INDIAN CRACK
Natureza em estado puro.
“Mmm, vamos lá a ver. Por aqui, ou por ali?”
Por cima das nossas cabeças, erguia-se uma abóboda de
calcário, caoticamente desenhada por um rebuliço de formas geológicas
inquietantes.
A corda estática pendia à nossa esquerda mas, não necessitávamos
de estar “atados” a nada. A plataforma era bastante horizontal e suficientemente
larga para possibilitar movimentar-nos livremente. Apenas teríamos que ter o
cuidado de evitar debruçarmo-nos demasiado para o abismo de uns 80 metros que
terminava nos rochedos batidos pelas ondas do Atlântico.
Sem ser extremo, o local era intimidante.
"Gear for fear!"
“Paulo, vamos a isso! Estou nessa!” Respondeu-me o Tony Chee,
no dia anterior, entusiasmado com o convite para ir escalar num sector onde ainda
não existiam quaisquer vias de escalada.
Apesar de se tratar de um sector relativamente pequeno, com
uns 60 metros de altura e outros tantos de largura, a logística de “ataque” não
é das mais simples. É necessário ir prevenido com algo mais que uma simples corda
e um rack de friends e entaladores. Diria mesmo que a peça mais importante a
levar é a “mentalização”.
O trilho de acesso ao topo do novo sector é bastante cómodo
e intuitivo mas, aceder à base da parede em questão requer algum trabalho e
preparação, uma vez que não é possível andar simplesmente até lá.
Na primeira incursão levámos uma corda estática e algum
material para fixar uma linha de rapel ou escape (jumareando), caso a coisa se
torna-se mais complicada que o previsto.
A única vista geral da falésia desde um ponto lateral. O "Sector dos Amigos" é a parede mais próxima do observador.
Iriamos tentar escalar uma linha que eu tinha avistado há
algum tempo desde a margem da falésia. Tratava-se de uma fissura muito
atractiva que cortava na vertical a parede lateral de um diedro. No entanto,
como era uma linha que não partia desde a base lógica (junto ao mar), abandonei
momentaneamente a ideia. Outros projectos desafiantes, dentro do mesmo género de
aventura mas… de maior comprimento, alimentavam o meu imaginário.
Entretanto, entrepôs-se uma expedição aos Himalaias e com
esta, uma bela tareia para os dedos dos pés, consequência directa do usufruto
dos prazeres da escalada em altitude e das botas duplas de alpinismo.
Mar e rocha.
De volta à ponta oeste da Europa, chegara a hora de pensar
em aventuras mais humildes, porém, não necessariamente isentas de emoção e
compromisso. Decidi inaugurar a nova temporada de escalada em rocha com uma
aventura inédita, numa parede ainda desconhecida e de rocha… questionável.
Teria que ser uma “reentré” em estilo e desde baixo, sem reconhecimento e
limpeza prévias. Contudo, a habitual degradação da performance que se segue
após as incursões nas grandes montanhas, obrigava a um objectivo de longitude
comedida. A fissura avistada alguns meses antes figurava nos primeiros lugares
de pretendentes perfeitos.
No entanto… recordam-se da referência anterior aos dedos dos
pés?
Em busca da melhor entrada.
Desde baixo, era impossível detectar a tal fissura
atractiva, escondida por extra-prumos insondáveis de calcário. Calculei o ponto
de entrada que, com alguma sorte, iria colocar-nos na plataforma de base da
fissura e, fiz-me à via. Imediatamente senti a dor nas pontas dos dedos dos
pés, agora apertados nuns claustrofóbicos pés-de-gato, confirmando o velho
ditado que afirma “não existir bela sem senão”. As altas montanhas cobravam
agora o seu preço, no meu caso, na forma de umas dores quase insuportáveis nas
extremidades inferiores. “Agora, aguenta-te!” Pensei em voz alta. O Tony,
observava-me atentamente fornecendo corda à medida que eu escalava lentamente,
contornando a custo os extra-prumos mais pronunciados. Seguia a linha mais
lógica de ascensão, a linha de fraqueza da complexa morfologia rochosa.
Primeiro lance da "Indian Crack". Um "desfrute" para os meus pés doridos!
Procurava proteger de uma forma eficiente e segura. Apesar de nos termos
prevenido com um pequeno “kit” de pernes e plaquetes, este nunca chegou a ser
usado pois, a estrutura permitia encontrar pontos razoáveis para a colocação de
friends ou entaladores.
Algum tempo depois, alcancei a plataforma de reunião, depois
de “conquistar” o primeiro lance sem realizar o desejável encadeamento em livre
do mesmo. Com os pés num lamentável estado e progredindo “à vista”, escalar tudo
em livre estava fora de questão. Esse encadeamento estava destinado a acontecer
alguns dias depois.
A assediar a fissura prometida.
Assegurei o Tony e pouco depois iniciei a escalada do
objectivo principal, a bela fissura que clamava para ser explorada. A meio da
mesma, ali estava uma atractiva “fuga”, uma travessia lógica e bonita para a
esquerda, que conduziu a uma nova fissura vertical e consequentemente à longa
secção final mais fácil mas, difícil de gerir ao nível do atrito criado pela
linha sinuosa seguida pela corda. Já não recordo bem a quantidade de vezes em
que fui obrigado a descalçar-me. A última parte da escalada foi realizada com
os calcanhares fora dos pés-de-gato, uma técnica eficiente para aliviar a dor
nos dedos mas, com um nível de risco a roçar o inaceitável. Abracei o risco de
bom grado porque finalmente podia escalar e pensar ao mesmo tempo, algo que não
acontecia há algum tempo, na verdade, desde que iniciara a via.
Prestes a abandonar a fissura principal realizando uma travessia para a esquerda até alcançar uma nova fissura de saída. A restante porção de fissura vertical ficaria para depois.
Apesar dos percalços, o novo sector estava inaugurado.
Pessoalmente tinha pena de não ter podido desfrutar
convenientemente, por causa da malfadada dor de pés.
Com o acordo do meu companheiro de cordada, a nova via foi
baptizada com o nome “Indian Crack”, como uma alusão indirecta aos Himalaias
Indianos, o local da nossa (minha e da Daniela Teixeira) mais recente expedição.
A bela fissura contínua que constitui o segundo lance da
via, trata-se de uma formação rara neste tipo de falésia e, a sua escalada
representa uma experiência inédita.
No entanto, o desvio para a esquerda aquando da escalada
original, afastou-nos da linha natural da fissura que se prolonga até alcançar
um tecto de aspecto desafiante.
O Fernando Pereira entusiasmou-se com a ideia de visitar
novo território e juntos repetimos a “Indian Crack”.
O Fernando a chegar à primeira reunião da "Indian Crack".
Os meus dedos dos pés recusavam-se a aliviar os níveis de
dor. Mesmo assim, o primeiro lance saiu totalmente em livre e “sem espinhas”. O
Fernando encarregou-se de repetir a fissura do segundo lance e a linha original
para a esquerda obteve a sua primeira repetição, em poucos dias.
Horas antes, o Fernando e eu, inaugurámos também a segunda
via aberta no sector.
Dois momentos do Fernando a escalar o primeiro lance da "Unhas retorcidas".
A “Unhas retorcidas” (vá-se lá saber a origem do nome),
terminou com dois lances de fissuras, percorrendo um itinerário sinuoso mas, bastante
lógico e bonito (esta ultima percepção, dependendo da sensibilidade de cada um).
Mais uma vez, não foi necessário recorrer aos expansivos e a aventura
resolveu-se com a utilização exclusiva de equipamento volante.
O Fernando prestes a terminar o bonito primeiro lance da "Unhas retorcidas".
A sair da primeira reunião da "Unhas retorcidas" e a iniciar o segundo lance. Aqui, a via converge francamente para a direita em busca de um diedro/fissura lógico.
Entretanto, o Tony “deixou-se enganar” de novo e, no dia 4 de Dezembro,
retornámos à “Indian” com o intuito de “endireitar” definitivamente a via.
Desta vez, rejeitámos empiricamente o primeiro lance e
rapelámos directamente para o local da primeira reunião. Algumas horas depois,
a escalada integral da fissura estava concluída e com ela, culminou a abertura
da via mais óbvia do sector. A “Indian Crack” revela agora o seu verdadeiro
carácter de 6c (sujeito à futura decotação) mas, sobretudo, representa um
pequeno mas intenso desafio mental de escalada tradicional.
Dois momentos da escalada integral da fissura da "Indian Crack".
O Tony a terminar o lance crucial da "Indian Integral".
No dia 8 de Dezembro, o Fernando Pereira retornou à falésia e, em
técnica de escalada em solitário, inaugurou um novo itinerário que baptizou com
o nome: “Granada”. A inspiração para o nome não está propriamente relacionada
com a qualidade da rocha (embora se pudesse adequar) mas sim com um “encontro imediato”
acontecido no final da sua ascensão. Ao desembocar no topo da falésia, o
Fernando deu de caras com uma granada real, decerto um “fruto” perdido (e por
explodir!) de antigos exercícios militares que os fuzileiros frequentemente
realizavam na Serra da Arrábida.
Uma pequena lembrança de antigos exercícios militares na Serra da Arrábida. "Granaaaadaaaa!"
O Fernando, no topo da falésia.
O “Sector dos Amigos” encontra-se à esquerda (de costas para
o mar) da “Parede dos figos” – parede que alberga a grande via desportiva
“Figos para os amigos” e conta já com quatro linhas “bolt free” e potencial
para mais umas quantas, seguindo o mesmo estilo.
Apesar das humildes proporções da parede, as suas
características particulares, localização e verticalidade dão-lhe um ambiente
aéreo e impressionante.
O Tony a escalar a "Indian Crack".
Os potências candidatos à repetição destas vias devem ter em
conta que estas foram aberturas realizadas desde baixo, cuja respectiva limpeza
se resumiu a atirar aos peixinhos apenas os blocos e pedras mais precários, estacionados
no caminho directo do escalador. Desta forma, é de todo muito recomendável que
se proceda com cautela e com uma boa dose de bom senso.
Um capacete extremamente homologado é obrigatório, bem como
uma boa dose de experiência neste tipo de terrenos – aqui convêm “bater à porta
antes de agarrar”. Ainda a propósito,
existe outra prática que ajuda a garantir a boa integridade física do escalador
que consiste em traccionar as presas “para baixo” e não “para fora”.
Não é nada mal pensado carregar uma corda a mais (60m!) para
fixar no topo da falésia e uns punhos bloqueadores, para facilitar uma retirada
imprevista (o único escape possível é para cima!).
Reunidas todas as condições e sacudindo o nervoso miudinho,
a satisfação final de ter vivido uma boa aventura numa parede em “estado
selvagem” está garantida.
Paulo Roxo
Os topos
3 Comments:
Uma vez que detectaram a granada, que tal avisar as autoridades para retirarem aquilo do lugar de forma a evitar algum acidente?
Aquilo já tem muitos anos e provavelmente já estará desactivada, no entanto, antes de pensar na forma de a retirar, pensámos que o melhor seria avisar aqui, precisamente para evitar algum acidente!
Paulo Roxo
O engenho já está reportado e será removido.
Existe a forte probabilidade de um dos componentes estar ainda ativo, pelo que, tocar no objeto pode ser uma forma exagerada de cortar as unhas.
FP
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