baixo, sem reconhecimento e limpeza prévias. Contudo, a habitual degradação da performance que se segue após as incursões nas grandes montanhas, obrigava a um objectivo de longitude comedida. A fissura avistada alguns meses antes figurava nos primeiros lugares de pretendentes perfeitos.
No entanto… recordam-se da referência anterior aos dedos dos pés?


Em busca da melhor entrada.


Desde baixo, era impossível detectar a tal fissura atractiva, escondida por extra-prumos insondáveis de calcário. Calculei o ponto de entrada que, com alguma sorte, iria colocar-nos na plataforma de base da fissura e, fiz-me à via. Imediatamente senti a dor nas pontas dos dedos dos pés, agora apertados nuns claustrofóbicos pés-de-gato, confirmando o velho ditado que afirma “não existir bela sem senão”. As altas montanhas cobravam agora o seu preço, no meu caso, na forma de umas dores quase insuportáveis nas extremidades inferiores. “Agora, aguenta-te!” Pensei em voz alta. O Tony, observava-me atentamente fornecendo corda à medida que eu escalava lentamente, contornando a custo os extra-prumos mais pronunciados. Seguia a linha mais lógica de ascensão, a linha de fraqueza da complexa morfologia rochosa. 


 
 Primeiro lance da "Indian Crack". Um "desfrute" para os meus pés doridos!


Procurava proteger de uma forma eficiente e segura. Apesar de nos termos prevenido com um pequeno “kit” de pernes e plaquetes, este nunca chegou a ser usado pois, a estrutura permitia encontrar pontos razoáveis para a colocação de friends ou entaladores.
Algum tempo depois, alcancei a plataforma de reunião, depois de “conquistar” o primeiro lance sem realizar o desejável encadeamento em livre do mesmo. Com os pés num lamentável estado e progredindo “à vista”, escalar tudo em livre estava fora de questão. Esse encadeamento estava destinado a acontecer alguns dias depois.


 
 A assediar a fissura prometida.


Assegurei o Tony e pouco depois iniciei a escalada do objectivo principal, a bela fissura que clamava para ser explorada. A meio da mesma, ali estava uma atractiva “fuga”, uma travessia lógica e bonita para a esquerda, que conduziu a uma nova fissura vertical e consequentemente à longa secção final mais fácil mas, difícil de gerir ao nível do atrito criado pela linha sinuosa seguida pela corda. Já não recordo bem a quantidade de vezes em que fui obrigado a descalçar-me. A última parte da escalada foi realizada com os calcanhares fora dos pés-de-gato, uma técnica eficiente para aliviar a dor nos dedos mas, com um nível de risco a roçar o inaceitável. Abracei o risco de bom grado porque finalmente podia escalar e pensar ao mesmo tempo, algo que não acontecia há algum tempo, na verdade, desde que iniciara a via. 


 Prestes a abandonar a fissura principal realizando uma travessia para a esquerda até alcançar uma nova fissura de saída. A restante porção de fissura vertical ficaria para depois.


Apesar dos percalços, o novo sector estava inaugurado.
Pessoalmente tinha pena de não ter podido desfrutar convenientemente, por causa da malfadada dor de pés.
Com o acordo do meu companheiro de cordada, a nova via foi baptizada com o nome “Indian Crack”, como uma alusão indirecta aos Himalaias Indianos, o local da nossa (minha e da Daniela Teixeira) mais recente expedição.
A bela fissura contínua que constitui o segundo lance da via, trata-se de uma formação rara neste tipo de falésia e, a sua escalada representa uma experiência inédita.
No entanto, o desvio para a esquerda aquando da escalada original, afastou-nos da linha natural da fissura que se prolonga até alcançar um tecto de aspecto desafiante.
O Fernando Pereira entusiasmou-se com a ideia de visitar novo território e juntos repetimos a “Indian Crack”. 


 
O Fernando a chegar à primeira reunião da "Indian Crack".


Os meus dedos dos pés recusavam-se a aliviar os níveis de dor. Mesmo assim, o primeiro lance saiu totalmente em livre e “sem espinhas”. O Fernando encarregou-se de repetir a fissura do segundo lance e a linha original para a esquerda obteve a sua primeira repetição, em poucos dias.
Horas antes, o Fernando e eu, inaugurámos também a segunda via aberta no sector.


 
 
Dois momentos do Fernando a escalar o primeiro lance da "Unhas retorcidas".


A “Unhas retorcidas” (vá-se lá saber a origem do nome), terminou com dois lances de fissuras, percorrendo um itinerário sinuoso mas, bastante lógico e bonito (esta ultima percepção, dependendo da sensibilidade de cada um). Mais uma vez, não foi necessário recorrer aos expansivos e a aventura resolveu-se com a utilização exclusiva de equipamento volante.


 
 O Fernando prestes a terminar o bonito primeiro lance da "Unhas retorcidas".

 
 
 A sair da primeira reunião da "Unhas retorcidas" e a iniciar o segundo lance. Aqui, a via converge francamente para a direita em busca de um diedro/fissura lógico.


Entretanto, o Tony “deixou-se enganar” de novo e, no dia 4 de Dezembro, retornámos à “Indian” com o intuito de “endireitar” definitivamente a via.
Desta vez, rejeitámos empiricamente o primeiro lance e rapelámos directamente para o local da primeira reunião. Algumas horas depois, a escalada integral da fissura estava concluída e com ela, culminou a abertura da via mais óbvia do sector. A “Indian Crack” revela agora o seu verdadeiro carácter de 6c (sujeito à futura decotação) mas, sobretudo, representa um pequeno mas intenso desafio mental de escalada tradicional.

  
 

 
 Dois momentos da escalada integral da fissura da "Indian Crack".


 
O Tony a terminar o lance crucial da "Indian Integral".


No dia 8 de Dezembro, o Fernando Pereira retornou à falésia e, em técnica de escalada em solitário, inaugurou um novo itinerário que baptizou com o nome: “Granada”. A inspiração para o nome não está propriamente relacionada com a qualidade da rocha (embora se pudesse adequar) mas sim com um “encontro imediato” acontecido no final da sua ascensão. Ao desembocar no topo da falésia, o Fernando deu de caras com uma granada real, decerto um “fruto” perdido (e por explodir!) de antigos exercícios militares que os fuzileiros frequentemente realizavam na Serra da Arrábida.


 
 Uma pequena lembrança de antigos exercícios militares na Serra da Arrábida. "Granaaaadaaaa!"


 
 O Fernando, no topo da falésia.

O “Sector dos Amigos” encontra-se à esquerda (de costas para o mar) da “Parede dos figos” – parede que alberga a grande via desportiva “Figos para os amigos” e conta já com quatro linhas “bolt free” e potencial para mais umas quantas, seguindo o mesmo estilo.

Apesar das humildes proporções da parede, as suas características particulares, localização e verticalidade dão-lhe um ambiente aéreo e impressionante.


 
O Tony a escalar a "Indian Crack".


Os potências candidatos à repetição destas vias devem ter em conta que estas foram aberturas realizadas desde baixo, cuja respectiva limpeza se resumiu a atirar aos peixinhos apenas os blocos e pedras mais precários, estacionados no caminho directo do escalador. Desta forma, é de todo muito recomendável que se proceda com cautela e com uma boa dose de bom senso.

Um capacete extremamente homologado é obrigatório, bem como uma boa dose de experiência neste tipo de terrenos – aqui convêm “bater à porta antes de agarrar”. Ainda a  propósito, existe outra prática que ajuda a garantir a boa integridade física do escalador que consiste em traccionar as presas “para baixo” e não “para fora”.

Não é nada mal pensado carregar uma corda a mais (60m!) para fixar no topo da falésia e uns punhos bloqueadores, para facilitar uma retirada imprevista (o único escape possível é para cima!).

Reunidas todas as condições e sacudindo o nervoso miudinho, a satisfação final de ter vivido uma boa aventura numa parede em “estado selvagem” está garantida.


Paulo Roxo


Os topos


 

quinta-feira, setembro 11, 2014

Existimos?



 EXISTIMOS?



Deixamos cair as mochilas junto à base da parede, um muro compacto, espectacular e alto.
Olho para cima e imagino as várias hipóteses. Linhas imaginárias cruzam o granito negro e iluminam-se, como fios delicados de néon. Os olhos perdem-se na morfologia, na inquietação das formas rochosas que a Natureza desenhou.
“Por ali?”
“Mmm, talvez.”
“E que tal aquela, que te parece?”
Embora o sítio tenha sido visitado anteriormente e, sabendo que existirá pelo menos um par de vias abertas, mesmo assim, quase tudo está por escalar.
Encontramo-nos junto a uma parede remota, numa qualquer cordilheira perdida… ou então, talvez não seja bem assim… 




Na verdade, encontramo-nos na “nossa” Serra da Estrela.
O Cântaro Raso apresenta uma face norte sugestiva e, separam-na da estrada pouco mais que dez minutos de caminhada.




 

O primeiro lance da “Vertical ao Raso” ultrapassa uma espécie de lastra de fissura fina.
Os micro-friends e entaladores mais pequenos são aqui imprescindíveis. Esta secção inicial constitui o “crux” da via. A segunda parte deste lance cruza uma evidente diagonal em fissura, por baixo de um tecto musgoso.



A Serra da Estrela possui um manancial enorme de vias de grande qualidade. Sobejam as escaladas de vários lances de auto-protecção e a escolha cobre todo o espectro de níveis de dificuldade e exposição. Ou seja, existem opções para todos os gostos e feitios.
Fazendo justiça às pessoas que escalaram no Cântaro Raso anteriormente, deixo uma breve referência aos factos conhecidos.
Provavelmente, o primeiro escalador a aventurar-se nesta parede foi o Paulo Alves, autor de vias espalhadas pelos quatro cantos do país, abertas sobretudo nas décadas de 80 e 90, do séc. XX. O Paulo não deixou qualquer registo escrito dessa misteriosa incursão, nem é conhecida a linha percorrida pela sua via.
Por volta do ano 2002, a cordada formada pelos Américo Santos, Pedro Pimentel e Luis Pinheiro, decidiu-se a visitar o Cântaro Raso e dessa incursão nasceu uma via chamada “Bichos ao nascer dos faróis”.


O segundo largo escala uma “pseudo-fissura” com tiques de “Off-widht”. São passos estranhos que apenas servem para aceder ao verdadeiro “sumo” da via.

 

O terceiro e último lance ultrapassa uns bons 30 metros verticais formados por diedros paralelos e termina com uma fissura que possui tanto de difícil como de grotesco. De todos modos, é um lance espectacular que bem merecia uma boa escovagem para ficar ainda mais “desfrutón”.




Salvo algumas excepções honrosas, a escalada na Serra da Estrela parece estar destinada ao ostracismo e a ser eternamente considerada como “campo de treinos” para voos mais altos. Curiosamente, alguns desses “voos mais altos” não passam da Serra de Gredos, ou Galayos, na vizinha Espanha, cujas características (sob todos os aspectos) são muito semelhantes à Estrela. A escalada na nossa serra, poucas vezes foi tida como um fim em si, demasiadas vezes foi considerada como uma actividade secundária, como um meio para algo mais grandioso. Talvez por estes motivos, seja muito raro encontrar alguém a repetir qualquer das vias que a serra oferece.
Muitas vezes penso que não sabemos dar o devido valor às nossas melhores qualidades, mesmo quando estas se encontram escarrapachadas diante dos nossos olhos. 





O resultado do abandono está à vista (para quem quiser ver): muitas vias já se encontram bastante sujas e, o malfadado musgo, ganha terreno novamente, a passos largos.
Tomar consciência deste desleixo aparente, provoca-me alguma melancolia, quase tristeza. É como se o esforço de uns poucos escaladores, provenientes de diferentes gerações, que se entregaram com dedicação e carinho, a abrir, limpar e equipar vias neste cantinho, estivesse destinado a um inevitável esquecimento. É como se, com o passar dos anos, todos os entusiasmos, os medos, as alegrias e as emoções, que conduziram ao nascimento daquelas vias, se desvanecessem lentamente no espaço e no tempo. No futuro próximo, as memórias das aventuras passadas estarão definitivamente desaparecidas e, a partir desse momento, será como se nunca tivessem existido. 




 
 
O primeiro lance da “A Apertadinha” começa com uma escalada relativamente acessível e “normal”, para logo entrar no mundo misterioso das trevas… e das chaminés apertadas e impossíveis de proteger!

Depois de alguns momentos divertidos (leia-se: angustiantes), coloridos com um nível refinado de impropérios, escalámos uma vez mais o segundo lance da “Vertical ao Raso” e, após a a saída final, atravessámos para a esquerda até alcançar as cordeletas da reunião de rapel.



O terceiro lance, de fissuras evidentes e perfeitas, constitui o “ex-libris” da via e, ilustra bem algumas das razões pelas quais escalamos.

O último lance, mais curto, transpõe um pequeno diedro evidente, uma fenda vertical de escalada delicada e uma fissura mais fina e mais exigente, que pode ser evitada, contornando pela esquerda, por terreno bem mais fácil.




Há muito pouco tempo ouvi alguém dizer: “Sem uma perspectiva histórica, a actividade respectiva não existe.”
Por vezes pergunto-me: será que a Escalada e o Alpinismo realmente existem em Portugal? Não estaremos eternamente a reinventar as origens da nossa actividade? Onde está a história da escalada portuguesa? Quem foram os seus protagonistas? Quem importou? Quem marcou? Quem inspirou?
“Eu não me queixo muito! Já viste que podemos andar por aqui tranquilamente e escolher qualquer via ou parede, sabendo que não iremos encontrar ninguém? Hoje em dia, no mundo, é muito raro encontrar um sítio assim!” – a ironia da Daniela reflectiu, sem querer, uma lógica implacável e com um fundo de verdade.
Analisando friamente a situação, considerando seriamente a outra cara da moeda, realmente, ao nível estritamente pessoal não tenho razões para reclamar. Encontrar um tesouro destes, praticamente por explorar, à porta de casa, é um luxo raro que – estou convencido – faria a inveja de muitos bons escaladores.
A um nível mais lato, de registo, de restauração e preservação da memória, temo que temos muito a perder. Considerar o passado, permite-nos encarar o presente a pensar no futuro.

A Escalada realmente existe neste país?


 

Foram equipadas duas reuniões de fortuna para possibilitar a descida em rapel. A primeira reunião possui dois Pernes M8 e a segunda, duas cordeletas à volta de uns blocos sólidos.

Salvo o equipamento existente nas reuniões de rapel, nas vias apresentadas não existe qualquer outro tipo de equipamento fixo.

Caso se opte pela descida em rapel, é muito conveniente estar prevenido com algumas cordeletas para substituir as existentes.




Afastando estes pensamentos melancólicos, escolhemos a linha que iriamos tentar escalar. Esperavam-nos algumas horas de incertezas, de medos, de riscos, de alegrias e entusiasmos. No calor da acção é muito fácil esquecer os sentimentos negativos, os pensamentos existenciais e, simplesmente… ser, desfrutar.
Os dois dias passaram e, o resultado foi a escalada de duas novas vias na face norte do Cântaro Raso. Anunciamos como “novas vias” mas, sem certezas absolutas pois, podem bem já ter sido escaladas. Alguém pode ter já percorrido estes mesmos itinerários antes de nós. E, antes desse alguém, outro alguém, pode também ter percorrido esses mesmos itinerários. Não o sabemos. Porque, sem qualquer referência, sem conhecer sequer uma linha da história, sem conhecer algumas das incertezas, dos medos, dos riscos, das alegrias e entusiasmos vividos pelos nossos antecessores, é como se estes, simplesmente… nunca tivessem existido.


Paulo Roxo


Os croquis (para que existam!)