EXISTIMOS?
Deixamos cair as mochilas junto à base da parede, um muro
compacto, espectacular e alto.
Olho para cima e imagino as várias hipóteses. Linhas
imaginárias cruzam o granito negro e iluminam-se, como fios delicados de néon.
Os olhos perdem-se na morfologia, na inquietação das formas rochosas que a
Natureza desenhou.
“Por ali?”
“Mmm, talvez.”
“E que tal aquela, que te parece?”
Embora o sítio tenha sido visitado anteriormente e, sabendo
que existirá pelo menos um par de vias abertas, mesmo assim, quase tudo está
por escalar.
Encontramo-nos junto a uma parede remota, numa qualquer
cordilheira perdida… ou então, talvez não seja bem assim…
Na verdade, encontramo-nos na “nossa” Serra da Estrela.
O Cântaro Raso apresenta uma face norte sugestiva e,
separam-na da estrada pouco mais que dez minutos de caminhada.
O primeiro lance da “Vertical ao Raso” ultrapassa uma
espécie de lastra de fissura fina.
Os micro-friends e entaladores mais pequenos são aqui
imprescindíveis. Esta secção inicial constitui o “crux” da via. A segunda parte
deste lance cruza uma evidente diagonal em fissura, por baixo de um tecto
musgoso.
A Serra da Estrela possui um manancial enorme de vias de
grande qualidade. Sobejam as escaladas de vários lances de auto-protecção e a
escolha cobre todo o espectro de níveis de dificuldade e exposição. Ou seja,
existem opções para todos os gostos e feitios.
Fazendo justiça às pessoas que escalaram no Cântaro Raso
anteriormente, deixo uma breve referência aos factos conhecidos.
Provavelmente, o primeiro escalador a aventurar-se nesta
parede foi o Paulo Alves, autor de vias espalhadas pelos quatro cantos do país,
abertas sobretudo nas décadas de 80 e 90, do séc. XX. O Paulo não deixou qualquer
registo escrito dessa misteriosa incursão, nem é conhecida a linha percorrida
pela sua via.
Por volta do ano 2002, a cordada formada pelos Américo
Santos, Pedro Pimentel e Luis Pinheiro, decidiu-se a visitar o Cântaro Raso e dessa
incursão nasceu uma via chamada “Bichos ao nascer dos faróis”.
O segundo largo escala uma “pseudo-fissura” com tiques de
“Off-widht”. São passos estranhos que apenas servem para aceder ao verdadeiro
“sumo” da via.
O terceiro e último lance ultrapassa uns bons 30 metros
verticais formados por diedros paralelos e termina com uma fissura que possui
tanto de difícil como de grotesco. De todos modos, é um lance espectacular que
bem merecia uma boa escovagem para ficar ainda mais “desfrutón”.
Salvo algumas excepções honrosas, a escalada na Serra da
Estrela parece estar destinada ao ostracismo e a ser eternamente considerada
como “campo de treinos” para voos mais altos. Curiosamente, alguns desses “voos
mais altos” não passam da Serra de Gredos, ou Galayos, na vizinha Espanha,
cujas características (sob todos os aspectos) são muito semelhantes à Estrela.
A escalada na nossa serra, poucas vezes foi tida como um fim em si, demasiadas
vezes foi considerada como uma actividade secundária, como um meio para algo
mais grandioso. Talvez por estes motivos, seja muito raro encontrar alguém a
repetir qualquer das vias que a serra oferece.
Muitas vezes penso que não sabemos dar o devido valor às
nossas melhores qualidades, mesmo quando estas se encontram escarrapachadas diante
dos nossos olhos.
O resultado do abandono está à vista (para quem quiser ver):
muitas vias já se encontram bastante sujas e, o malfadado musgo, ganha terreno
novamente, a passos largos.
Tomar consciência deste desleixo aparente, provoca-me alguma
melancolia, quase tristeza. É como se o esforço de uns poucos escaladores, provenientes
de diferentes gerações, que se entregaram com dedicação e carinho, a abrir,
limpar e equipar vias neste cantinho, estivesse destinado a um inevitável esquecimento.
É como se, com o passar dos anos, todos os entusiasmos, os medos, as alegrias e
as emoções, que conduziram ao nascimento daquelas vias, se desvanecessem lentamente
no espaço e no tempo. No futuro próximo, as memórias das aventuras passadas estarão
definitivamente desaparecidas e, a partir desse momento, será como se nunca
tivessem existido.
Depois de alguns momentos divertidos (leia-se: angustiantes),
coloridos com um nível refinado de impropérios, escalámos uma vez mais o
segundo lance da “Vertical ao Raso” e, após a a saída final, atravessámos para
a esquerda até alcançar as cordeletas da reunião de rapel.
O terceiro lance, de fissuras evidentes e perfeitas,
constitui o “ex-libris” da via e, ilustra bem algumas das razões pelas quais
escalamos.
O último lance, mais curto, transpõe um pequeno diedro
evidente, uma fenda vertical de escalada delicada e uma fissura mais fina e
mais exigente, que pode ser evitada, contornando pela esquerda, por terreno bem
mais fácil.
Há muito pouco tempo ouvi alguém dizer: “Sem uma perspectiva
histórica, a actividade respectiva não existe.”
Por vezes pergunto-me: será que a Escalada e o Alpinismo
realmente existem em Portugal? Não estaremos eternamente a reinventar as origens
da nossa actividade? Onde está a história da escalada portuguesa? Quem foram os
seus protagonistas? Quem importou? Quem marcou? Quem inspirou?
“Eu não me queixo muito! Já viste que podemos andar por aqui
tranquilamente e escolher qualquer via ou parede, sabendo que não iremos
encontrar ninguém? Hoje em dia, no mundo, é muito raro encontrar um sítio
assim!” – a ironia da Daniela reflectiu, sem querer, uma lógica implacável e
com um fundo de verdade.
Analisando friamente a situação, considerando seriamente a
outra cara da moeda, realmente, ao nível estritamente pessoal não tenho razões
para reclamar. Encontrar um tesouro destes, praticamente por explorar, à porta
de casa, é um luxo raro que – estou convencido – faria a inveja de muitos bons
escaladores.
A um nível mais lato, de registo, de restauração e
preservação da memória, temo que temos muito a perder. Considerar o passado,
permite-nos encarar o presente a pensar no futuro.
A Escalada realmente existe neste país?
Foram equipadas duas reuniões de fortuna para possibilitar a
descida em rapel. A
primeira reunião possui dois Pernes M8 e a segunda, duas cordeletas à volta de
uns blocos sólidos.
Salvo o equipamento existente nas reuniões de rapel, nas
vias apresentadas não existe qualquer outro tipo de equipamento fixo.
Caso se opte pela descida em rapel, é muito conveniente estar
prevenido com algumas cordeletas para substituir as existentes.
Afastando estes pensamentos melancólicos, escolhemos a linha
que iriamos tentar escalar. Esperavam-nos algumas horas de incertezas, de
medos, de riscos, de alegrias e entusiasmos. No calor da acção é muito fácil
esquecer os sentimentos negativos, os pensamentos existenciais e, simplesmente…
ser, desfrutar.
Os dois dias passaram e, o resultado foi a escalada de duas
novas vias na face norte do Cântaro Raso. Anunciamos como “novas vias” mas, sem
certezas absolutas pois, podem bem já ter sido escaladas. Alguém pode ter já
percorrido estes mesmos itinerários antes de nós. E, antes desse alguém, outro
alguém, pode também ter percorrido esses mesmos itinerários. Não o sabemos.
Porque, sem qualquer referência, sem conhecer sequer uma linha da história, sem
conhecer algumas das incertezas, dos medos, dos riscos, das alegrias e
entusiasmos vividos pelos nossos antecessores, é como se estes, simplesmente… nunca
tivessem existido.
Paulo Roxo
Os croquis (para que existam!)
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